REVOLTA À MORTE

João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A necessidade incontrolável de dar sentido à vida e minimizar a morte, expressas com transparências muito antes dos primeiros registros, contribuiu para materializar como opostos, a saúde e a doença. A primeira, sinônimo de vida, ficou ligada ao bem e a segunda, como mal, antecipava a morte temida.

            A pulsão inata para desvendar o invisível, em especial o escondido sob a pele do corpo doente, mas dotado com propriedades sensíveis, para fugir da dor e do desconforto, pode ser considerada como a primeira verdade estrutural no processo de empurrar os limites da morte. É verdadeira em si mesma, porque dá forma à vida, composta pela carnalidade da pele quente, a realidade dos sentidos, a respiração e do ritmo cardíaco.

Atinge e entrelaça o ser no mundo.

            De modo geral, as descobertas surgem das repetições, contudo, mas sem entendermos completamente a multiplicidade das formas visíveis, na realidade, tanto do múltiplo qualitativo quanto quantitativo. O confronto das ideias, no diverso incontornável, na maior parte das vezes, incompreensível, é suficiente para moldar o pensamento que transforma e consolida a consciência-de-si corporal.

            O conjunto sociocultural, presente nas memórias sociogenéticas*, adquiridas, transformadas e transmitidas, geração após geração, é fundamental às mentalidades. Os atuais saberes ocidentais, em parte marcados pela influência cultural greco-romana[1], uniram e solidificaram esse patrimônio, nos enigmáticos neurônios da memória de longa duração.

*BOTELHO, JB. O deus genético. Manaus. Editora Universidade Federal do Amazonas. 2000. p. 11-146.

A proposta teórica das memórias sociogenéticas, interligando o meio vivido e as emoções sentidas e expressas à epigenética capaz de produzir mudanças no genoma, está indicando as novas fronteiras do pensamento geneticista.

A pólis, organizada à semelhança do corpo saudável, passou a ser compreendida como saúde. O contrário, o caos social, sinônimo de doença. Junto, a concepção do administrador competente se consolidou como curador da sociedade doente.

No mundo mágico, a passagem de um para o outro lado, da saúde à doença, envolvendo mudanças nas coisas e nos acontecimentos, implicando riscos à vida, funcionando como polos opostos, tem sido comunicada às pessoas pelos representantes das divindades (curadores de todos os matizes)[2], o representante da divindade. Apesar de não negar o conhecimento empírico da natureza circundante, confessa ser incapaz de compreender a vontade divina, limitando-se a obedecer e implorar a misericórdia, através dos ritos específicos para abrandar a ira transcendente.

            O poder de curar pessoas e sociedades e adivinhar os infortúnios e a desagregação social, para melhor organizar o grupo social[3], oferecendo a saúde e adiando a morte, tem sido historicamente utilizado pelo poder político, como mecanismo de coesão e dissolução sociais.

            O sofrer e a morte da pessoa amada determinam transtornos complicados, em diferentes níveis do corpo, trazendo incontáveis sinais físicos de desconforto, variando em cada pessoa. Os sistemas nervosos, central e periférico, liberam substâncias que alteram o ritmo biológico e estabelecem a baixa global da defesa imunológica inata.

            A ansiedade frente ao medo da morte, entendida como sensação de perigo iminente, interferindo na sociabilidade do ser-tempo, provoca complexas mudanças nos ciclos do sono, da fome, da sede, da libido e da afeição, nada compreendidas, na neurotransmissão do axônio celular.

            O lento avançar da medicina molecular identificou a substância conhecida como GABA (ácido gama-aminobutírico), como o principal neurotransmissor, inibitório do sistema nervoso central[4].

            A maior parte dos bilhões de trocas químicas específicas processadas, em cada instante, nos tecidos, estão voltadas para manter o ser vivo e embotar, temporária ou perenemente, as sensações desagradáveis e perturbadoras.

            Parece lógico supor que as atitudes específicas, usadas no enfrentamento da adversidade temida, minorando o sofrimento do homem e da mulher, tenham sido valorizadas e, continuamente, aperfeiçoadas pela ordem social, por trazerem resposta de bem-estar.

            As ações humanas, transformando a natureza, para atenuar o desconforto, são imperativas. Estão ligadas direta e indiretamente aos mecanismos neuroquímicos endógenos autorreguláveis.

            Os dois atos, o externo, no circundante, e o interno, na célula, ajudam o corpo a criar mecanismos defensivos, quando o nível de agressão passa dos limites suportáveis.

            As dores, física e mental, determinadas pela ferida, na carne dilacerada no acidente traumático ou na morte da mulher amada, como pagamento e castigo, são sempre temidas. Têm sido, ao mesmo tempo, a inspiração dos poetas e a arma preferida da insanidade para aqueles que exigem o apagar dos sentidos, a fim de limitar, pelo pavor, o confronto das ideias no exercício da livre consciência.

            Diversas circunstâncias, do homem chorando a perda do amor ao suplício do torturado pelas ditaduras da direita e da esquerda, determinam o alerta dos sentidos e modificações significativas em todos os órgãos, em níveis moleculares, hoje inacessíveis.

            Uma das características mais intrigantes é como a dor altera a noção do tempo. Suportar o desconforto doloroso, por um minuto, é sofrer na imensidão do infinito. Durante a manipulação dentária, quando a pequena broca alcança o nervo sensitivo, as sensações cerebrais são indescritíveis. Ao contrário, a hora de prazer se concretiza em breve instante.

            Por essa razão, é impossível manter, durante muito tempo, a algia fulgurante. De pronto, todos os sentidos natos atiçam para evitá-la

ou os sentidos são apagados, pela inconsciência forçada, para aliviar o desastre biológico.

            Qualquer pessoa, capaz de interromper o sofrimento, é identificada na MSG, com o mais poderoso elemento da ficção na defesa contra o perigo: a divindade.

            Por outro lado, quando a vítima da tortura associa, de maneira persistente, alguém ao suplício da dor, a lembrança do algoz faz a ansiedade alcançar nível difícil de suportar[5]. A morte, antecipada pelo suicídio, pode significar a única saída.

            As reações corpóreas de todos os animais precisam dessas defesas, para continuar vivendo e reproduzindo.

            A espécie humana elabora uma substância específica, endo morfina (morfina produzida no corpo humano) auto requisitada pelas trocas biológicas, independentes da vontade, para modular a dor[6].

            Existem moléculas especiais, acopladas às membranas celulares, no sistema nervoso central, dotadas de especial receptividade aos derivados opiáceos naturais, utilizados como alucinógeno e analgésico.

            A incrível disseminação das drogas proibidas também não é um problema social exclusivo. A sedução exercida pelo consumo ilegal é diferente em cada pessoa. Está contida na individualidade material molecular e é transmitida geneticamente. Não é possível tantas pessoas, espalhadas no mundo, algumas coagidas por métodos brutais, continuarem desafiando, com acinte, o controle social, sem uma coerência biológica.

            As investigações realizadas nos símios responderam, favoravelmente, a essa assertiva. Os animais produzem substâncias, a nível molecular, para atenuar todas as circunstâncias exteriores e interiores capazes de determinar a dor.

            O mundo que envolve e forma a coisa sagrada ajusta a sua sedução, na eficiência simbólica dos ritos, da linguagem e da prece, unindo, em atitude mágica de credulidade, num só corpo, o pedinte e o objeto sagrado.

            A fé no renascimento foi atiçada nas incontáveis dúvidas da vida, no medo das intempéries incontroláveis, na dor no braço destruído nos acidentes e na agonia da morte. Seguiu caminho, alimentada na disputa da sobrevivência e do controle social, executada pelos detentores dos mais adequados artefatos de força.

            A maior parte da comunicação religiosa acabou sendo feita sobre a regra binária do prêmio-castigo, onde a divindade principal recompensava os obedientes com a bonança e punia os faltosos com a dor eterna na vida após a morte.

            O aliado que curasse a doença e previsse os infortúnios, representava o deus dominante. Ao contrário, quem não ditasse a mensagem, mesmo que sarasse e adivinhasse com a mesma competência, era identificado como antidivindade e proibido de entrar no éden.

            A certeza ficou transparente, a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontradas nos sítios arqueológicos, assírios e babilônicos. Ficou esclarecido o intrigante sinônimo das palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento. De igual modo, o sacerdote, o médico, o adivinho e o escriba receberam o mesmo nome.

            Os registros também mostraram parte da prática médica, no escravismo da Mesopotâmia antiga. Os médicos eram regidos com legislação específica, voltada para punir os erros e premiar, com recompensa pecuniária, os acertos. Utilizaram, com fartura, o saber empírico[7], para empregar os recursos disponíveis no meio ambiente.

            É possível evidenciar que os sacerdotes, intermediários da vontade divina, e os curadores, em muitos contextos históricos diferentes, exerceram, simultaneamente, a mesma função. Por essa razão, os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde o início.

            A crença no renascimento após a morte continua sendo um dos mais valorosos artifícios da ficção, para atenuar a morte rejeitada.

            As práticas religiosas valorizadoras dos mortos e as que os reintegram ao mundo dos vivos, exercem fascínio irresistível. As manifestações estéticas, em todos os tempos, apesar das metamorfoses sofridas, repetem, sem cessar, a sedução do renascer.

            A morte rejeitada, processada durante a humanização, arquivada nas memórias sociogenéticas, foi e é utilizada, com muita competência, tanto na dominação quanto na resistência como meio moldador das mentalidades ao movimento social.


[1] Sólon, sob a influência jônica associou as crises políticas como doenças. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 1986. P .689;

Platão utilizou, notadamente em Górgias (464 B, 465 A e 501 A), a arte médica como modelo.

A ética aristotélica valorizou o equilíbrio das emoções contidas entre a o prazer e a dor.

ARISTOTE. Éthique à Nicomaque.  Paris. Librairie Philosophique J. Vrin, 1990. p. 102-6.

BARBOSA, Marcos, dom. Aids, um castigo? Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 12 dez. 91: “A família, primeira instituição criada por Deus e que seu Filho quis restaurar com o primeiro milagre, é uma decorrência da natureza social do homem. E os responsáveis pela sua destruição devem ser punidos por Deus.”

[2]Sólon, sob a influência jônica, associou as crises políticas como doenças. Ver:

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 1986. p. 689;

Platão utilizou, notadamente em Górgias (464 B, 465 A e 501 A), a arte médica como modelo;

A ética aristotélica valorizou o equilíbrio das emoções contidas entre a o prazer e a dor. Ver:

ARISTOTE. Éthique à Nicomaque. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1990. p. 102-6;

BARBOSA, Marcos, dom. Aids, um castigo? Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 12 dez. 91: “A família, primeira instituição criada por Deus e que seu Filho quis restaurar com o primeiro milagre, é uma decorrência da natureza social do homem. E os responsáveis pela sua destruição devem ser punidos por Deus.”

[3] Eclo 38,1;

HOMERO. Ilíada. São Paulo. Melhoramentos. s/d. p. 44-5;

BARBOSA, Marcos, dom. Sinais dos tempos. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19 dez. 1991: “Também se me perguntam por quê, tratando-se de um castigo, Deus não puniu antes outras épocas em que desordem moral clamou igualmente aos céus, responderia que não sou capaz de saber por que Deus deixou de fazer isto ou aquilo, mas de procurar humildemente compreender por que fez o que faz… A punição divina visa corrigir os que erram…”;

O LIVRO dos mortos do antigo Egito. Lisboa. Assíro & Alvim. 1991. p .27: “Salve ó tu, Amon-Ré…, por N. …o mais importante no céu, o mais antigo na terra, o senhor daquilo que existe, que estabelece duravelmente todas as coisas!”

[4] COSTA, Terezinha. Medo precisa ser tratado para se curar os doentes. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 nov. 1986;

ROITT, M. Ivan; BROSTOFF, Jonathan e MALE, David, K. Imunologia. São Paulo, Manole. 1989;

REIS, José. Estresse altera sistema imunológico. Folha de São Paulo. São Paulo, 17 dez. 1989;

______. Sistema imune e nervoso se ligam. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 nov. 1989;

GRAEFF, Frederico G, Ansiedade: uma perspectiva biológica. Ciência Hoje. Rio de Janeiro, 1985. v. 4. n. 20. set./out. 1985. p. 67-72.

[5] PETERS, Edward. Tortura: uma visão sistemática do fenômeno da tortura em diferentes sociedades e momentos da História. São Paulo, Ática, 1989. p. 94;

FREI BETTO. Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 6. ed. Rio de Janeiro, 1983. p. 254;

SOLJENITSIN, Alexandre. Arquipélago Gulap. Lisboa. Círculo do Livro. 1975. p. 111-124.

[6] LICO, Maria Carmela. Modulação da dor: mecanismos analgésicos endógenos. Ciência Hoje. v. 4, n. 21, nov./dez. 1985. p. 69.  

[7] VERNANT, Jean-Pierre. Parole et signes muets. In: Divination et rationalité. Paris. Seuil. 1974. p. 18-9;

LUHMANN, Niklas. Poder. Brasília, UNB, 1985. p. 61-7;

LE GOFF, Jacques. Pecado. In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Mythos/logos. Sagrado/profano. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. v. 12. p. 271;

CUMSTON, Charles Greene. Histoire de la médecine. Paris. La Renaissance du Livre. 1931. p.  82;

O CÓDIGO DE HAMMURABI. 3. ed. Petrópolis. Vozes. 1989. p. 92;

BOTTÉRO, Jean. La magie et la médecine régnent à Babylone. In: LE GOFF, Jacques e SOURNIA, Jean-Charles, org. Les maladies ont une histoire. Paris. L’Histoire. Seuil. p. 12-23;

KRAMER, Samuel Noah. L’Histoire commence à Sumer. Paris. Arthaud. 1986. p. 80-3;

THOR-WALD, Jürgen. O segredo dos médicos antigos. 3. ed. São Paulo. Melhoramentos. 1985. p. 127.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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