ANATOMIA: MARAVILHOSO DESVENDAR DO CORPO HUMANO

João Bosco Botelho Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A história evidencia com fartos registros que o estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou dificuldades nas estruturas de poderes das crenças e idéias religiosas, notadamente, nas do monoteísmo. A formidável resistência está amparada no dogma de o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, em Ge 1, 26, 27:

Deus disse “Façamos o homem à nossa semelhança, como nossa semelhança”, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas feras e todos os répteis que rastejam a terra

Deus criou o homem à sua imagem

à imagem de Deus ele o criou,

o homem e a mulher ele os criou.

          Os teóricos do monoteísmo obrigaram-se a contornar dois empecilhos refletidos na realidade: a forte tradição politeísta anterior e a diversidade humana. Foi precisamente nessa superação que a narrativa da criação se transformou no ponto culminante da epopéia teológica monoteísta.

          O cristianismo introduziu algumas mudanças importantes na estrutura do espaço sagrado oriunda do judaísmo. Ao contrário dos israelitas, acrescentou oposição entre o físico e o espiritual em Mt 10,28: Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aqueles que podem a alma e o corpo na geena.

O Homem plenamente concebido como dual, isto é, corpo e espírito, deveria ser o instrumento para servir a Deus em 1 T 5,23: O Deus da paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo.

          O Novo Testamento manteve do Antigo Testamento o mesmo sentido mítico em torno do sangue em Mt 16,17: Bem aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne ou o sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está no céu.

1 Cor 15,50: Digo-vos irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade.

Igualmente como o sangue dos animais sacrificados por Moisés inaugurou a Antiga Aliança entre Deus e o povo eleito, a Nova e Eterna Aliança foi sacramentada por Jesus com o seu próprio sangue em 1 Cor 11,25: Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei‑o em memória de mim.

            No islamismo, as barreiras seguiram atadas em construções semelhantes. A palavra correspondente de anatomia em árabe — “ilm al‑tasrib” — é precedida pela raiz “saraha” que significa trinchar, cortar, separar.

Como o islamismo entendeu a criação dependente e sequenciada em Sura 23,13‑14:

Depois, transformamos o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e revestimos o osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o melhor dos criadores), a inevitável intervenção do exame, dilacerando a carne, foi seguidamente impedido pela convicção de que a integridade do corpo era indispensável à condução da boa morte.

          Os médicos, cirurgiões, artistas e pintores, no Renascimento europeu, começaram um movimento conjunto para levantar o véu opaco cobrindo os músculos e as vísceras. A harmonia dos limites interiores do corpo desvendado encantou todos e fez vibrar também a caneta dos poetas e os pincéis dos artistas.

A sensibilidade de pintores extraordinários trouxe a forma anatômica escondida pela pele. Rembrandt, (1632), Lição de anatomia do Dr. Tulp.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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