Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Os seres vivos, dos unicelulares ao homem, manifestam-se na natureza em torno da complexa dispersão da multiplicidade das formas e das funções biológicas visíveis e invisíveis.
É na maravilhosa identificação dos múltiplos semelhantes, porém únicos, que se torna possível aos sentidos humanos, tanto aos natos quanto aos cognitivos, apreender a partir da comparação e, a seguir, reproduzir, modificar e interpretar o observável.
Contudo, foi mediante o conhecimento historicamente acumulado ¾ a repetição ou a repulsa do visível e do sentido ¾ que nós nos fizemos humanos. A explosão da inteligência humana dá-se na construção de ideias para desvendar o ainda invisível, a partir do processo cumulativo dos saberes.
Se tomarmos como exemplo um grupo de pessoas adultas, ao longe o suficiente para vermos a forma ¾ o corpo ¾, poderemos caracterizá-lo, sem esforço, como homens e mulheres. Contudo, conforme nós nos aproximarmos, perceberemos que continuam homens e mulheres, porém diversos entre si em cada porção, agora mais perceptível, dos seus corpos.
Hipoteticamente, se essas pessoas fossem submetidas à cirurgia da glândula tireoide, pelo mesmo cirurgião, ele perceberia que elas possuem as tireoides ¾ o órgão ¾ parecidas, porém com as formas diferentes, seja no tamanho, na cor, na consistência ou em qualquer outro parâmetro considerado.
Mas, mesmo assim, com todas as dissimilitudes de apresentações, nos níveis do corpo e do órgão, prosseguem como homens, mulheres e tireoides para os observadores.
Continuando o desvendar da matéria, a mesma e incrível variação continua nas dimensões microscópicas ¾ a célula. Apesar de as células serem passíveis de reconhecimento como sendo originadas na tireoide, elas são absolutamente distintas entre si.
Não obstante ainda não dispormos de tecnologia específica para confirmar a unicidade em todas as dimensões, é possível que o mesmo fenômeno que molda o ser vivente e as coisas, ocorra também no nível molecular.
O que torna mais fascinante o desafio de compreender os corpos humanos, na história da Medicina, é o fato de o patológico reproduzir, nas dimensões macro e microscópicas, um conjunto infinitamente maior da multiplicidade das formas e das funções quando comparado ao normal.
A perda do caráter individual dos seres vivos e dos objetos ocorreria no nível atômico. Os corpos, órgãos, células e moléculas, normais ou patológicos, mantêm a multiplicidade, porém os átomos que os compõem não teriam diferenças entre si. Esse é o ponto de encontro marcando os limites entre o mundo vivo e a natureza inerte.
Por um lado, existe a coisa, não reproduzível em si só, composta de átomos organizados em moléculas sem vida e, pelo outro, o ser vivo, podendo reproduzir-se, composto dos mesmos átomos organizando as moléculas, as células, os órgãos e os corpos.
Os elementos químicos da cadeia periódica são os mesmos para todos as coisas vivas e inanimadas do planeta. Isto quer dizer que a ciência admite as formas e as funções dos átomos de carbono, que compõem as moléculas do diamante, como sendo exatamente iguais às dos átomos de carbono formadores das moléculas das células do coração humano.
Neste momento, cabe a pergunta fundamental: Em qual nível do ser vivente a forma determinante da doença substitui a estrutura preexistente para que o normal se transforme em patológico?
Para melhor compreender essa questão essencial da arqueologia da cura, utilizaremos a linguagem do filósofo francês Bachelar1, para congelar, no tempo, as marcas que sulcam fundo os três cortes nos saberes médicos oficiais, em cerca de cinco mil anos de História:
Primeiro corte:
Surgiu na Grécia antiga, quando a doença foi abordada fora do domínio exclusivo da divindade, inaugurando a Medicina do corpo2.
O grande e insuperável avanço, em relação à tradição anterior, reside no fato de que, pela primeira vez, estava estabelecido um sistema teórico coerente, capaz de explicar a doença, a saúde, a terapêutica e o prognóstico.
A teoria era simples e competente: para cada um dos quatro elementos de Empédocles existiria um humor corpóreo3:
Ar | Fleuma
|
Água | Bile amarela
|
Fogo | Sangue |
Terra | Bile preta |
A ideia revolucionária dos médicos gregos da Escola Médica, na ilha de Cós, representados por Hipócrates, ficou conhecida como Teoria dos Quatro Humores4: O corpo humano é constituído de quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile preta. São os responsáveis pela natureza, pela saúde e pela doença.
O equilíbrio entre a quantidade e qualidade dos humores seria o responsável pela saúde. Ao contrário, os desequilíbrios entre eles provocariam as doenças. Como consequência imediata, esse sistema teórico permitiu aos médicos hipocráticos explicarem a origem das doenças e, de modo adequado, iniciar o conflito de competência com a religião2.
A epilepsia, tida como doença de natureza divina, foi arrancada do domínio dos deuses5:
Quanto à doença que nós chamamos de sagrada, eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras.
Para tratar qualquer doença, bastaria forçar o equilíbrio dos humores por meio de atitudes induzidas para eliminar os líquidos e excreções corpóreos. Os métodos de tratamentos da Medicina oficial passaram a utilizar a sangria e as substâncias provocadoras do vômito, da diurese, do suor e da diarreia.
No século II, o médico romano Cláudio Galeno6 fez outra interpretação da teoria hipocrática. Ele admitiu que a predominância constante de determinado humor provocaria o aparecimento de um tipo específico de temperamento que marcaria, definitivamente, as relações sociais da pessoa:
Fleuma
|
Fleumático |
Bile amarela
|
Colérico |
Sangue | Sanguíneo |
Bile preta | Melancólico |
Os sistemas teóricos de Hipócrates e Galeno, capazes de explicar a saúde, a doença e a expressão do ser no social, mostraram-se tão adequados ao observável que dominaram as regras do diagnóstico, da terapêutica e as bases do ensino da Medicina oficial no Ocidente durante quase vinte séculos.
Durante vinte e três dias de febre e convulsão que antecederam a sua morte, a Princesa Paula Mariana, filha do primeiro Imperador do Brasil, foi submetida às chupadas de quarenta sanguessugas, onze vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres, prescritos pela equipe de dez médicos que se revezaram à cabeceira real7.
Para ter-se a dimensão do quanto as teorias influenciaram a Medicina oficial, ainda no século XIX, é suficiente assinalar que as ideias alcançaram não só os doentes da Coroa portuguesa, mas os índios vistos sob o enfoque do viajante europeu.
O médico Carlos Von Martius8, em 1844, ao descrever o indígena, assinalou:
Por todas as qualidades inatas e habituais dos brasis, tanto psicológicas como físicas até aqui enumeradas, devemos necessariamente concluir serem estes homens de temperamento linfático. Tendo pouco sangue nas veias, pouco calórico e turgente no corpo, que tanto influem para a vivacidade, vivem constantemente mergulhados na monotonia; nutrindo-se de alimentos grosseiros, pesados, malcozidos e não adubados, além de terem fraco sistema nervoso, devem os brasis superabundar em humores…
Cabe ressaltar que os métodos de tratamentos em voga na corte portuguesa e a interpretação de Von Martius, baseados nas teorias de Hipócrates e Galeno, eram considerados verdades absolutas entre os intelectuais até a segunda metade do século XIX.
Segundo corte:
Ocorreu no século XVII, quando a doença foi retirada da macroestrutura corporal dos humores para a microestrutura dos tecidos por meio da microbiologia, descrita nos estudos de Marcelo Malpighi (1628-1694), marcando a nova fase dos saberes médicos: a Medicina celular.
O resultado foi a instituição da mentalidade microscópica, inaugurando o desvendar da multiplicidade das formas e das funções escondidas dos sentidos natos.
A defasagem entre os cortes é consequência dos empecilhos para utilizar, na prática, as novas ideias e a consequente e lenta mudança nas bases do aprendizado.
Pouco a pouco, o estudo da célula dominou os meios acadêmicos. Hoje, é o sustentáculo do atual ensino da Medicina. Mesmo nos hospitais mais bem equipados, os tratamentos dependem do diagnóstico microscópico quantitativo e qualitativo das células corporais.
Isto significa que a estrutura teórica dos saberes médicos, pelo menos no Terceiro Mundo, em pleno final do século XX, ainda está alicerçada sobre os princípios teóricos da patologia celular oriunda do século XVII.
Ao mesmo tempo, a microbiologia inaugurou os objetivos da tecnologia hospitalar: dotar os métodos auxiliares do diagnóstico com instrumentos para aumentar os sentidos natos do examinador. Os aparelhos desvendam o que o médico não pode ver, ouvir e sentir.
Terceiro corte:
Aconteceu com os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822-1844), abrindo as portas da Medicina molecular.
Os hospitais do Primeiro Mundo já utilizam a Medicina molecular. Com o propósito de diagnosticar ou tratar certa doença, são analisadas as quantidades e as qualidades de uma ou mais moléculas, entre as milhares que compõem uma célula corporal.
Infelizmente, o pouco tempo para a adequada disseminação dos saberes da Medicina molecular, o alto custo e as dificuldades da tecnologia hospitalar de sair da célula para a molécula restringem esse avanço às ricas instituições dos países industrializados.
Como uma das consequências da Medicina molecular, a clonagem estreitou, geneticamente, a multiplicidade das formas e das funções, criando em laboratório seres idênticos, a partir de células retiradas de um indivíduo adulto.
Apesar de assustador, o produto do clone não humano, do mesmo modo como todos os animais nascidos da reprodução sexuada, ao longo do processo de amadurecimento, sofrerá a incisiva influência do social. Desta forma, não existe perspectiva de eliminar a multiplicidade geradora das respostas do ser vivente frente aos desafios da sobrevivência.
Mesmo sendo tecnicamente possível, a clonagem de seres humanos é inconcebível sob todos os pontos de vista. Não existem, inclusive, instrumentos das linguagens oral e escrita para preencher a repulsa contra o alucinado ensaio de eliminar a principal característica do planeta: a multiplicidade.
Nos próximos séculos, o quarto corte estará ligado, certamente, ao maior domínio do binômio massa-energia que envolve os elétrons, os prótons, os nêutrons e as partículas subatômicas e sustentam as formas e as funções dos seres vivos.
A Medicina atômica deslocará os conceitos das Medicinas celular e molecular, do mesmo modo como aconteceu com os humores hipocráticos e os temperamentos galênicos e, talvez, desvendará os enigmas que persistem e intrigam a ciência no trato dos fenômenos paranormais9.
Como a análise retrospectiva induz, sempre, à crítica do presente, é importante refletir, continuamente, sobre os limites da cura de ontem e de hoje.
Se somos capazes de rir dos conceitos teóricos hipocráticos e galênicos, não devemos esquecer que, certamente, em futuro breve, também seremos motivos de zombaria.
Os claros limites da cura não são e nunca representaram empecilho para que o curador ¾ a pessoa interposta entre o doente e a doença ¾ encarne a esperança de interromper o sofrimento e prolongar a vida.
Durante e entre os cortes nos conhecimentos que empurraram os limites da cura, os homens e as mulheres nunca deixaram de lado as suas devoções aos deuses protetores. Com diversas roupagens, os deuses continuam ocupando os espaços e ajudando na procura de um mundo com menos dor.
Em vinte e cinco anos, em atividades docentes e assistenciais, realizamos em torno de trinta mil consultas e cerca de três mil cirurgias. Na grande maioria dos casos, os doentes seguiram as receitas médicas e concordaram com as cirurgias. A nossa relação de confiança com os pacientes e seus familiares ficou incorporada no cotidiano profissional de forma consistente. Contudo, em muitos momentos, nós tivemos dúvidas de estar contribuindo para o bem-estar deles. Nessas ocasiões, ao nos comportarmos politicamente corretos com as normas técnicas, deixamos de ouvir como deveríamos o sofrimento determinado pelo tratamento proposto pela academia.
A expressão ”em muitos momentos” está sendo usada porque, quando se tratava de pacientes portadores de doenças pouco compreendidas e cheias do pressuposto da dor incontrolável, como em certos tipos de cânceres e nas patologias moduladas pela defesa imunológica, mesmo com o domínio das publicações internacionais mais recentes, sentíamo-nos incompetentes para diminuir o sofrimento dos enfermos.
Nessas horas, tínhamos a certeza de que a forma determinante desses distúrbios está contida numa dimensão da matéria ainda não desvendada pela Medicina.
Entre esses doentes, após explicarmos as nossas grandes limitações, alguns nos perguntavam sobre a busca de alternativas fora da Medicina. A nossa resposta continua sendo, sistematicamente, a mesma: Os limites da cura são imprecisos.
É verdade que, nos primeiros anos de formado, nós não prestávamos atenção nessas questões. Considerávamo-las de pouco importância para o cirurgião bem formado. Contudo, com o passar dos anos, cada vez mais ciente dos estreitos limites das fronteiras do saber, nós sentimos o desejo crescente de compreender além das paredes da sala de cirurgia e buscar um sistema teórico capaz de explicar a intricada relação entre a Medicina oficial e a Medicina não-oficial, isto é, as práticas de curas realizadas dentro e fora dos muros da Universidade. Por outro lado, incontáveis enfermos, mesmo aqueles portadores de doenças de fácil controle, presentearam-nos com imagens e amuletos das suas devoções, acreditando poderem estar, com essa atitude, contribuindo para médico e doente, juntos, alcançarem melhores resultados na cura.
Com a ajuda da prática profissional acumulada e, hoje, conscientes da imensa falibilidade da Medicina, nós ponderamos, neste ensaio teórico, baseado na coerência e similitude das manifestações, ao longo de cinco mil anos de história da Medicina, que as atitudes moduladoras da crença na cura, tanto do médico quanto do doente, não podem ser exclusivamente sociais.
As correntes que ligam as expressões coletiva e pessoal de cura com o social, tanto na ciência quanto no espaço sagrado, mostram-se tão sólidas que impulsionam a certeza de serem tão fortes quanto a cor da pele ou qualquer outra característica física determinada pela mensagem genética.
Com esse pressuposto, teorizamos e existência de estruturas biológicas moleculares, no genoma, suficientemente coerentes com os mecanismos da sobrevivência, inatos e adquiridos, provenientes da filogenia e da ontogênese, capazes de sustentar a fé na cura, desde tempos imemoriais, com harmonia suficiente para moldar a ordem social.
O interesse em estabelecer um sistema teórico, capaz de explicar os limites da cura, amadureceu em etapas e como fruto das indagações nascidas nas atividades profissionais como médico e professor10,11. Nos cinco diferentes momentos nos quais presenciamos as práticas de curas não-oficiais, que envolveram pessoas e lugares absolutamente diversos entre si, assumiram papéis decisivos no processo:
- Nas enfermarias do Hospital Universitário, em Manaus, durante vinte anos, assistimos à angústia de incontáveis doentes que suplicaram a cura aos santos das suas devoções e ao ritual das dádivas depositadas no altar da capela, como agradecimentos pela saúde conquistada;
- Entre 1979 e 1981, durante o Doutoramento em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, na Universidade de Paris VI, ao testemunharmos o uso da Medicina não-oficial como tratamento da dor fora de controle.
Em uma dessas ocasiões, talvez por ter sido uma das primeiras, ficamos boquiabertos. Uma parte significativa de tudo que nós considerávamos como científico ficou perdida no atordoamento do drama cênico. O curador popular foi chamado para ajudar um paciente fora de possibilidade terapêutica, portador de câncer da rinofaringe, que se alimentava com a ajuda de sonda e gritava de dor noite e dia, após ter sido submetido à radioterapia paliativa. O paciente emagrecido, com a pele apergaminhada sobre os ossos, inerte no leito, sussurrando os suspiros da longa agonia, resistente a todos os tipos de analgésicos, olhava esbugalhado o rezador. Com esforço e sem interromper os gemidos, suplicou: “Pelo amor de Deus, ajude-me!”
Lentamente, ele fechou as pálpebras, entregando-se ao desconhecido, mas que representava, naquele instante, a chance de ser alguém com o poder de interromper o penoso sofrimento. O homem bem vestido segurou a mão seca do enfermo e o confortou com palavras de generosa bondade. De imediato, identificando-se como simples crente no Deus Todo-Poderoso, rezou com fervor o pai-nosso e pediu forças a Jesus Cristo para ajudar o sofredor. Ao final da reza, colocou as suas mãos sobre a cabeça do canceroso e iniciou um murmúrio incompreensível. Minutos após o início do rito, o doente calou-se e dormiu profundamente. Os familiares presentes choravam, ao afirmarem ter sido a primeira vez, em várias semanas, que o moribundo conseguia descansar sem a injeção de morfina na veia. É claro que, naquele momento, o juízo crítico das pessoas presentes discernia que não se tratava, absolutamente, de qualquer tipo de cura do câncer. O cerne da questão era o profundo elo de confiança ligando o rezador e o doente, capaz de provocar a resposta objetiva frente à dor.
- Entre os anos de 1985 a 1986, no projeto EDEN, financiado pela Universidade do Amazonas, com o objetivo de estudar, comparativamente, os dados sociais e noológicos do Município de Coari, localizado no meio do rio Solimões, e os do bairro Novo Paraíso, na periferia urbana de Manaus. Durante o desenvolvimento dos trabalhos de campo, comprovamos que uma grande parte da Medicina praticada no Hospital Universitário da Universidade do Amazonas estava muito distante da compreensão de saúde e doença das três mil pessoas entrevistadas (a palavra saúde será usada como sinônimo de prazer e a doença como representação de dor e desconforto).Além das belíssimas paisagens da mata virgem, costeando o grande rio Solimões, observadas do pequeno barco da prelazia de Coari, nós vimos os leprosos, com as faces desfiguradas, portando a imagem de São Lázaro, pedirem a bênção do padre e a misericórdia de Jesus Cristo para curar as chagas. Nessa ocasião, ao perceber a reação dos membros da equipe frente à miséria e ao abandono das populações dos confins da floresta, esboçamos uma categoria teórica que denominamos como dor-histórica2, muito mais forte e criticável do que a dor-pessoal, expressa na revolta coletiva frente aos aleijados pela lepra que povoavam a vila de Nossa Senhora da Conceição, nas cabeceiras do rio Copeá, afluente do rio Solimões. Entre as muitas manifestações da Medicina não-oficial, nós admiramos a idosa curandeira desenhar, com a borda do polegar direito, repetidas vezes, a cruz na testa do curumim que ressonava alto nos braços da mãe, enquanto rezava a ave-maria para tratar a espinhela caída.
- Em 1988, na serra de Surucucu, no Estado de Roraima, onde participamos da equipe multidisciplinar de professores das Universidades do Amazonas e de Ohio (EUA), para estudar as manifestações orais e a alta incidência da oncocercose entre os ianomâmis.
Durante quase uma hora, sob o calor do entardecer do trópico úmido, nós presenciamos o fantástico rito da pajelança. A jovem doente estava deitada no chão sobre uma esteira de palha trançada, com a respiração ofegante, suando muito, os olhos fechados e os braços estendidos ao longo do corpo. O pajé, muito magro, exibia na cabeça um desarrumado conjunto multicolorido de penas de aves da região e mascava um grande bocado de epadu. Curvado sobre si mesmo, pisava, com ritmo e força, o solo de barro pedregoso e movimentava-se rápido em torno da enferma. Na mão direita, brandia o chocalho e, na esquerda, segurava um galho seco em brasa, soprando na direção da índia a fumaça branca vinda da madeira queimada. De tempos em tempos, ele cuspia, em jato, uma mistura de saliva com restos de folhas de epadu e gritava sons guturais incompreensíveis.
- No Pós-Doutoramento, na Universidade de Paris VII, em 1994, nós comprovamos, mais uma vez, que a presença dos curadores não-oficiais e das divindades taumaturgas, na vida das pessoas que vislumbravam o sofrimento ou sentiam a vida ameaçada, independentemente da cultura e do estamento social, é tão intensa como nas encostas do rio Solimões ou nos confins da floresta.
Nesses cinco diferentes tempos, relembramos cortejo cerimonial das cenas vividas, na minha infância distante, em Manaus, quando presenciei a minha querida avó Micas, portuguesa de Matosinhos, benzedeira bondosa e respeitada, rezar o cobreiro com a ajuda de um ramo de arruda.
Em todas as circunstâncias, tanto nas mais recentes quanto nas reminiscências familiares, estão claros os profundos elos de confiança entre os curadores e os doentes, formando um conjunto coerente de ações e respostas, em nada diferente dos descritos nas tradições da história da Medicina, no Hospital Universitário, em Paris, na floresta amazônica e na serra de Surucucu.
Apesar das falhas nos resultados das medicinas realizadas dentro e fora dos muros da universidade, a esperança no sucesso do tratamento, seja de caráter pessoal ou coletivo, dá sentido às práticas de curas.
A arqueologia da cura de pessoas e de sociedades deve também passar nesse referencial que liga o doente ao curador e vice-versa.
Se, por um lado, nas relações individuais, o enfermo expressa o medo da dor e da morte e o curador apresenta–se figurando a esperança do prazer e da vida, do outro, coletivamente, a sociedade desorganizada e faminta almeja a chegada do líder político atuando como curador, capaz de recolocá-la nos trilhos da fartura.
A história da Medicina identifica três tipos de curadores:
- Oficial: geralmente é o único autorizado pelo poder dominante a curar de acordo com as regras da dominação. O conhecimento é transmitido nas escolas mantidas pela mesma autoridade. Os agentes obedecem às normas ditadas a partir dos três cortes do conhecimento médico.
- Não oficial: encarna uma grande variedade de agentes da cura. De modo geral, atuam desautorizados do poder dominador, caminham ao lado dos excluídos da Medicina oficial e repassam oralmente os saberes acumulados. Desde tempos muito antigos, esses agentes populares da cura têm resistido às incríveis perseguições.
O embate com o poder instituído é alimentado, permanentemente, pelo conflito de competência com a Medicina oficial2, e pela absoluta ausência de um sistema teórico reproduzível nos laboratórios e capaz de explicar, fora do sagrado, os limites da cura.
Tanto a Medicina oficial quanto a não-oficial, nas respectivas áreas de atuação, utilizam as suas próprias ideias de cura como instrumento de convencimento e catequese. As suas práticas refletem, na maior parte das vezes, dois aspectos da ordem e da desordem sociais: a alternativa imediata para diminuir as tensões geradas pelo medo da dor e da morte prematura.
- As entidades divinas: permeando os curadores oficiais, não-oficiais e os doentes, existem muitas divindades taumaturgas, detentoras de poderes sobre-humanos da vida e da morte, da saúde e da doença
O confronto entre os curadores oficiais e não-oficiais reflete-se, em parte do processo, na perda do elo de confiança, isto é, quando o paciente não aceita os limites da cura impostos pelo médico ou pelo curador popular.
Os principais agentes curadores são:
1.Do curador oficial: médico;
2.Dos curadores não-oficiais: benzedeiras, parteiras, pastores protestantes, pajé, médium kardecista, harmonizadores do IVI (Invitation à la Vie), umbandistas, mãe e pai de santo, padres e freiras carismáticas, entre outros;
- Das divindades taumaturgas:
Deus único, no judaísmo e no islamismo. No cristianismo, além do Deus-Pai, Jesus Cristo, o Espírito Santo, a Virgem Maria, os santos e as santas protetores são evocados no processo de cura.
As influências e os poderes dos curadores e das entidades divinas taumaturgas variam de acordo com o social, a natureza circundante e o elo de confiança entre o curador e o paciente, capazes de gerar respostas concretas no alívio do sofrimento.
Nos barrancos do Solimões e na periferia de Manaus, se a doença é um braço quebrado, ninguém oferece dúvida de que o melhor tratamento é imobilizar a fratura com gesso no hospital mais próximo. Em Paris, tratando-se de simples tumor da pele da face ou de otite infecciosa, o paciente aceita rápido a cirurgia ou o tratamento com antibióticos indicados pelo médico.
As duas considerações feitas, a plena concordância dos doentes em tratar o braço quebrado, o câncer de pele ou a otite, no hospital, traduzem, tanto no Amazonas quanto em Paris, o elo de confiança na Medicina oficial, quando oferece bons resultados imediatos.
Todavia, tanto na floresta terceiro-mundista quanto no asfalto do Primeiro Mundo, ao existir dúvida da perspectiva da cura, os pacientes, independentes do social, procuram a ajuda dos curadores populares para diminuir a dor-pessoal (DP) e o medo da morte. Nas duas circunstâncias, com ou sem o elo de confiança ativado, as divindades taumaturgas são lembradas e podem ser consideradas, por ambos, curadores e pacientes, como as responsáveis pela cura em si mesma.
Além desses inevitáveis compartimentos, existe, nas variáveis que interferem na postura dos curadores, dos representantes das entidades divinas taumaturgas e dos doentes, a presença de um elemento, subjetivo e essencial, que alicerça o elo de confiança: o dom.
Essa característica do curador ¾ o dom ¾ pode estar, em muitas situações, acima da formação acadêmica e da competência profissional. Trata-se de um sentimento incomensurável, ligando em sintonia fina os curadores e os doentes.
Seja nos parâmetros do cientificismo e obedecendo às regras universitárias ou nos desconhecidos marcos da paranormalidade do prodígio espontâneo e não reproduzível no laboratório, os limites da cura impõem a obrigatória reflexão dos significantes simbólicos.