A CIRURGIA COMO ESPECIALIDADE NA MEDICINA

Prof. Dr. HC João Bosco Lopes Botelho

A cirurgia, no passar dos milênios, continua mantendo a mesma característica básica – A ARTE TRABALHADA NO PRÓPRIO HOMEM.

Ela se confunde com a história do homem e tem acompanhado de perto os movimentos de transformação social.

Da primeira amputação cirúrgica feita em torno de 45.000 anos no Monte Zagros, no Iraque, até o transplante cardíaco, a cirurgia guardou íntima relação com a busca da perfeição do corpo de arquétipo divino antropomórfico.

É possível comparar a cirurgia com a pintura ou qualquer outra expressão da arte humana. Quando o cirurgião retira o câncer da laringe ou o estômago ulcerado, desenvolve um conjunto de gestos que é indissolúvel da arte e da habilidade manual. A sensação da obra terminada em uma cirurgia não deve ser muito diferente da sentida pelo pintor ao terminar seu quadro ou a do compositor ao ouvir a sua criação.

Hoje não se pode admitir a cirurgia fora da medicina. Porém, nem sempre foi assim. Somente no século XV a cirurgia começou a ser incorporada à medicina.

A prática cirúrgica se desenvolveu em ritmo desigual nos diferentes processos de transformação social percorridos pelo homem. No ocidente, em consequência do culto do corpo, a evolução dos métodos empregados na cirurgia se deu mais rapidamente e ao lado da tecnologia. No oriente, ao contrário, devido ao pouco valor dado ao corpo, a utilidade da cirurgia na busca da saúde foi interpretada de maneira diversa.

Segundo comprovações arqueólogas, as realizações cirúrgicas mais amigas dos nossos ancestrais são além do esqueleto com o braço amputado achado no Iraque, as trepações do crânio, datando mais de 10.000 anos. Existem dezenas de crânios trepados em diversos museus e hoje não se tem mais dúvida que esta primitiva prática cirúrgica era impregnada de sentido mítico-religioso, semelhante ao encontro nas ilhas Bismark, onde os nativos continuam fazendo esta cirurgia para retirar os demônios dos doentes.

Enquanto a cirurgia chinesa permaneceu nos rudimentos da urgência até o século XIX, no ocidente ela tomou grande impulso a partir do século XV, da nossa era, quando se retomaram os estudos sistematizados da anatomia humana.

Foi, provavelmente, através da cirurgia prática nas cidades do III milênio a. C., que se formou a base teórico-prática da cirurgia desenvolvida no Ocidente. Os papiros egípcios de Ebers e Smith, do século XV a.C., além de terem algumas descrições notáveis de várias cirurgias que são realizadas até hoje, constituem os primeiros registros da cirurgia como especialidade médica.

Entretanto, foram os gregos que reconheceram a importância da cirurgia para a medicina. No Corpus hippocraticum, livro atribuído a vários autores inclusive a Hipócrates, consta volumosa referência a prática cirúrgica feita por médicos especialistas.

Com o avanço conquistador dos romanos e a organização militar deste povo, começaram a aparecer os grandes hospitais militares, construídos nas principais cidades do império para receber os soldados feridos em combate. Nesta fase a cirurgia alcançou grande desenvolvimento, principalmente no tratamento das feridas traumáticas de guerra. É desta época que os estudos de HERÓPHILE (340 – ? d. C.) e de ERESIS- TRATO (330 – ? d.C.= que identificaram a próstata, o estômago, o duodeno, o sistema nervoso além de diferenciar o tendão do nervo.

Com gradativa ascensão do cristianismo no império Romano, principalmente a partir do Imperador Constantino, a medicina começou a absorver na sua prática o sentido de caridade e perdeu rapidamente todas as conquistas feitas até então como especialidade social do homem. Passou a ser compreendida como sacerdócio, em comparação com a ação médica desenvolvida por jesus Cristo, que operava milagres na cura dos cegos, paralíticos e leprosos.

Começou a aparecer no mundo cristão os hospitais indigentes – nosocômio. A partir daí inicia-se um período muito difícil para a cirurgia.

Em consequência das práxis sociais impostas pelo poder da igreja, o corpo humano não pôde mais ser estudado e a guarda sigilosa pelo clero dos livros de anatomia escritos pelos gregos e romanos, contribuíram decisivamente para que a cirurgia se tornasse uma atividade impossível de ser exercida com seriedade.

É nessa condição que a cirurgia atravessou dez séculos, sendo exercida, neste período, por charlatães e barbeiros. Eles amputavam, lancetavam, tiravam dentes, drenavam os abcessos, cortavam cabelo e faziam barba. Esta situação foi consolidada pelo Concílio de Tours (1163) que proclamou: ECCLESIA ABOHORRET A SANGUINE.

A primeira resistência coletiva a essa situação começou a aparecer com a Escola de medicina de Montpellier, na França, em 1220. Um grupo de cirurgiões-barbeiros, influenciados pelos novos ares acadêmicos e liderados por Jean Pitard (1238- 1315) fundaram a primeira Confraria de Cirurgiões, sob a proteção de São Cosme e São Damião e se separaram dos barbeiros.

A cirurgia foi incorporada definitivamente como especialidade médica a partir de 1436, quando os cirurgiões são aceitos como alunos graduados da Faculdade de Medicina de Paris.

Começa timidamente, ainda com supervisão da igreja, o movimento cultural de retorno ao homem como o centro de tudo. É o Renascimento que chega e com ele a busca do conhecimento do corpo.

Foi nessa época, iluminada pela nova onda de liberalismo cultural, que André Vesálio (1514 – 1564) publica o seu De humani corporis fabrica, que serviu de base para a anatomia cirúrgica nos séculos seguintes.

Os artistas, maduros na produção da sua arte, se uniram aos cirurgiões. Leonardo da Vinci, desenha as suas maravilhosas pranchas de anatomia com tamanha perfeição e detalhes que são insubstituíveis até hoje.

Os novos conhecimentos da anatomia e da filosofia se superam. A dissecação do cadáver foi regularizada pelo governo. A igreja recua frente da melhor organização social.

A fisiologia da respiração e da circulação sanguínea são estudadas sob o olhar racional do século XVI. Os conhecimentos da anatomia são fortalecidos pela introdução da microscopia por Marcelo Malpighi (1628 – 1694). A ideia da geração que dominou o pensamento médico durante vinte e cinco séculos é substituída pelo micróbio.

Com a utilização da anestesia geral a partir de 1846 e da antissepsia em 1867, finalmente o cirurgião pôde se debruçar por mais tempo no objeto da sua arte.

No Brasil seiscentista português a medicina estava manietada pela religião. Não se dispõe de registros que possam esclarecer o papel social da cirurgia como especialidade médica. O mesmo não acontece durante o período holandês. Relatórios feitos pelo médico-chefe da Companhia das Índias ocidentais, Guilherme. Piso, hoje disponíveis no Museu de História em Amsterdam, na Holanda, mostram que existiam vários cirurgiões-barbeiros judeus e outros fugidos da Inquisição. Eles exerciam suas funções, sangrando e amputando, no Forte São Jorge, no Recife, durante todo o período da ocupação holandesa do Nordeste Brasileiro.

O Tribunal da Inquisição da Igreja Católica confiscou, castigou e impôs penitências a alguns cirurgiões-barbeiros que viveram no Brasil colônia, deixando marcas profundas que contribuíram para o rumo tomado pela cirurgia no nosso país até o início só século XX.

O cirurgião-barbeiro João Torres de Castro, natural do Rio de Janeiro, trinta e um anos de idade, por desafiar a decisão do Concílio de Tours, foi considerado pela Inquisição ‘’cristão-novo, convicto, ficto, falso, simulado, diminuto e impenitente” e queimado vivo em Lisboa, em 1762.

Durante os dois séculos seguintes a prática da cirurgia no Brasil não teve modificação significativa. Em 1840, existiam em Recife quatro hospitais. No grande Hospital de Caridade, trabalhavam um médico, dois cirurgiões, duas enfermeiras, um enfermeiro e um barbeiro-sangrador.

Somente no século XX foi que o Brasil incorporou definitivamente a cirurgia como especialidade médica.

Com a entrada do capital estrangeiro no Brasil na segunda metade desse século, a medicina adotou nova postura frente ao seu envolvimento concreto com o consumo tecnológico médico-hospitalar. Este já em plena ascensão no mundo capitalista desde o término da II Guerra Mundial.

A partir daí a cirurgia brasileira não parou de despontar como uma as mais importantes do Mundo. Possivelmente, como consequência da excessiva valorização do corpo, como um dos subprodutos do consumo desenfreado, chegamos a conquistar a liderança da cirurgia plástica cosmética.

A cirurgia no Brasil atingiu o seu apogeu com a construção do Instituto do Coração vinculado à Universidade de São Paulo. Projetado para realizar transplantes do coração, consome milhões de cruzados por dia na mesma cidade aonde morrem milhares de crianças com a diarreia da fome.

Vivemos hoje o exagero das indicações cirúrgicas em todo o mundo ocidental. Com as facilidades promovidas pelo incrível consumo tecnológico médico-hospitalar, a cirurgia começa a ser colocada em dúvida, seja por desconhecimento técnico ou por má-fé do cirurgião, gerando a desconfiança da eficácia da cirurgia como mediadora na busca da saúde.

Esta situação é mais concreta nos países ricos, onde o Estado controla rigidamente, através dos órgãos de saúde pública, a relação custo-benefício da ação médica. Em campanhas de esclarecimento coletivo, os governos orientam a população para ouvir pelo menos três opiniões médicas diferente frente de uma indicação de cirurgia eletiva.

Já começa a se esboçar nova reação das pessoas frente ao excesso promovido pela cirurgia moderna. Este movimento, estimulado pelos governos de vários países, tem como objetivo promover novas formas de medicina alternativa, menos agressivas e com menor custo operacional. Evidentemente, estas formas de medicina não intervencionistas (acupuntura, homeopatia e massagens) não substituem a cirurgia corretamente indicada. Porém, causam menos malefício que uma cirurgia intempestiva e tecnicamente mal executada.

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