João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier
A estrutura da Medicina, no Brasil colônia, durante a invasão holandesa, ficou encurralada entre três personagens:
– Poucos médicos portugueses, diplomados em Coimbra, com estrutura de ensino sob as garras da Santa Inquisição e fugindo da peste negra;
– O notável médico holandês Guilherme Piso e o grupo que o acompanhava;
– Os pajés, donos de incalculáveis saberes oriundos das experiências historicamente acumuladas, durante séculos, respeitados e temidos pelo poder de curar e fazer morrer.
Os relatos do médico holandês Guilherme Piso, desembarcado em Pernambuco em 1637, sob as ordens de Maurício de Nassau, avaliam com precisão a importância das personalidades por meio de dois livros espetaculares, escritos por ele, História Natural e Médica da Índia Ocidental (Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957) e História Natural do Brasil Ilustrada (Companhia Editora Nacional, Edição comemorativa do primeiro cinquentenário do Museu Paulista, 1948).
Para entender melhor a importância dos registros desse médico, fruto da Holanda predominantemente protestante, inseridos saberes de Hipócrates e Galeno, voltaram-se ao resgate dos formidáveis conhecimentos dos pajés e, consequentemente, evidenciando o desperdício desses saberes pelos médicos portugueses, ajudará desvendar as razões nascidas na experiência médico-hospitalar em Portugal, atada aos rigores das proibições eclesiásticas*.
*É possível entender as práticas da medicina sob três expressões, sob as respectivas maiores influências:
oficial, do poder laico dominante;
empírica, dos conhecimentos historicamente acumulados
divina, das ideias e crenças religiosas.
A desastrosa experiência portuguesa, para tratar os doentes em hospitais, na Alta Idade Média, ficou marcada pela desatenção aos preceitos médicos greco-romanos e fortemente atada à concepçãoteórica da caridade cristã. Por essas razões, os tratamentos em hospitais resumiam-se nas reclusões em albergarias que acolhiam hansenianos, vítimas de muitas doenças infecciosas, especialmente, as determinantes de feridas pútridas na pele, exalando odores fétidos, excluídos das famílias, mas amparados por ordens religiosas que dirigiam as multidões desorganizadas e famintas aos santuários cristãos de cura, notadamente o de Compostela, na Espanha, e aquelas estalagens.
A mudança desse modelo hospitalar às Santas Casas foi lenta. Somente no século XVI, pressionado pela grande quantidade de doentes que perambulavam nas ruas de Lisboa, a realeza iniciou o processo de organização em torno da caridade, como marco fundamental do aproveitamento social dos imemoriais elos da solidariedade em torno de um território protegido – o hospital – com garantia de retirá-los de circulação, diminuir as pressões sociais oferecendo casa e comida sem esforço.
A transformação do albergue dos séculos XII e XIII, como o lugar onde todos os doentes poderiam receber a caridade cristã, para o hospital no modelo das Santas Casas, representou o primeiro esboço do poder real em amenizar as elevadas tensões sociais na maioria da população, constituída de miseráveis e doentes crônicos.
Do mesmo modo, não seria possível esse avanço sem o suporte patrocinado pelas memórias sociogenéticas que guardam e reproduzem muitos movimentos da organização social, capazes de soarem alarmes nos sistemas nervosos central e periférico, como anteparo contra a dor e a morte prematura.
A primeira Santa Casa de Lisboa, fundada em 1498, certamentetambém representou um instrumento para exercer melhor o controle das três práticas de curas: religiosa, empírica e oficial, em muito menor proporção, em época em que a mortalidade provocada pela peste negra poderia desestabilizar o poder político-religioso.
Não é exagero articular sobre esse fato, a construção do hospital com o dinheiro das esmolas chamou atenção das autoridades do reino português para a incomensurável perspectiva monetária da caridade, agora sob dois aspectos: em primeiro, aumentar e centralizar a arrecadação das doaçõese, em segundo, diminuir as tensões sociais.
As enfermarias pavilhões das Santas Casas, dirigidas pelas religiosas das Ordens d’Assunção e do Espírito Santo, com os seus hábitos brancos, em clara associação simbólica ao sagrado imemorial, se reproduziram nas práticascurativas quatrocentista portuguesa,fortemente ligada ao imaginário cristão da caridade,nascidanaobediênciaaos preceitos bíblicos e nos interesses do Reino português.
Quando D.Joãoeasuacortedequinzemil desempregados chegaram ao Brasil, depois da fuga do exército napoleônico comandadas, encontraram situação caótica naassistência médica na Bahia e Rio de Janeiro.A Colônia não tinha médicos nem hospitais.É provávelque essas pessoas usuárias do fausto, sem assistência à saúde, tenham sentido pânico ao pensarem nas temerosas febres tropicais.
O pequeno número de médicos diplomados, isto é, agentes da medicina oficial, que trabalhava no Brasil,já tinha sido motivo de reclamação veemente do vice-reiLuís de Vasconcelos, em 1789, denunciando que só haviam quatro,insuficientespara sanar as queixas.
Essa situação de insatisfação, arrastando-se há mais de 150 anos, era do conhecimento daMetrópole. Imediatamente após a chegada do rei, expôs-se aforte necessidade para criação de estrutura de ensino capazdefazer frente à falta de médicos. A resposta do PríncipeRegente, futuro D. João VI, ocasionouacriação, pela Carta Régia de 18 defevereirode 1808,da Escola de Cirurgia da Bahia,nas dependências do Hospital Militar. Esse hospital iniciou asatividades em4 deoutubro de 1799, nas antigas dependências do Colégio dos Jesuítas, porordemde DomFernando José, governador da Capitania, após as denúncias das péssimascondiçõesda SantaCasadeMisericórdia deSalvador.Foiaalternativa encontrada para melhorar o atendimento da população, sem despender recursos à edificação de outro prédio.
Fato semelhante ocorreu no Rio de Janeiro, motivado em necessidades semelhantes. Poucos meses depois da chegada da corte ao Rio de Janeiro, aumentou a pressão para reestruturar com maior autonomia, várias repartições públicas para que pudessem suprir as dificuldades impostas pelo distanciamento da Metrópole e responder aos novos requisitos. Assim, passaram a funcionar no Brasil, algumas repartições que só existiam anteriormente em Portugal: Junta de Comércio, Fábrica e Navegação, Real Fábrica de Pólvora e a Escola Anatômica e Cirúrgica.
Em 1768, ovice-reiDomAntônioRolim de Moura Tavares,Conde de Azambuja, fundou, nas antigas dependências desativadasdoColégio dos Jesuítas, noMorrodoCastelo, o Hospital Real Militar e de Ultramar, onde,inicialmente,foram dadas as primeiras aulas de Medicina na cidade do Rio de Janeiro.
Apesarda valorização dos hospitais militaresparaa instalaçãodos primeiros núcleos de ensino da Medicina, oBrasil só teve o corpo de saúde no Exército, em 1849.Entretanto, precocemente na experiência colonial, osmédicos e cirurgiões-barbeiros que atendiam os militares feridos,estavamorganizados comoagregados às tropas e, mesmo sem patente, tinhamremuneração regular, contribuindo à organizaçãoprecoce dos hospitais militares.
A utilização dos médicosrecém-chegadose hospitaismilitares proporcionaram oinício do ensino da Medicina no Brasil.Tudo feito rapidamente para formar as bases da assistênciamédicapara D.João, D.Maria I, D. CarlotaJoaquina, os sete filhos e os quinze mil refugiados chegados nas trinta e seis embarcações escoltadas pelos navios ingleses. Seguiram-se as nomeações dos cortesões apadrinhados aoscargos de direção das academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e de Salvador.Para a primeira,ocirurgião-morJoséCorrêa Picanço, futuro barão de Goiana; à segunda, Manoel Vieirada Silva, Barão de Alvaiázere.
Para conseguir a matrícula no curso,não eranecessário muitodoteintelectual, bastava ao candidato saber lere escrever.O período de aprendizado durava cinco anos e,até 1832,as aulaseramministradasporapenasseislentesedois substitutos.O diploma recebido não oferecia os mesmos direitos dos de Coimbra. Esse reconhecimento parcial pelas autoridades portuguesas gerou vários atritos entre os estudantes e o físico-mor.Atensão ficouemnível crítico após asmanifestaçõesviolentas, forçandoo imperador D. PedroI assinar, em 1826, o decreto que dava às escolas de Medicina do Rio deJaneiro e da Bahia a autoridade para diplomar os seus alunos.
Esse decretoimperial, de 9 de setembro de1826, concretizouareformadas Academias Médico-Cirúrgicas, transformando-as nas Faculdades de Medicina.O acontecimento ficou gravado no quadro a óleo do pintor Manoel Araújo PortoAlegre, em exposição permanentenaUniversidadeFederaldo Rio de Janeiro, retratando o imperador D.Pedro I entregando opergaminho ao professor Vicente Navarro de Andrade, barão de Inhomirim.
Com o crescimento das atividades escolares e maior liberdade administrativa, açodou apressão pelasmelhores condições de ensino. Ao mesmo tempo, alguns administradores lúcidos estimularam o acesso aos progressos médicos em curso na Europa.
O produto final dessas desavenças resultou na maior participação dos alunos que passaramareclamar pormelhormaterialdidático,depois que ficou constatada a inexistência de livros editados emportuguês. Parasanara dificuldade, passouaser exigido o conhecimentodeinglêse francêspelosnovos alunos.Esse estatuto ficouconhecidocomobom será, porque além de exigir que os candidatos soubessem ler e escrever, acrescentava:
Bom será que entendam as línguas francesa e inglesa.
O curso passouà duração de seis anos e, pouco a pouco, os professores e alunos adotaram livros e procedimentos usados pela Universidadede Paris, considerada o melhor centrocultural. Os livros médicos apresentavam forte influência francesa, que permaneceria viva no século seguinte.
As diferenças no modo de vida e padrão de controleda saúdepúblicaentre a França e o Brasil, na segunda metade do séculoXIX,eram gritantes. Logo após a Revolução Francesa, foram tomadasvárias medidas sanitárias pelos médicosrevolucionários, responsáveis pela significativa diminuição da prevalência de doenças infecciosas.
Nessa mesma época, em que o incipiente ensino médico brasileiro adotava osmétodos da universidade francesa, já ajustada à realidade pós-revolucionária, as principais cidadesda França, Paris inclusive, ostentavam política de saúde pública e competentecontrole de algumas doenças infectocontagiosas.
Ficava, assim, muito difícil adaptar os conhecimentos médicosministradosna Universidade de Paris aos do iniciante curso de Medicina do Rio de Janeiro.Afora as grandes diferenças peculiaresacadasociedade, a França játinhaestruturado o ensino médico gratuito,voltado àspróprias necessidades, muitodiferentes das brasileiras.Por exemplo, Parisjátinha em torno deoitocentosquilômetrosde esgotosfuncionandoem galerias sob a maior partedacidade.A preocupaçãodasautoridadesfrancesas, naqueletempo, era como poderiamevitar que os dejetos fossem lançados diretamenteno Sena. NoBrasil, não havia o projetoparadiminuira prevalênciadeinúmeras doenças infecciosas e nenhuma cidade dispunha de rede sanitária adequada.
A análise da grade curricular da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, depois da reforma de 1832, assinada pela Regência Trina (Bráulio Muniz, Costa Carvalho e Lima e Silva), mostra que não havia referência ao estudo das condições sanitárias e das doenças infecciosas e parasitárias vividas pelo povo brasileiro. A atenção era projetada para as doenças mais comuns na Europa e na elite brasileira, sendo a sífilis, a mais temida.
As teses apresentadas pelosprimeiros alunosdiplomados podem servir comoindicador dessa realidade, refletindoodesajuste do ensino daMedicinacoma realidade social brasileira:
- Influência das religiões e, particularmente, da religião cristã sobre a saúde pública e privada;
- Breves considerações sobre o casamento;
- Medicina e ciência filosófica.
O Estado brasileiro, ainda fortemente atado aos resíduos daestruturacolonial,e sem condição paraatenderàsnovas necessidades que acompanharam as transformações sociais, plantou a semente do ensino particular no oitavo artigo do novo regulamento de1833 das Faculdades de Medicina, sancionadocomoleipela Câmarados Deputados: O ensino da Medicina fica livre; qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, poderá estabelecer cursos particulares sobre os diversos ramos das ciências e acessórias e lecionar à sua vontade, sem oposição alguma da parte das Faculdades.
Esseimportante item da regulamentaçãodoensino médico permaneceu até o final do Império,quando os diplomas ainda traziamimpresso podeis exercer e ensinar livremente a Medicina, tendo contribuído para o aparecimento posterior do professor livre-docente.
A necessidadesentidaparasuperar as graves deficiênciasdoensinoestava assentada emdoisaspectos: o gritante distanciamento da realidade social e aimpossibilidade de os formandos atenderem às exigências dos grupos privilegiados em ascensão,querecebia as notícias dos avanços da Medicinaeditadasnas revistas parisienses.
O primeiro aspecto e o mais grave não obteveresposta,porqueestavaassentadonas necessidadesda maior parte da população, desorganizada nas suas aspiraçõessociais.Restava a este estrato da sociedade procurar salvaguardar a saúde nos agentes da medicina empírica.Contudo, o segundo aspecto damesmaquestão gerou imediatarespostadentroeforada estruturado ensino. Foram organizados vários cursos deespecializaçãodados por ilustres médicos que nãofaziampartedoquadro docente, principalmenterelacionados com as doençasmaiscomuns dos mais abastados.Os cursos eram fartamente divulgadosna imprensaleiga, detalmodoquetodaapopulaçãotomava conhecimento deles e desestimulava os que pretendiam viajarà Europa na procura de melhor assistência médica.
O acesso aos cursos de Medicina tornou-se mais difícil aos pretendentes situados fora de certo padrão socioeconômico. Passaram a ser exigidos os conhecimentos de inglês, francês, português, latim, filosofia, aritmética e geometria. As barreiras aumentavam porque as tarefas do aprendizado ocupavam todo o dia, não sobrando tempo para o aluno ganhar o seu próprio sustento. Não eram muitas as famílias que podiam manter o filho durante seis anos somente estudando. Se for considerado que só havia duas faculdades de Medicina, em Salvador e no Rio de Janeiro, recebendo alunos de todo o país, a despesa com a manutenção aumentava muito. Apenas os filhos dos grandes proprietários de terras, comerciantes ou nobres podiam estudar Medicina, porque eles tinham a exclusiva garantia do sustento.
Nessas condições, a abertura do ensino aos professores sem vínculo com a faculdade foi concretizada sem resistênciadeambas as partes.De um lado, interessavaàadministração compensar as deficiências escolares do aprendizado e, de outro, o corpo discente podia arcar com asdespesas. Só a matrícula desses cursoscustava vinte mil réis e eram oferecidos nosjornaisde maior circulação.As aulas particulares passaram a fazerparte daformação universitária, dadas principalmente pelosestudantes que ocuparam a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Em1834, aFaculdadede Medicina doRiodeJaneiro diplomou os sete primeiros médicos, seisséculos depois da Universidade de Paris.
A convivência entre alunos e professores não foi pacífica.Osatritoscomeçaramcom asdenúnciasfeitaspelos Mordomosda Santa Casa do Rio de Janeiro, quanto às frequentes desordens.Depois de algumas negociações, os estudantesforamaceitossomente nas enfermarias masculinas;os Irmãos da Misericórdianão concordaram em expor a intimidade feminina aos alunos.
Os atritosrepetiram-senos anos seguintes e geraram umregulamentoacadêmico-policialmuitosevero,em 1835,interditandoos alunos de andarem em grupos pelacidade. Areação foiimediata.Osestudantes,junto comaimprensa, conseguiram abrandar a dureza,limitando as medidas disciplinares aointerior das salas de aula.No entanto, foi mantida a punição de trêsmeses deprisão para quem cometesseofensa injuriosa contraqualquer professor.
O climapermaneceutenso easameaçascontinuaram acesasentre as partes.A congregação endureceu nacobrançadas obrigaçõesescolares,introduzindo uma prova escrita eliminatória.Estenovofatomotivou, em 1871, arebeliãodos estudantes pela falta de professores,livros e laboratórios.Novasconfusõessurgiramna convivência universitária com a volta da presença obrigatóriaàs salas deaula. Muitos alunos foram reprovados pelaausênciae reagiram destruindo completamente os poucos laboratórios em 1879.
Apesar de ter havido produção de textos médicos, eram insuficientes às necessidades discentes que continuavam estudando nos livros dos autores franceses, ingleses e alemães.
Enquanto o corpouniversitárionoRio deJaneiro continuavaajustando-se nem sempre pacificamente, aspublicações médicascontinuavam trazendo, de forma contundente,adiscussão maiordas fases de conflitode competência nas práticas de cura entre a Medicina e a religião.
Amesmasituação foi sentida de diferentes formas em váriascidadesbrasileiras, de tal modoque gerourespostas semelhantes:aperseguiçãosistemáticaaos agentes da cura da medicina empírica por parte da medicina oficial. OEstado perseguia meia dúzia dos benzedores mais destacados pelacompetênciaporque disputavam o espaço com os médicos e ignoravadezenas de outros.
A atitude dúbia acabava satisfazendo a todos porque tendia a não modificar a situação: os pobres continuariam organizando a luta pela sobrevivência em torno da medicina empírica e da medicina divina; os mais ricos mantinham a maior facilidade de acesso à Medicina oferecida pelo Estado.
Emalgumasocasiões,odiscurso da medicina oficialtornava-seclaronadisputadoespaço, que acreditava ser exclusivamenteseu;em outras, reconhecia oconflitode competência einvestiaabertamente contraos curadores populares, mesmo sem poderassumircompletamente a responsabilidade de assistência à saúde da população, outras vezes, resolvia assumir completamente a suahistórica relação com a religião, ao mesmo tempo em que tambémidentificavaa perigosa competição com a medicina empírica.
Relembrando que o domínio militar holandês em Pernambuco, no século XVII, possibilitou o encontro de três grupos de atores:
– Médico holandês Guilherme Piso e acompanhantes;
– Médicos formados em Coimbra;
– Pajés.
Piso nasceu em Leyden (Holanda), em 1611, e diplomou-se em Medicina na cidade Caen, na Normandia francesa, em 1633. Chegou ao Brasil em 1637 e ocupou a chefia dos Serviços Médicos das Índias ocidentais. Permaneceu em Pernambuco durante sete anos e nesse período coletou material e realizou inigualáveis observações que culminaram na elaboração dos livros “História Natural e Médica da Índia Ocidental” (Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957). Retornou à Holanda, em 1644, tendo exercido a prática médica, em Amsterdã, até 1678, quando morreu.
Antes da conquista holandesa, a Medicina colonial brasileira estava exclusivamente atrelada às farmácias dos jesuítas. As famosas fórmulas mágicas desses religiosos estavam indicadas para todas as doenças, algumas muito específicas dirigidas ao desespero de certas famílias, como o “cozimento para a virgindade perdida”, do Irmão Boticário Manoel de Carvalho. Por outro lado, a interferência do poder eclesiástico sobre os governadores era tão intensa que, em 1707, D. Sebastião Monteiro ordenou que os poucos médicos da corte não tratassem os doentes que não se confessassem e comungassem.
Com a nova diretriz imposta por Piso foi possível reunir, no hospital do Forte de São Jorge, vários médicos e cirurgiões-barbeiros, alguns judeus fugidos das acusações da contra-reforma promovida pela Igreja na Europa. Entre os atendimentos médicos, Guilherme Piso tomou conhecimento da medicina empírica indígena e, de modo genial, comprovou que ela curava mais que as amputações indicadas pelos cirurgiões-barbeiros.
No seu livro “História Natural do Brasil”descreveu várias doenças infecciosas. No capítulo, “Das lombrigas”, identificou corretamente o Ascaris e oEnterobius vermicularis, dois dos parasitos intestinais mais comuns no Brasil, afirmando que poderiam ser encontrados no estômago, vesícula biliar e coração, caracterizando de forma incontestável que também realizava necropsias, na mesma época em que, na Europa cristianizada, essa prática era absolutamente proibida.
O médico holandês reconheceu, em diversas passagens dos seus livros, a superioridade dos remédios indígenas sobre os prescritos pelos médicos europeus: “Os índios prescindem de laboratórios, a demais, sempre têm a mão sucos verdes e frescos de ervas. Enjeitam os remédios compostos de vários ingredientes, preferem os mais simples”.
Capa do livro de Guilherme Piso História Natural e Médica da Índia Ocidental, Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957)