ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTORICIDADE DA ÉTICA E

A POSSIBILIDADE DE ETICIDADE PRÉ SOCIAL

João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

É razoável pensar a Medicina e o Direito como partes fundamentais da ontogenia, ambas voltados à valorização da vida em torno da ética e da moral estruturando os bons resultados: os agentes da Medicina controlando a dor e empurrando os limites da vida e os agentes do Direto construindo mecanismos sociais e políticos para evitar a antijuricidade.  

O alfabeto grego possui duas letras “e” longo = eta e o “e” curto = epsílon. Dessa forma, êthos com a letra eta significa: característica, modo habitual de se comportar; éthos com a letra épsilon, corriqueiro, costume, usual. O processo histórico linguístico impôs semelhança etimológica entre os dois termos: ambos estão vinculados à virtude. Talvez também por essa razão, no cotidiano, a ética oriunda da tradição grega tem caminhado ao lado da moral.

A palavra “moral” é de origem latina, “mores” significa “costume”, mas não qualquer costume, e sim estritamente aderido à virtude. Assim, Kant de modo genial caracterizou a ação moral, em caráter universal, plena de virtude e realizada, exclusivamente, por dever legalista, em respeito às leis.

Em muitas circunstâncias, essa característica universal da ação moral, citada por Kant, isso é, a busca incessante para que o comportamento humano estivesse sempre ao lado da virtude, independente do processo fiscalizador, ultrapassa as relações sociais em si mesmas. Não é impertinência pensar que esse desejo humano, desde um passado impossível de precisar, de valorizar a virtude, como antagonismo ao vicio, seja um processo sócio-genético gerado ao longo da humanização, ligado à sobrevivência desde os ancestrais mais distantes.

Incontáveis culturas, nos quatro cantos do mundo, pelo menos desde os primeiros registros de natureza religiosa e laica, continuam lutando para instrumentalizar regras valorizando a ética junto da moral como características insubstituíveis e universais, como genialmente Kant descreveu, da condição humana.

Dessa forma, é possível articular um pensamento teórico entendendo esse conjunto como pré-social, isto é, inserido na herança genética, ao longo da ontogenia, resultando na existência de uma ou mais memórias-sócio-genéticas (MSGs)* ligadas à valorização da virtude, da moral, da ética, como instrumentos para adequar a sobrevivência coletiva e superar os contrários que dissolvem sem reconstruir. Simultaneamente, essas MSGs também interferem na manifestação pessoal e coletiva do desprezo ao vício que corrompe e compromete a sobrevivência.

* A proposta teórica das memórias sociogenéticas, interligando o meio vivido e as emoções sentidas à epigenética capaz de produzir mudanças no genoma, está publicado:

BOTELHO, JB. O deus genético. Manaus. Editora Universidade Federal do Amazonas. 2000. p. 11-146.

Esse conjunto organizador social presente nas MSGs da espécie humana, vinculado à sobrevivência, atado ao ajuste ético-moral, no processo da ontogenia, amparando a vida pessoal e coletiva claramente desprezando o vício (aqui compreendido como oposição ao ético-moral, à virtude) se manifesta socialmente por meio de categorias metamórficas, também presentes nos cinco continentes, entre culturas que nunca mantiveram contato, amparando a sobrevivência pessoal e coletiva, com forte participação da Medicina e do Direito.

É possível entender a possibilidade da existência da ética pré-social, que amparam as práticas da Medicina e do Direito, por meio de certas categorias metamórficas:

– Linguagens-culturas;

– Idéias e crenças religiosas edificando pontes entre os seres-tempo (pessoas visíveis, mensuráveis) e os seres-não-tempo (deuses e deusas invisíveis, não mensuráveis);

– Relações médico-míticas exigindo comportamentos específicos, inseridos em éticas valorizando a fidelidade, para que os seres-tempo recebam as dádivas de justiça e curadoras de doenças e sofrimentos dos seres-não-tempo;

– Dores-históricas trazendo à memória certos sofrimentos coletivos, sempre lembrados por meio do conhecimento historicamente acumulado e socialmente muito mais poderoso e significativo de que as dores-pessoais. Podem atuar como efeitos multiplicadores dos alertas pessoais e coletivos, ligadas às lembranças recentes e ancestrais, contra situações visíveis ou imaginadas que lembram dores ou ameaças dos sofrimentos.

O fato de na atualidade, ainda não existem mecanismos na engenharia genética capazes de identificar os genes e as respectivas proteínas que ativam as MGSs, não invalida a construção teórica da existência da ética pré-social.

É difícil atribuir a atávica busca da virtude somente às relações sociais!

Em incontáveis ações humanas, sejam pessoais ou coletivas, nos grupos sociais das mais diversas etnias, nos quatro cantos do planeta, existem fortes indicativos de esse encanto coletivo pela virtude, ético-moral voltado ao bem comum, ligando práticas de cura e anseios de justiça, seja motivado por impulsos que transcendem o exclusivamente social.

Sob essa perspectiva, os significantes da ética ligada à moral, oriundos da escrita grega, com o “e” longo, o eta, ou com o “e” curto, o épsilon, reproduzem importantes e indispensáveis mecanismos sócio-genéticos da sobrevivência da espécie humana, materializados nos códigos de ética de muitas atividades, nas quais as éticas da Medicina e do Direto são duas entre outras construções, ao longo da ontogenia, que valorizaram o bem, o bom, o certo, como antagonistas do mau, do ruim, do errado.

Práticas e agentes da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial

Ainda em torno da associação entre o ético-moral gerando o bem, o bom, o certo, antepondo-se ao vicio ligado ao mal, é interessante assinalar um ensaio teórico para apreender a ética médica integrada à virtude. Na tese de doutorado, defendida em Paris, em 1955, intitulada “A ética médica”, o professor Derrien, firmou relações conceituais da ética médica voltada ao benefício do paciente, isto é, aos bons resultados das práticas médicas.      

No entendimento desse conceituado professor, é possível entender a virtude kantiana nas práticas médicas, obrigatoriamente, ligada ao “bem”, ao “bom”, no qual o médico controla a dor e adia os limites da vida, sempre festejado pelo doente. Dessa forma, seria inadmissível pensar a Medicina como uma especialidade social para provocar a dor ou a morte. Essa vertente ligando a ética médica aos bons resultados entendidos como “boas práticas”, gerando bem-estar ao doente, está presente na historicidade e na maior parte das atuais abordagens teóricas referenciais.

Nesse sentido, é possível resgatar relações do conhecimento historicamente acumulado atando a ética médica à boa prática, entendida pelo senso comum como aquela que oferecia bons resultados às demandas da clientela por meio de ações que deveriam, obrigatoriamente, trazem melhorias à vida pessoal e coletiva.

A historicidade dos códigos de éticas da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial se construiu entendendo os respectivos curadores como especialistas sociais que devem saber controlar a dor e aumentar os limites da vida:

– Medicina-divina:

Fortificada nos templos dedicados às muitas divindades, cujos agentes, sacerdotes e sacerdotisas, reconhecidos como intermediários dos seres-não-tempo, deusas e deuses curadores, com forte destaque social, ofereciam a cura e a adivinhação por meio de rezas e encantamentos. Como uma facção muito forte, nesse conjunto, os adivinhos floresciam como alternativas para superar as adversidades futuras. Nesse caso, quem se mostrasse capaz de adivinhar o futuro para impedir a doença ou o sofrimento, além de desfrutar da imaginada ligação com os seres-não-tempo, também eram reconhecidos como curadores competentes. Apesar de terem existido outras fórmulas divinatórias, especialmente na Mesopotâmia, a leitura do fígado do carneiro sacrificado ritualmente era a mais importante, a ponto de terem produzidos vários textos em escrita cuneiforme, que ensinam os procedimentos mais adequados para adivinhar o futuro por meio da hepatoscopia. É possível que a escolha do fígado como a parte corpórea mais importante estivesse relacionada ao predomínio sanguinolento do órgão, mesmo imediatamente após a morte do animal, reproduzindo conhecimento historicamente acumulado, muito anterior ao sedentarismo, do sangue como elemento vital que ligava os ancestrais aos outros animais. Enfim, alguns registros, nas tábuas de escrita cuneiforme, atestam que os agentes das três Medicinas, na Mesopotâmia, além de curadores e encantadores, eram reconhecidos como exímios adivinhos. Essa característica dos curadores, na Mesopotâmia, não passou despercebida aos que redigiram alguns livros do Antigo Testamento, no período do cativeiro mesopotâmico, que demonstram forte influência da adivinhação.

– Medicina-empírica:

Desde o passado distante, nas primeiras cidades, também com forte partilha com as idéias e crenças religiosas, os agentes que compreendem parteiras, erveiros, encantadores e benzedores, homens e mulheres sem escolaridade, exercem as práticas fora dos templos. Até hoje, em muitas linguagens-culturas, são respeitados e festejados. Particularmente importantes porque dominam certos conhecimentos historicamente acumulados dos recursos da natureza circundante.

Heródoto, no seu extraordinário livro “História” descreveu um dia de festa, numa praça, na Mesopotâmia, quando doentes e curadores se encontravam, para buscar as curas das doenças nos exemplos de doentes que tiveram algo semelhante e se curaram fazendo ou bebendo isso ou aquilo. Ao cruzarem com alguém que apresentava sinais e sintomas de alguma doença que sabiam como curar, os curadores paravam para orientar, oferecer o tratamento.

 – Medicina-oficial:

Muitíssimo mais recente em relações as anteriores, tanto na Mesopotâmia, quanto em outras culturas que se organizaram e prosperaram, no segundo milênio a.C., os processos dos aprendizados, amparados pelos poderes dominantes, na formação do médico, como o único agente da Medicina-oficial, estavam dentro dos templos das divindades curadoras mais importantes. Também por essa razão, é possível compreender, historicamente, certos laços da Medicina-oficial com as idéias e crenças religiosas. Por outro lado, também é importante relembrar que, desde aquelas culturas, tem havido inter-relação entre os agentes das Medicinas-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial.

A Medicina-oficial é a única que construiu, desconstruiu e continua reconstruindo propostas teóricas para desvendar as etiologias das doenças nas dimensões cada vez menores da matéria. Historicamente, tem vencido as barreiras para diminuir a abstração e aumentar a materialidade das doenças.

O Direito de igual modo também construiu, ao longo de milhares de anos, a estrutura sustentadora da credibilidade coletiva para nortear o bom, o certo, o belo. Dessa forma, não é inconveniência argumentar que o desejo coletivo de administrar os conflitos, que certamente estavam presentes tanto nos ancestrais muito distantes de caçadores-coletores quanto nos mais próximos, após a sedentarismo, moldaram pensamentos e comportamentos igualmente inseridos nas memórias-sócio-genéticas.

Parece razoável pressupor que o conhecimento historicamente acumulado, desde os primeiros registros do médico e do julgador como personagens sociais, se ajustou na maior inclusão dos curadores e dos julgadores, aqui, compreendidos:

– Agentes das práticas curadoras: tanto os médicos, como representantes da Medicina-oficial, aquela amparada pelo poder dominante, quanto os benzedores, erveiros, parteiras, sacerdotes, encantadores e muitos outros agentes da Medicina-divina e da Medicina-empírica.

– Agentes das práticas julgadoras: tanto os ligados ao poder dominador quanto os que intermediavam os incontáveis conflitos que nunca chegavam ao conhecimento da administração.

Nos mesmos milhares de anos, os curadores e julgadores que não conseguiram firmar o reconhecimento coletivo em torno da competência na solução dos problemas expostos pelos postulantes, não recebiam o reconhecimento coletivo.

Entre esses dois grupos — aquele obtendo bons resultados e os que não satisfaziam as demandas pessoas e coletivas —, as organizações sociais, em diferentes instâncias, ao mesmo tempo em que reconheciam e nominavam o médico e o julgador, compondo parte do conjunto das profissões que conviviam em conflito e reconstruindo, procuraram refletir, identificar, coibir e punir as más práticas e estabelecendo fortes critérios na edificação da historicidade da ética do médico e do julgador.

De modo geral, a má prática esteve e, de certo modo, continua mais ligada ao resultado desfavorável na Medicina e no Direito, o fracasso na busca da cura pelo doente e a sentença considerada injusta. Nenhum procedimento, na Medicina e no Direito, no passado e no presente, tem sido aceito se provoca, respectivamente, piora de qualquer natureza no enfermo ou a suspeição de não ter sido justa.

Esse esboço normativo ético-moral voltado aos bons resultados, no movimento de secularização das práticas da Medicina e do Direito, claramente exposto no Código de Hammurabi, no século 16 a.C., culminou com o aparecimento na Grécia, no século 4 a.C., do conceito de deontologia (do gr. déontos, “o que é obrigatório, necessário” + logia), que evoluiu para “o estudo dos princípios, fundamentos e sistemas de moral”.

A palavra deontologia, em torno do conjunto ético-moral, alcançou a maior parte das especialidades sociais. Na Medicina, apareceu pela primeira vez, em 1845, no Congresso Médico de Paris, no trabalho do médico M. Simon intitulado “Deontologia médica ou dever e direitos dos médicos no estado atual da civilização”. No Direito, em época eqüidistante, por meio dos escritos do filósofo inglês Jeremy Benthan, considerado fundador do Utilitarismo.

De modo interessante, os códigos de ética do médico e do julgador comportam fundamentos estruturantes deontológicos semelhantes:

– O médico e o julgador devem estar sempre a serviço do indivíduo, respeitando a vida e sua dignidade;

– O médico e o julgador devem exercer a profissão com liberdade de decidir.

Construções das éticas da Medicina e do Direito ajustadas à busca da materialidade, respectivamente, da doença e do delito, nas primeiras cidades

Nas culturas que se desenvolveram mais intensamente, durante no segundo milênio a. C., no Oriente, as práticas médicas também estavam claramente dependentes das idéias e crenças religiosas por meio de muitos deusas e deuses taumaturgos. Não existia um processo teórico para explicar a saúde, a doença e os delitos fora das idéias e crenças religiosas.

O primeiro a reconhecer e legislar a prática médica e os julgadores, atribuindo claramente deveres e direitos aos médicos e dos julgadores, além de estabelecer o valor do pagamento pelos serviços e penalidades pela má prática médica, foi o rei Hammurabi (1728-1686 a.C), da Babilônia, autor do código de Hammurabi.

Em 1531 a.C., o rei Hitita Mursuli I saqueou e incendiou a capital babilônica. O último descendente de Hammurabi, Sansuditana (1561-1531 a.C.) parece ter morrido nessa batalha. Acredita-se que os islamitas, sob o comando do rei Shutruknahhum, invadiram a Babilônia no ano 1.155 a.C. e levaram como presa de guerra para Susa a pedra de diorito negro, onde está gravado na escrita cuneiforme, o código de Hammurabi.

Foi a expedição arqueológica francesa de Morgan, nas escavações da acrópole da capital islamita de Susa, quem encontrou o diorito negro com dois metros de altura, contendo o código, hoje, conservado no Museu de Louvre, em Paris.

Apesar de o código de Hammurabi não ter sido a primeira tentativa de legislar os conflitos envolvendo médicos e julgadores, fora das crenças e idéias religiosas, sem dúvida, foi pioneiro para reconhecer o trabalho do médico arbitrado pelo julgador como capaz de administrar os conflitos sociais suficientemente forte para provocar resposta disciplinadora da autoridade dominante.

Antes de Hammurabi, outros dirigentes legislaram, no Oriente Antigo, as relações sociais do homem. Os mais conhecidos foram: o código do rei Ur-Nammu (2050-2030 a.C.), a coleção de leis de Urukagima, de Lagas, da mesma época, o código do rei Bilalama, de Eshnuma, (1825-1787 a.C.) e o de Lipit-istar, de Isin, (1875-1865 a.C).

O Código de Hammurabi permite entender certos critérios, sempre em torno dos bons resultados, das leis que regiam a ação médica, na Babilônia, governada pelo rei Hammurabi. Se pensarmos que as leis também exercem função de evitar conflitos, os artigos penalizando ou premiando o médico, por estarem na mesma coluna daquela regulamentando as profissões dos barbeiros, pedreiros e barqueiros, é possível pressupor um elo comum: se tratavam de categorias envolvidas em conflitos inquietantes à administração. Dessa forma, somente a ação do julgador, ligado ao poder dominador, estaria suficientemente organizado para mediar os conflitos geradores de dissolução social.

Torna-se necessário para a compreensão da importância social das práticas médicas e julgadoras naquela região, conhecer a divisão dos diferentes extratos sociais. O primeiro e mais importante grupo que compunha a sociedade babilônica, rigidamente hierarquizada, os awilum, homens e mulheres livres, funcionários da administração pública e pagos pelo rei, julgadores, escribas, sacerdotes, comerciantes, camponeses e grande parte dos soldados. O segundo grupo compreendia os muskenum. Apesar de os registros históricos serem escassos e não se sabe exatamente o papel social desempenhado por eles, sabe-se que exerciam papeis intermediários entre os awilum e os escravos.

A regulamentação da ação médica contida no código de Hamurabi cita a inequívoca relação da ética do médico ligada aos bons resultados do trabalho médico, onde o julgador é o árbitro absoluto.

No parágrafo duzentos e quinze e nos seguintes consta:

  • 215: Se um médico fez em um awilum uma incisão difícil com uma faca de bronze e curou o awilum ou se abriu a nakkaptum (supercílio) de um awilum com uma faca de bronze e curou o olho do awilum: ele tomará dez cicios de prata.
  • 216: Se foi o filho de um muskenum: tomará cinco cicios de prata.
  • 217: Se foi o escravo de um awilum: o dono do escravo dará ao médico dois cicios de prata.
  • 218: Se um médico fez em um awilum uma incisão difícil com uma faca de bronze e causou a morte do awilum ou abriu a nakkaptum de um awilum com uma faca de bronze e o destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão.
  • 219: Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de um muskenum e causou a sua morte: ele deverá retribuir um escravo como o escravo morto.
  • 220: Se ele abriu a sua nakkaptum com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço.
  • 221: Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico cinco cicios de prata.
  • 222: Se foi o filho de um muskenum: dará três cicios de prata.
  • 223: Se foi o escravo de um awilum: o dono do escravo dará dois cicios de prata.
  • 224: Se um médico de boi ou de jumento dez uma incisão profunda em um boi ou em um jumento e curou-o: o dono do boi ou do jumento dará ao médico como seus honorários meio cicio de prata.
  • 225: Se ele fez uma incisão difícil em um boi ou jumento e causou a morte do animal: dará ao dono do boi ou do jumento a metade do seu valor.

Após quase quatro mil anos de o Código de Hammurabi ter sido elaborado, existem diversos pontos naquelas leis que merecem reflexão:

– A primeira presença do julgador entre a prática médica e o doente fora da influência das idéias e crenças religiosas, isto é, a primeira manifestação laica do Direito e da Medicina;

– Monetarização do trabalho médico para os agentes da Medicina;

– Os agentes da cura, inclusive o médico, recebiam de acordo com a complexidade do trabalho, com o sucesso alcançado pelo tratamento e camada social do doente;

– A penalidade mais severa se a má prática fosse a alguém livre e socialmente destacado. Esse ajuste sócio-político do julgador também é importante sinal da historicidade do Direito atado ao poder dominador.

Também é necessário repetir como as leis também surgem a partir das necessidades sociais, é admissível supor que as leis babilônicas, no Código de Hammurabi, foram feitas para coibir o grande número de maus resultados que geravam conflito social. Dessa forma, o Direito e a Medicina, nesse ponto, inauguraram níveis de conflitos que continuam se reconstruindo até os dias atuais, isto é, o julgador se interpõe favorecendo os interesses pessoais e coletivos frente algumas práticas médicas consideradas desajustadas à ética e à moral. 

As principais fontes históricas que fornecem informações das práticas médicas e da presença dos julgadores, na Mesopotâmia, são as tábuas de escrita cuneiforme da biblioteca de Assurpanibal e Hammurabi, pinturas esculturas do período de Hammurabi. Os registros também apontam que o médico babilônico, sob a atenção do Direito, iniciou processo consistente:

– Entender e dominar as formas e funções do corpo;

– Estabelecer parâmetros do normal e da doença;

– Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte fora de controle.

Um dos fortes indícios da presença da Medicina e do Direito em convívio de conflito e reconstruções, exigindo boa prática dos médicos, gerando respostas que beneficiaram os doentes,  reconhecidos pelas estruturas de poderes, é exatamente o Código de Hammurabi, do fim do século 16 a.C. Na realidade, constitui a primeira estrutura de leis contendo os direitos e deveres dos médicos, estabelecendo o pagamento pelos bons serviços e severas punições pela má prática, associando a boa Medicina ao bom resultado. Também é interessante assinalar que os preços e castigos variavam de acordo com o estamento social do doente. Os maiores preços pelos serviços prestados e castigos mais severos pelos maus resultados estavam ajustados aos doentes mais ricos e socialmente importantes.

Os registros médicos nas tábuas de argilas são claros quanto as descrições precisas de muitas doenças: malária, hepatite, tumores no pescoço, amigdalite, fraturas com ou sem complicações, febres, transtornos mentais e outras.

Dos 282 artigos do Código de Hammurabi, 12 deles regulavam os trabalhos dos médicos, contidos num conjunto de outros que também tratava dos direitos e deveres dos veterinários, barbeiros, pedreiros e barqueiros;

– As 12 leis que identificavam as boas e más práticas médicas estão voltadas aos resultados de cirurgias. Como as leis são construídas para controlar as situações sociais conflituosas afetando a coesão social, é possível teorizar que os conflitos entre médicos e doentes eram mais significativos nos procedimentos invasivos;

– Os direitos e deveres dos médicos que executavam procedimentos invasivos e os dos doentes submetidos às cirurgias estavam vinculados, estritamente, à ordem escravista numa sociedade rigidamente hierarquizada. Nesse sentido, o pagamento pela boa prática e o castigo para má prática, eram proporcionais à importância social do doente, respectivamente, quanto maior a posição social do doente, mais dispendioso o pagamento e os castigos mais severos;

É importante ressaltar que o Código de Hammurabi legislando de modo explícito os direitos e deveres dos médicos e doentes, somente nos procedimentos cirúrgicos, em detrimento de outros que não foram citados, sugere que os conflitos sociais determinados pelas más práticas e/ou maus resultados alcançaram níveis de conflitos suficientes para gerar respostas administrativas por meio do julgador credenciado pelo poder dominante.

Novamente, parece ser adequado refletir que essa presença do Direito, no controle da prática médica, valorizando mais aos bons resultados, está de acordo com aspiração para manter a vida. Dito de outra forma, pelo menos desde o Código de Hammurabi, estava presente o pressuposto de associar a boa prática médica ao bom resultado, que beneficia o doente.

 Dessa forma, na Mesopotâmia, no período Hammurabi, apesar de as doenças serem consideradas como mal, associado ao pecado, determinado pela vontade dos deuses e deusas, houve o início do processo laico, para o controle das atividades profissionais dos médicos com forte presença do Direito.

Construções da ética no Egito antigo

As principais fontes históricas que fornecem informações das práticas médicas, no Egito, são:

– Livro de Heródoto, “História”;

– Papiros médicos;

– Pinturas e esculturas.

Do mesmo modo que na Mesopotâmia, no Egito no segundo milênio a.C.:

– A doença era considerada como mal causado pelos deuses e deusas como forma de castigo ao desobediente da vontade divina;

– Inexistência de processo teórico capaz de estruturar a Medicina fora das idéias e crenças religiosas;

– Os tratamentos eram espécies de receitas de bolo, usadas sem variações. Contudo, algumas são particularmente muito interessantes porque além de prescreverem corretamente, como o uso do digital para as doenças do coração, adicionavam prognósticos, em duas vertentes, as doenças curáveis e as incuráveis;

– O médico era um especialista social reconhecido e remunerado pela administração do faraó;

– Os médicos com diversas especialidades e funções administrativas eram identificados com nomes diferentes, prestavam serviço em várias áreas: na corte, templos, minas e cidades conquistadas.

É possível que os conflitos entre médicos e pacientes não tenham alcançado níveis suficientemente intensos para gerar a presença do julgador para organizar os procedimentos médicos. No Egito, antigo, não se conhece código legislando as práticas médicas, semelhante ao de Hammurabi.

Construções da ética da Medicina e do Direito ligadas à valorização da vida, na Medicina e no Direito, na Grécia, anterior ao século 4 a.C.

Nas práticas médicas, as principais fontes históricas são os dois livros de Homero, “Ilíada” e “Odisséia”. Contudo é no magnífico “Ilíada”, cuja narrativa em forma de versos, durante o nono ano da guerra de Tróia, que é possível entender as práticas médicas gregas, anteriores ao século 4 a.C., semelhantes as da Mesopotâmia e do Egito, isto é, com forte dependência das idéias e crenças religiosas.

No Direito, com maior avanço em relação à Medicina, a função do julgados esteve intimamente ligado à polis, onde a estrutura administrativa reforçou de modo marcante, em relação às culturas anteriores, o sentimento pessoal e coletivo na aplicação do justo do belo, do harmônico, também valorizando a vida e desprezando vício. Nessa fase, os registros já evidenciavam os elos entre o ser e a sociedade, sem ser possível entendê-los dissociados (Homero, Ilíada, IX, 63).

Apesar de existir a Medicina-oficial e médicos reconhecidos socialmente, eram muito fortes as relações das práticas médicas com deuses e deusas curadores e/ou provocadores de doenças.

Como nas culturas na Mesopotâmia, Índia e Nilo, na Grécia homérica também não havia um processo teórico para compreender a Medicina fora das crenças e idéias religiosa: as doenças eram consideradas como mal e causadas pela vontade dos deuses e deusas.

Do mesmo modo, apesar dessa forte ligação, os representantes das três Medicinas, divina, empírica e oficial, também pensaram e praticaram tratamentos para curar as feridas da guerra de Tróia, com claros registros nos livros de Homero, para controlar a dor e ampliar os limites da vida. O genial escritor e historiador grego, apesar da forte presença dos deuses e deusas do panteão grego, amparando as práticas médicas, descreveu detalhes de condutas cirúrgicas e curativos, indicadas nos ferimentos de guerra: os bons resultados dos médicos, especialmente os obtidos pelos exímios cirurgiões, filhos de Asclépio: Macaon e Podalírio, receberam fervorosos elogios.

Os registros de Homero enalteceram os bons resultados do trabalho médico e distinguem a pericia do curador, seja humano, um deus ou uma deusa, avizinhando a prática médica grega dos séculos 7 e 5 a.C. da do segundo milênio a.C., nas culturas mesopotâmica e egípcia, sem registros de processo teórico para explicar a saúde e a doença fora das crenças e idéias religiosas.

Construções da ética da Medicina e do Direito ajustadas à busca da materialidade da doença na Grécia do século 4 a.C.

O marco organizador da nova e fundamental etapa da Medicina e do Direito na construção dos procedimentos éticos atados à busca da materialidade da doença e do delito.

Na Medicina, foi a escola de Cós, sob a liderança de Hipócrates. Apesar de saber-se, pelos indicativos etimólogos e lingüísticos, que das 72 obras contidas no “Corpo Hipocrático”, conjunto de textos produzidos na ilha de Cós, somente 12 foram reconhecidamente escritos por Hipócrates. Esse conjunto filosófico-médico iniciou o processo da separação da Medicina-oficial das idéias e crenças religiosas.

Nesse contexto, um dos livros mais importantes, “Da Medicina Antiga”, escrito por Políbio, genro de Hipócrates, que elaborou a teoria dos Quatro Humores, a primeira estrutura edificada com o objetivo de explicar a saúde e as doenças fora das idéias e crenças religiosas. O processo teórico explicita o corpo humano constituído de quatro humores: sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso preto. A saúde seria consequente ao equilíbrio dos humores e a doença apareceria após o desequilíbrio, isso é, a predominância de um sobre os outros.

É importante ressaltar que Políbio estratificou a teoria dos Quatro Humores atada à teoria dos Quatro Elementos de Empédocles. Esse genial médico e filósofo pré-socrático, tentando entender o mundo, fora das idéias e crenças religiosas, explicou mundo visível por meio da combinação de quatro elementos fundamentais: água, terra, fogo e ar. Desse modo, para cada elemento de Empédocles, existiria um humor.

ArFleuma
ÁguaBile amarela
FogoSangue
TerraBile preta

Com imediata resposta à genialidade de Políbio, duas transformações mudariam a Medicina no Ocidente:

– As terapêuticas ficaram mais livres da presença dos deuses e deusas curadoras e firmaram propósito para retirar do corpo o excesso do(s) humor(es) desequilibrado(s), por meio das sangrias, suadouros, diarréias, vômitos e diurese.

– O primeiro código de ética médica – Juramento de Hipócrates – com admirável avanço indicou, simultaneamente, a necessidade de os bons resultados estarem unidos ao respeito à dignidade do doente.

Por essa razão, usando a linguagem do filósofo francês Gaston Bachelar, é possível considerar esse acontecimento – a teoria dos Quatro Humores – como o primeiro corte epistemológico da Medicina-oficial.

A obra bachelariana, na história da ciência, em especial, no livro “A epistemologia”, voltado à construção do objeto científico, o “novo espírito cientifico”, em clara ruptura com o senso comum, recusando os acúmulos de saberes e compondo a ruptura epistemológica entre os saberes antigos e os atuais.

A historicidade do Juramento de Hipócrates assinala pontos marcantes:

– Bons resultados, respeito à intimidade e autonomia do doente;

– Competência, sigilo e responsabilidade profissional.

É possível juntar outros argumentos para enaltecer o Juramento de Hipócrates. A ordenação ética sob a liderança de Hipócrates (460-375? a.C.), na Escola Médica de Cós, ocorreu no esplendor grego, contemporâneo de Sócrates (468-399 a.C.) e de Platão (429-347 a.C) e da luta entre a democracia ateniense e a oligarquia espartana na guerra do Peloponeso. É também desta fase o brilho da inteligência dos sofistas Górgias de Leontinos e Protágoras de Abdera. Nesse ambiente de intensa elaboração intelectual nasceu a base teórica da ética da Medicina.

É interessante assinalar que a amizade de Hipócrates por esses dois geniais pensadores também estava relacionada com a proximidade dos conteúdos teóricos: os três estavam voltados aos benefícios pessoais e coletivos na forma de construções éticas distanciadas dos deuses e deusas.

Górgias (480-375 a.C.), rigoroso no ascetismo teórico, retratou a imensa complexidade humana na apreensão do visível: “Nada existe; ainda que existisse não poderia ser conhecido; ainda que conhecido, existisse e pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado aos outros.”

Protágoras (480-411 a.C), em frase curta e plena de saber, com absoluta genialidade expressou o distanciamento dos panteões divinos: “O homem é a medida de todas as coisas”. Simultaneamente, ao negar a verdade absoluta, opôs-se aos rigores extremos do controle social e político: “Não existe verdade absoluta, assim como não existem padrões morais absolutos, o que existem são coisas mais oportunas, úteis e convenientes.”

Ambos teorizaram sobre a complexidade do visível sem a intervenção divina.

Sem dúvida, Hipócrates era muito conhecido e respeitado como médico de excepcional capacidade técnica, atuando de acordo com as normas e preceitos estabelecidos pelos padrões sociais da época. Uma das testemunhas desse reconhecimento está na obra de Platão, que o mencionou no “Fédon”, em forma de diálogos, e trata dos acontecimentos imediatamente antes da execução de Sócrates, que se encontrava na prisão esperando a hora para beber cicuta, por meio do diálogo entre Fédon, discípulo de Sócrates, e Equécrates.

Essas conjunções de fatores contribuíram para a cristalização da ética nascida na Escola de Cós, acrescidas dos livros de Platão, que além de reconhecer a notabilidade de Hipócrates, deixam claros algumas características da Medicina grega desse período, com forte influência dos conceitos jônicos da natureza, entre os mais importantes a noção de físis, como elemento de ligação à materialidade da Medicina.

Nesse contexto, com certa influência jônica das igualdades do clima sobre todos, no extraordinário livro “Leis” (Livro IX, IV d), pela primeira vez na História, Platão expôs a marcante diferença entre as práticas médicas nos ricos e pobres. De modo satírico, Platão descreve que quando os médicos tratam pessoas ricas, explicam detalhadamente a doença e as características do tratamento. Ao contrário, quando consultavam os escravos, as consultas eram rápidas, sem qualquer explicação sobre a doença e o tratamento.

Um exemplo marcante da presença do pensamento jônico, valorizando a natureza ligada a saúde, é o livro “Dos ventos, águas e regiões”, de autor desconhecido, do século 4 a. C., que assegura a impossibilidade de ser bom médico os que não conheciam as características das estações do ano, o clima, os ventos, as águas e o curso do Sol. Essa posição grega, oriunda da Escola de Cós, continuou tão fortalecida, que quase vinte séculos depois, na chegada da esquadra de Cabral, no litoral baiano, o médico Mestre João, como primeira providência, na carta endereçada ao rei de Portugal, demarcou a posição astral da nova terra.

Os médicos gregos, do século 4 a.C., foram os primeiros que refutaram a forte ligação da Medicina com os deuses e deusas curadoras do panteão grego, no livro “Doenças Sagradas”, no qual afirma que as doenças ditas sagradas, como a epilepsia, que era atribuídas aos castigos dos deuses e eram tratadas pelos sacerdotes e mágicos por meio de proibições, purificações e encantamentos, nada continham de sagrado e eram conseqüência de causas naturais. Essa enorme diferença distanciou a Medicina grega das que floresceram na Mesopotâmia, Egito e Índia, e também interferiu para a construção de outra ética, que iria consolidar no “Juramento” da Escola de Cós.

Se na Mesopotâmia, nos tempos de Hammurabi, o código laicizou as remunerações pelas boas praticas e os castigos pelas más práticas, o “Juramento”, conhecido como de Hipócrates, definitivamente, marcou os pilares éticos da relação médico-paciente, e iniciou o processo de adaptação do código de ética do médico às mudanças futuras sociais, políticas e tecnológicas.

O Juramento reza:

“Eu juro por Apolo, médico, e Esculápio, Hígia e Panacéia e todos os deuses e deusas, que de acordo com minha habilidade e julgamento, cumprirei este juramento e estes compromissos: respeitar quem me ensinou esta arte como se fora meu pai; repartir com ele os meus bens; suavizar suas necessidades, se for necessário; olhar para seus filhos como se fossem meus irmãos; ensinar-lhes esta arte se quiserem aprendê-la, sem retribuição nem condições de espécie alguma; e pelo preceito, leitura e qualquer conhecimento da arte aos meus próprios filhos e aos dos meus mestres e discípulos ligados por compromisso ou juramento, conforme a lei da Medicina, mas a ninguém mais. Seguirei aqueles que de acordo com a minha habilidade e julgamento considerar benéficos aos meus doentes e me absterei de tudo que for nocivo e deletério. Não darei venenos mortais a ninguém (1). Mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, do mesmo modo, não darei às mulheres pessário para provocar aborto (2). Viverei e praticarei a minha arte com pureza e santidade. Não operarei os que sofrem de pedra, mas deixarei que isto seja feito por homens que são práticos nesses ofícios (3). Qualquer que seja a casa em que penetre, lá irei em benefício dos doentes e abster-me-ei de qualquer ato voluntário de maldição ou corrupção e ainda da sedução de mulheres, jovens, libertos e escravos. Tudo aquilo que tenha relação com a prática da minha profissão, vir ou ouvir da vida dos homens, que não deve ser divulgado, não divulgarei, respeitando tudo aquilo que deva ficar secreto. Enquanto conservar sem violação este juramento, que me seja concedido gozar a vida e a prática da arte respeitado por todos os homens em todos os tempos. Que outro seja o meu destino se transgredir ou violar este juramento”.

O caráter sagrado envolvendo o Juramento e as alusões associativas da Medicina com uma espécie de doutrina de iniciados podem estar relacionados aos ritos pitagóricos e órficos.

O Juramento de Hipócrates contém algumas afirmações que podem ser analisadas:

1. “Seguirei aqueles que de acordo com a minha habilidade e julgamento considerar benéficos aos meus doentes e me absterei de tudo que for nocivo e deletério. Não darei venenos mortais a ninguém”:

É difícil assegurar se tratar da exclusiva crítica à eutanásia ou, por outro lado, dos cuidados para evitar medicamentos utilizados na época, que poderiam causar a morte, como o heléboro (erva Medicinal do gênero Veratrum da família das liláceas, que contém o alcalóide veratina com propriedades analgésicas);

2. “Mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, do mesmo modo, não darei às mulheres pessário para provocar aborto“.

A proibição do aborto é um dos aspectos mais curiosos do “Juramento”. Nenhum médico hipocrático o condenou, salvo pelas complicações que podiam ocorrer, em especial, a morte da gestante. Entretanto, existe documentação que sugere ser o aborto religiosamente impuro;

3. “Viverei e praticarei a minha arte com pureza e santidade. Não operarei os que sofrem de pedra, mas deixarei para ser feito por homens que são práticos nesse ofício”.

Este parágrafo é um dos mais polêmicos. Apesar da litíase da bexiga (do grego lithes= pedra) ter sido bem conhecida, naquela época, eram grandes os riscos da realização da cirurgia, para retirada, quase sempre provocando a morte do doente. A frase “por homens que são práticos nesse ofício” insinua o médico hipocrático preocupado com a má reputação de ter provocado a morte de um paciente.

Esses trechos podem fortalecer a idéia de que a maior de todas as preocupações éticas do médico grego era preservar a vida. O médico não poderia ser o agente da morte advinda na terapêutica! Essa é a essência do Juramento!

 O “Juramento”, voltado ao interesse do doente, mesmo com forte presença das idéias e crenças religiosas ainda no parágrafo introdutório, é o estágio divisor entre o antes e depois da historicidade da deontologia e diceologia atadas à ética médica.

Entre os imensos avanços em relação ao Código de Hammurabi, a Medicina grega iniciou outra fase:

– Ser útil, jamais nociva à vida humana (primum non nocere);

– Forte relação entre a boa prática e os bons resultados, em especial evitando a morte e não participando de nenhuma terapêutica que pudesse causar a morte;

– Introdução do segredo médico.

A vertente dominante para conceber a Medicina como suporte à vida, jamais causando malefício, também está claramente, fixada no juramento ao condenar o aborto e a cirurgia para a retirada da pedra da bexiga, ambas quase sempre determinando a morte do doente, e o médico entendido como o agente das ações. 

No mesmo “Tratado Ético”, no capitulo “A Lei”, Hipócrates afirma na primeira fase:

“A Medicina é de todas as profissões a mais nobre, e, entretanto, por ignorância dos que já a exercem e a julgam superficialmente, ela é apresentada no último plano… Mas as coisas sagradas se revelam somente aos homens sagrados, e é proibido de ensinar aos profanos e aos que não são iniciados nos mistérios da ciência”.

Parece não haver dúvida do fato que os teóricos da Escola de Cós, ao mesmo tempo em que afastavam as idéias e crenças religiosas das práticas médicas, mantiveram a “sacralidade” da Medicina. Ao mesmo tempo, essa parte do texto indicando o desprezo pela Medicina e pelos médicos, por parte de algum segmento social importante, a aproximação dos ritos órficos pode ter sido a alternativa para afastar a resistência.

Um dos vestígios históricos mais impressionantes dessa ligação da Medicina com os ritos do panteão grego é a data de comemoração do dia do médico – 18 de outubro -, que corresponde, na mitologia grega, o dia em que os deus-médico Asclépio, filho de Apolo, era celebrado na Grécia Antiga.

Ao lado desses extraordinários avanços e controle ético da Medicina-oficial, a Medicina- divina e Medicina-empírica continuavam presentes na estrutura social.

 Asclépio, o deus protetor da Medicina, filho de Apolo, também taumaturgo, e da bela Corones, era festejado no dia 18 de outubro. Asclépio foi educado pelo centauro Quirão para ser mais cirurgião do que médico, talvez para proteger os cirurgiões, já que naquela época as complicações das cirurgias eram mais frequentes se comparadas com as práticas médicas não invasivas.

 Ainda sob a perspectiva de proteger a vida, a construção do panteão de Asclépio deixou o legado de duas filhas, Hígia e Panacéia, vinculadas aos tratamentos clínicos, e dois filhos, Podalírio e Macaão, citados por Homero, que se distinguiram como cirurgiões na guerra de Tróia.

Nos séculos seguintes, Asclépio também representado por uma serpente enrolada num bastão da madeira, recebeu fama inimaginável, algumas vezes promovendo ressurreições dos mortos e curando todos os doentes que não conseguiam a saúde pelos favores de outros deuses e deusas. Contudo, temendo que a ordem do mundo fosse alterada pelas ressurreições, Zeus determinou a morte de Asclépio com os raios das Ciclopes.

Mais uma vez, a mitologia grega se ajustava à realidade do cotidiano: ressuscitar os mortos não faz parte da natureza do mundo!

Esse conjunto teórico da ética médica manteve estrita ligação com o Direito, ambos valorizando a vida, vigiando e punindo práticas que pudessem prejudicar a saúde de qualquer pessoa.

A presença dessa busca é abundante e densa de conceitos éticos e morais que integravam o homem à polis, na Grécia do século 4 a.C.:

– Platão: “As leis”;

– Aristóteles: “A Política” e “Ética à Nicômaco”.

  O teatro grego, igualmente, expôs com clareza a mesma construção na busca dos valores da vida em torno da ética e da moral, ambas enaltecendo a vida, nas tragédias de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e nas comédias de Aristófanes, como na imortal encenação de “As vespas”, esse extraordinário autor denuncia as incorreções da Justiça grega, nos últimos anos da guerra do Peloponeso, por meio de metáforas, comparando alguns julgadores às vespas que picavam cidadãos inocentes.

A importância da família é assegurada na maior parte das fontes históricas que tratam da contínua busca da Justiça: a família tornou-se um dos pilares do demos, termo que expressa os elos entre território e população, onde a isonomia, igualdade de direitos para todos perante a lei (agora, não mais a Lei sagrada, mas a lei edificada por meio da inteligência humana.

Do modo semelhante, a valorização do médico e do julgador, ambos indispensáveis partícipes do justo, do belo, do bom, como pólos de distensão para resolver conflitos pode ser claramente identificada nas obras de Hipócrates e Aristóteles.   

Na de Hipócrates, “Da medicina antiga”, recusando o caráter sagrado das doenças e na de Aristóteles, “Ética a Nicômaco”, enaltecendo a prática do julgador.    

Reconstruções da ética da Medicina e do Direito ajustadas à busca da materialidade da doença em Roma antes da cristianização

Após a conquista militar romana da Ásia Menor e da Grécia, nos anos vinte, do século 2 a.C., ocorreu certo esvaziamento político-econômico de algumas cidades-estados gregos que não interessavam ao poder romano. Os médicos dessas cidades, alguns sob forte influência da Escola de Cós, migraram para cidades romanas importantes.

O conjunto organizador romano impôs controle da saúde pública aumentando a oferta de água potável por meio dos aquedutos, coleta dos esgotos, banhos púbicos, regras para o sepultamento fora do perímetro urbano, aterro dos pântanos e a presença do médico pago pelo poder público em muitas cidades.

No Império de Adriano, no século 2 d.C., os médicos foram dispensados do serviço militar e, nessa época, a maior parte das cidades romanas, mesmo as nos territórios conquistados, tinha médico remunerado pela administração pública.

Possivelmente para suprir a demanda crescente de médicos nos novos territórios conquistados, Júlio Cesar ampliou as prerrogativas oferecidas por Diocleciano e ofereceu aos médicos os direitos de cidadão romano e prerrogativas fiscais.

Claudio Galeno, um dos mais conhecidos médicos romanos, no século 1, elaborou a teoria dos Quatro Temperamentos, ao adicionar um temperamento específico para cada um dos humores da teoria de Políbio: fleumático, sanguíneo, bilioso preto e bilioso amarelo. Desse modo, atenuou a excessiva generalidade da teoria dos Quatro Hunmores e possibilitou individualizar as possibilidades de as pessoas adoecerem quando abrigassem certo temperamento.

Teoria dos Quatro Humores – séc. 4 a.C. – Políbio, Grécia   FleumaTeoria dos Quatro Temperamentos – século 2 d.C – Galeno, Roma     Fleumático
Bile amarelaColérico
SangueSangüíneo
Bile pretaMelancólico

Assim, se alguém estivesse com “um humor desequilibrado” e possuísse determinado “temperamento dominante”, seria mais suscetível de ter certa doença. Hoje, ao se fazer essa reconstrução parece tudo sem sentido, mas é importante ressaltar que as teorias dos Quatro Humores e a dos Quatro Temperamentos eram de muito fácil compreensão e se situavam fora dos poderes dos deuses e deusas taumaturgos greco-romanos.

Os processos teóricos  de Políbio e Galeno foram tão competentes e de execuções tão magnificamente simples, certamente, apresentaram resultados muito melhores comparados aos anteriores, que atravessaram incólumes o medievo europeu e permaneceram intocados até a primeira metade do século 19, quando o viajante alemão Von Martius, esteve no Amazonas, em 1844, entendeu os índios: “de temperamentos fleumáticos, com pouco sangue”, com o objetivo de explicar a equivocada leitura ocidental do comportamento dos indígenas quando comparado ao dos europeus.

Nesse período, até a metade do século 2, não ocorreu outro ensaio teórico em torno da ética médica. Continuaram valendo as publicações da Escola de Cós, especialmente a parte voltada aos bons resultados.

É possível que no fim do século 2 os médicos gregos ocupassem lugares destacados na estrutura administrativa da Medicina romana. Esse fato provocou forte resistência, entre os cidadãos romanos mais cultos, gerando queixas pessoais e coletivas que fazem pensar que tenham se distanciado dos preceitos hipocráticos. Plínio, o Velho, no seu livro “Histórias Naturais” e o historiador Marco Pórcio Catão fizeram severas críticas pelos maus resultados dos médicos gregos.

Como resposta da administração aos descaminhos éticos, no fim do século 3, o imperador Júlio Cesar assinou a Lei Aquília e a Lei Cornélia que puniam severamente a prática do aborto e com o banimento dos médicos que provocasse a morte do doente.

Outra vez, é importante ressaltar que os maus resultados dos médicos gregos migrantes da Ásia Menor, determinante conflitos entre doentes e a administração imperial, forçou a adição dessas novas leis restritivas.

O Direito romano, mais amplo e generalista se comprado ao grego, atravessou o medievo e se manteve estruturante durante doze séculos por meio do Corpus Júris Civilis.

Um dos mais importantes acervos romanos, em parte oriundo da Grécia platônica, amalgamando a Medicina e o Direito, se estruturou na compreensão do Direito Natural na obra de Cícero: “Há uma lei verdadeira, segundo a natureza, difundida entre todos os homens, constante e eterna” (De República, 3, 33,33).

Construções da ética da Medicina e do Direito ajustadas à busca da materialidade da doença no medievo europeu

O processo da cristianização de Roma, durante o reinado do Constantino e após, fruto do enfraquecimento das fronteiras romanas, pelas invasões dos godos e visigodos, introduziu mudanças no sistema mercantil escravista para o feudal alcançou a ética da Medicina.

Nesse processo complexo, a Medicina se distanciou dos conceitos gregos jônicos da físis e se aproximou da doença como mal gerando o castigo divino, como nas culturas da Mesopotâmia, Egito, Índia e Grécia homérica, entre os séculos 7 e 5 a.C. Sem pretender simplificar muito, o tratamento mais importante para a doença como mal, seria a força de Deus e de Jesus Cristo intervindo para promover a cura por meio do milagre.

É possível compreender essa abordagem, que motivou outros conceitos teóricos à ética e moral, alcançando também as práticas médicas, como regressão às conquistas greco-romanas. Essas mudanças também provocariam desconstrução urbana, no medievo cristão europeu, com as administrações das cidades se descuidando da higiene pessoal, ruas estreitas, casas abafadas e sem exposição solar, pouca água potável, retorno do enterramento dos corpos nos limites urbanos e ausência de esgoto sanitário.

Os banhos públicos, usados simultaneamente por homens, mulheres e crianças, entendidos como local de excessiva exposição dos corpos propiciando maior exacerbação da sexualidade foram precocemente combatidos pela nova ordem cristã que se empenhou em fechar todos.

Esse fato associado às outras importantes mudanças no urbanismo das cidades alcançou o novo mundo cristão em ascensão, inclusive e especialmente a prática médica, fechando as escolas de Medicina e interditando o manuseio do corpo morto para o estudo da anatomia. Esse conjunto fulminou as práticas médicas grego-romanas, sob a égide da ética hipocrática, e introduziu outro processo monolítico ideológico, sob forte fiscalização eclesiástica, reconstruindo outra ética na Medicina, que se estenderia até a baixa Idade Média.

Os serviços profissionais dos agentes da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, até então entendidas como trabalho profissional remunerado, passam para a categoria dos trabalhos que deveriam seguir o exemplo de Jesus Cristo e dos apóstolos, cujos sacerdócios incluíram muitas curas milagrosas. O milagre cristão passou a ser a principal motivação da cura das doenças.

A ética da Medicina absorveu, na Roma cristianizada, o entendimento da doença, como consequência da desobediência a Deus, Jesus Cristo e aos santos, se transformou em sinônimo de castigo. Com as escolas de Medicina fechadas e consequente o ciclo da formação de médicos interrompido, o povo sem opções, se intensificaram:

– Peregrinações aos santuários católicos, especialmente, Jerusalém e Santiago de Compostela, na Espanha;

– Devoção aos santos com poderes de curar determinadas doenças;

– Edificações de ofertórios dedicados aos santos ou santas relacionados à doença mais temida, nas principais ruas ou praças das cidades.

Com o fechamento das escolas de Medicina, a partir do final do século 6, as práticas médicas se aproximaram das abadias e mosteiros, onde padres e freiras prestaram assistência aos doentes sob a égide da ética, moral e caridade cristã.

Sob a guarda das proibições eclesiásticas impondo nova ordem à ética médica, impedindo as práticas cirúrgicas, mais duramente a partir do século 9, certamente motivadas pelos maus resultados, as necessidades sociais buscaram caminhos alternativos para sanar as dificuldades.

A partir do século 10, existem muitas referências sobre um personagem estranho e temido, que preencheu os espaços vazios deixados pela proibição eclesiástica da prática cirúrgica: o cirurgião-barbeiro. Sem formação médica, vínculo institucional ou obrigação ética, esses homens andarilhos percorriam os caminhos entre as cidades medievais, cortando cabelos, barbas e unhas, sem qualquer obrigação ética, amputavam membros gangrenados, lancetavam abscessos, quase sempre seguidas de morte dos doentes. Em determinas situações, essas mortes causadas pela prática dos cirurgiões-barbeiros, causavam intensos conflitos com a família dos mortos pela má prática ou com a administração dos burgos. Em certas cidades, quando os cirurgiões-barbeiros provocavam a morte de alguém com importância social, para evitar o linchamento, eram obrigados a fugir rapidamente.

O conjunto da Medicina-divina, Medicina-empírica e da Medicina-oficial regidas pela ética atada aos dogmas cristãos, acabaram no interior ou nas proximidades das abadias e conventos, distante das recomendações hipocráticas. Semelhante aos cirurgiões barbeiros, os padres despreparados provocaram tantos conflitos pela má prática, causando sequelas e mortes, gerando revoltas populares com destruição de igrejas e monastérios, que motivaram as autoridades cristãs, nos Concílios de Rems (1131) e de Roma (1139), proibirem que os religiosos exercessem a Medicina fora dos muros das instituições religiosas.

Por outro lado, os grandes teóricos do cristianismo como Abelardo, em Paris, Bernard, em Chartre, e Tomas de Aquino, iniciavam o processo de resgate doutrinário das obras de Platão e Aristóteles, ajustando-os aos preceitos cristãos, determinando novas leituras da ética cristã, que também alcançariam a ética da Medicina.

– Pedro Abelardo, filósofo e teólogo escolástico, considerado um dos príncipes intelectuais da igreja, como professor da iniciante Universidade de Paris, semente da futura Sorbonne, que funcionava junto à catedral Notre Damme, na época, em construção. Esse notável sacerdote defendeu de forma enfática, junto aos seus alunos, filhos de burguesas abastados ou religiosos importantes, outras leituras bíblicas para amenizar alguns dogmas, frutos de equivocadas interpretações bíblicas. Entre as abordagens mais importantes, a leitura crítica da Bíblia, a luz da razão, acabou renovando a Escolástica na problemática da relação entre a fé e a razão.

– Bernardo de Chartres, se dedicou mais aos estudos dos neo-platônicos e Aristóteles, e como Reitor da Escola de Chartres, reforçou a presença dos conceitos universais, a despeito da fé. Por essa razão, o conjunto teórico que defendia se estruturou em três categorias da realidade: Deus, matéria e idéia. 

– Tomás de Aquino, filósofo e teólogo, também professor da Universidade de Paris, fundou a síntese do cristianismo sob a visão aristotélica, que originou novos rumos da Igreja contendo uma Teologia, firmada na revelação, uma Filosofia, baseada no exercício da razão humana, fundindo a fé e razão no rumo de Deus, sempre defendendo não haver conflito entre fé e razão. 

 A partir da primeira metade do século 14, para alguns grupos sociais, houve melhores condições para construir outros patamares com o poder eclesiástico com o objetivo de ajustar as práticas médicas às novas realidades, especialmente, comerciantes e cirurgiões-barbeiros mais esclarecidos, que desejavam melhores resultados das pr’ticas médicas

Jean Pitard, um dos mais conhecidos cirurgiões-barbeiros, com fácil trânsito com o poderoso arcebispado de Paris, fundou a Confraria dos Cirurgiões, sob a guarda de São Cosme e São Damião. Pela primeira vez, desde o desmonte das práticas médicas greco-romanas, da tradição hipocrático-galênica, alguns cirurgiões-barbeiros que aderiram à Confraria, introduzem outras normas éticas voltadas aos bons resultados sem esquecer as marcas da caridade cristã. Ao manterem o claro vínculo com o poder eclesiástico, escolhem a sede próxima da catedral Notre Dame, vestem roupas diferenciadas que os distinguem dos que permaneceram contrários ao novo código ético das confrarias.

A laicização da caridade, reafirmando as diretrizes neo-testamentárias, compondo um Deus que perdoa e sublima o confronto e o contrário, antepondo-se ao Velho Testamento, tem sido reconhecida como um dos mais importantes instrumentos teóricos da cristianização, identificado na afirmação de François-René Chateaubriand: “A caridade, virtude absolutamente cristã e desconhecida dos antigos, nasceu com Jesus Cristo; é essa a virtude que distingue o homem dos outros mortais e foi o selo de renovação da natureza humana”.

Dessa forma, as corporações-confrarias-irmandades como instituições cristianizadas, amparavam certos setores específicos de trabalhadoras e suas famílias, em várias cidades do medievo europeu, entre os séculos 14 e 15, se aproximaram da Igreja. Outra vez, a mobilidade da Igreja conseguiu manter a presença na reconstrução das práticas médicas e de outras profissões de clara importância no medievo europeu.

As decisões do Concílio de Trento, entre 1545 e 1563, colocando a Igreja em sintonia com os Estados fortes, para superar o avanço das idéias luteranas, também ampararam a ética médica que motivou os primeiros hospitais. Essas construções insalubres recebiam doentes de todas as naturezas, levados pelas famílias que não os desejavam por perto, sob a assistência dos abnegados religiosos sem preparo médico, eles morriam rapidamente. O Concílio de Trento moldou as bases na caridade laicizada, como a unção dos enfermos, sacramento e o reconhecimento de leigos na graça santificante.

Graças a esse concílio, a autorização eclesiástica foi formalizada para os que exercitassem a caridade cristã, teriam a garantia do acesso ao Reino de Deus. Os homens e as mulheres ricas encontraram na abertura conciliar a argumentação para justificar a postura de amparo aos enfermos e necessitados com a recompensa da ida para o paraíso após a morte. Esse pressuposto oferecia a quem fazia caridade a plácida sensação de estar garantindo a entrada no Reino, sem falar no agradecimento recebido pelo poder temporal da Igreja e do Estado, ambos interessados em repassar as tensões sociais agravadas pela peste, fome e miséria, que flagelavam a vida dos despossuídos.

A intensificação da caridade como instrumento de controle social conseguiu atenuar o brutal contraste entre os poucos com muito dinheiro com a maioria esmagadora sem nada. Essa última parcela, homens e mulheres sem senhor, constituíam as hordas de mendigos itinerantes entre os burgos, que assaltavam e matavam os que viajavam sem a proteção dos cavaleiros dos senhores feudais. Nessa parcela da população que se abateram os rigores da fome após os primeiros surtos da peste negra.

As corporações-confrarias-irmandades, inclusive a Confraria dos Cirurgiões, fundada por Jean Pitart, parecer ter sido parte da resistência dos trabalhadores que continuavam à margem das melhores fatias da organização social da alta Idade Média.

O aperfeiçoamento desse processo de resistência contribuiu para o surgimento dos grupos de proteção mútua, nos moldes da “compagnia” fundada em Gênova em 1099 e financiada pelos marítimos.

Desde a baixa Idade Média, existiam organizações dedicadas à guarda do interesse coletivo de grupo de trabalhadores especializados. A encontrada em Valenciennes, floresceu entre 1050-1070, tinha uma característica predominantemente laica, enquanto que a de Saint-Omer, ativa entre 1072-1080, era de natureza eclesiástica. Algumas delas já apresentavam rígida estrutura administrativa, com um órgão de decisão (capitulum), um líder (décani) e uma sede (guildhus).

As corporações-confrarias-irmandades ofereciam novo tipo de proteção aos membros, sob a presença dos santos mais importantes ou ligados à tradição religiosa da região. A próspera corporação de lanifício de Florença, com cerca de vinte mil operários e duzentas oficinas, pode representar muito bem esse interesse eclesiástico: a sede dessa rica corporação, o Palácio da Lã, se ligava por meio de uma ponte com a Igreja Orsanmichele.

A inserção das corporações-confrarias-irmandades, surgiram fortalecidas em regras protecionistas de solidariedade econômica e social, em articulação com a hierarquia das autoridades religiosas e laicas. A Igreja se manteve próxima dessa nova articulação social compreendeu a importância histórica e estimulou novas alianças a partir de estreitas ligações com os líderes, especialmente, na Confraria dos Cirurgiões, já que os cirurgiões-barbeiros se mantinham fora da ordem eclesiástica.

 É importante relembrar que o aparecimento desse personagem, o cirurgião-barbeiro, foi consequente da resposta social à interdição intolerante da Igreja à dissecção do corpo morto para fim de estudo da anatomia e ao fechamento das escolas de Medicina, determinando com que os cirurgiões ficassem cada vez mais escassos até o completo desaparecimento na primeira metade do século 9. 

O aumento da circulação de moeda e do comércio pode ter contribuído para forçar, por parte da população mais organizada, o preenchimento de um espaço vazio da organização social na assistência à saúde e à velhice. Pode ter sido por aí que as normas das corporações-confrarias-irmandades passaram a prever diversas formas de amparo aos membros e suas famílias.  A maior parte possuía hospital próprio, como o da rica Confraria de São Leonardo, em Viterbo, Itália, no século XII, capazes de prestar vários tipos de atendimento e amparo à viuvez e aos órfãos. Essas ajudas mútuas estavam atadas aos resultados oferecidos pela Medicina-oficial, basicamente dos melhores cirurgiões-barbeiros, aderidos à Confraria dos Cirurgiões. De certa forma, nesse contexto, contribuíram para que a ética dos médicos retornasse aos bons resultados como o melhor caminho.

Essas mudanças só protegiam pequenos grupos, a maior parte da população vivia na miséria. É importante relembrar que haviam sido perdidas as conquistas sociais que a Medicina greco-romana. O processo de dessacralização da doença, iniciado na Escola de Cós, por meio da teoria dos Quatro Humores, foi apagado pela ética cristã inserida na Medicina que valorizava, exclusivamente, a doença como castigo pelo pecado cometido.

Essa ética cristã baseada na caridade cristianizada, que valorizou a exaustão a recompensa pessoal após a morte e da obediência aos dogmas eclesiásticos, abandonou os cuidados com a saúde pública, a higiene pessoal, redes de abastecimento de água potável, escoamento dos esgotos e o pagamento pelo serviço profissional médico.

Por essas razões, a maior parte das populações da Europa medieval sofreu na pele o descaso pelas normas essenciais para preservar a saúde coletiva. As cidades não passavam de aglomerações humanas desordenadas, em torno de suntuosas catedrais góticas, sem água potável, esgotos sanitários e habitações inadequadas, onde, de tempos em tempos, grassavam epidemias de várias doenças infecto-contagiosas, que matavam freqüentemente milhares de pessoas em poucas semanas.

As regras das corporações-confrarias-irmandades se organizaram, sempre ofereceram ajuda entre os membros e suas famílias. O estatuto da corporação dos curtidores de couro branco, em Londres, datado de 1346, reza no artigo primeiro que o bem-estar de seus membros era o objetivo maior.

Outras mudanças na ética das práticas médicas, incorporadas junto ao aparecimento das primeiras universidades, a partir da segunda metade do século 14. Simultaneamente, se iniciou luta feroz dos médicos, formados nas universidades, para conquistar a credibilidade junto à população desassistida e superar a presença dos agentes da Medicina-empírica, inclusive os cirurgiões-barbeiros, e a dos agentes da Medicina-divina, presentes nas abadias e conventos.

Nesse sentido, uma poderosa rede de calúnias, ligada às interpretações oportunistas da Bíblia, fomentou o descrédito dos agentes da Medicina-empírica (benzedores, herveiros, parteiras e cirurgiões-barbeiros), que passaram a ser identificados como diabos, bruxos e adivinhos, mensageiros do diabo.

A parteira, tão antiga quanto útil durante muitos milhares de anos, era, com certeza, a mais importante representante da Medicina-empírica, simbolizando, por essa razão, o papel de inimigo mais importante da universidade cristã.

É possível que tenha ocorrido relação política entre a perseguição implacável aos agentes da Medicina-empírica, especialmente as parteiras e benzedeiras, e a bula Summis Desiderantes Affectibus contra o satanismo, editada pelo Papa Inocêncio VIII em 1484.

Em consequência, muitas parteiras e outros agentes da Medicina-empírica foram levados a julgamento nos tribunais da Inquisição e merecerem um capítulo inteiro – “De como parteiras bruxas cometem os mais horrendos crimes, matando ou dedicando crianças ao diabo da maneira mais amaldiçoada” -, no terrível “Malleus Maleficarum” (“O Martelo da Bruxaria”), escrito pelos priores do Convento de Colônia, (Alemanha), Kramer e Sprenger.

Esse terrível livro, editado pela primeira vez, em 1486, conduziu um dos mais tenebrosos períodos de uma ética, ligada ao poder eclesiástico, com o objetivo de assassinar milhares de resistentes à inflexível autoridade eclesiástica.

Em relação às parteiras, identificadas como bruxas no livro “O Martelo da Bruxaria”, o raciocínio dos priores Kramer e Sprender era muito simples e eficiente porque colocava a questão do pecado original no centro do conflito com o diabo, como o indutor do mal: “Ora, qual o motivo desse crime infame? Presume-se que as bruxas sejam compelidas a cometê-lo a comando do espírito do mal, às vezes contra sua vontade. Pois o demônio sabe que, por causa do sofrimento da perda – poena damni -, ou do pecado original, essas crianças são privadas de entrar no reino dos céus”.

Outro grupo que sofreu pesadamente a perseguição imposta pela Igreja, na Contra-Reforma, sob a ética perversa da intolerante perseguição aos contrários, emergindo das universidades, mantidas pelo poder eclesiástico, foram os cirurgiões-barbeiros, também pelo grande número e maior prestígio político. Com os cirurgiões a argumentação básica da intolerância esteve assentava no fato de eles trabalharem com o sangue, seja praticando a sangria, cauterizando as feridas, lancetando os abscessos, imobilizando os ossos quebrados e amputando os membros gangrenados.

A resistência por parte dos médicos formados nas universidades acabou gerando, como resposta, reorganização dos cirurgiões-barbeiros. Como já foi explicado, nas linhas acima, sob a liderança inicial de Jean Pitard (1238-1315), também para se protegerem dessa intolerância, se agruparam numa confraria, sob a proteção de São Cosme e São Damião, e passaram a adotar atitudes e roupas para diferenciá-los dos barbeiros.

A Confraria de São Cosme e São Damião que reuniu centenas de cirurgiões-barbeiros conseguiu, em 1436, a admissão deles como alunos da Faculdade de Medicina de Paris.

Os doentes, cada vez mais numerosos, em consequência do avanço das enfermidades infecciosas, inclusive o da peste negra, na primeira metade do século 15, eram internados em lugares conhecidos como “Xenodochium pauperum, debilium et infirmorum” (Hospital dos pobres, dos fracos e dos enfermos”), administrados pelos membros de várias irmandades. A Ordem dos Hospitalários de São João, dos Antoninos e do Espírito Santo foram as que mais se destacaram e acabaram ampliando a ação dessas instituições. Dessa forma, a anterior ética médica hipocrática, incorporou a ética cristã da caridade.

No medievo europeu, quanto maior a miséria coletiva, maior o chamamento à caridade. Portugal, particularmente castigado pela peste negra, em mais de vinte surtos registrados entre 1188 e 1496, junto às guerras intestinas da nação portuguesa, o quadro desolador se mostrou tão desesperador que o enterro dos mortos se tornou impossível; os cadáveres acumulavam-se por toda parte, dando um aspecto da chegada do fim dos tempos e o cumprimento das previsões apocalípticas.

Nesse contexto de necessidades coletivas influenciou o crescimento das corporações-confrarias-irmandades ao longo das margens do rio Tejo, no trajeto que ligava Portugal à cidade espanhola de Compostela, onde ficava a igreja de São Jaime, o mais importante santuário cristão depois de Jerusalém, existiam centenas de pequenos hospitais e albergues utilizados pelos peregrinos e devotos, que se dirigiam em romaria para pagar promessas e implorar saúde.

A lepra, um dos flagelos que assolava o homem medieval, não distinguia ricos e pobres, poderosos e despossuídos. A desfiguração final da doença repugnava o doente e a família, não só pelo aspecto grotesco da deformidade, como também pelo medo de contrair a enfermidade. Os leprosos, desamparados pelos familiares, tornavam-se itinerantes e rumavam munidos de catracas, anunciando a passagem, à procura da ajuda divina nos muitos santuários milagreiros anunciados pela Igreja. A maior parte deles morria da fome ou das complicações da doença, enquanto outros ficavam pelo caminho nas albergarias que os aceitavam.

Por acolherem os leprosos em maior número, esses lugares, com o passar dos anos, ficaram conhecidos como leprosários.

Nenhuma doença poderia simbolizar melhor a atenção que Jesus dedicou aos doentes quanto a lepra. Os leprosos foram escolhidos no Terceiro Concílio de Latrão (1179), sob o pontificado de Alexandre III (1159 -1181), para receberem tratamento especial dos cristãos ao mesmo tempo, foi reprovado o isolamento a que eles estavam submetidos pela sociedade. A Ordem de São Lázaro foi criada para dar cumprimento às ordens conciliares e o grão-mestre deveria ser sempre um leproso.

Não se deve estranhar que o pano de fundo das corporações-confrarias-irmandades  tenha sido também a obtenção de vantagens pessoais, financeiras e políticas para os envolvidos nas edificações. Essa afirmação ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao seu irmão D. Duarte, sugerindo a intervenção real na administração das hospedarias, como alternativa para reabilitar a debilitada economia do reino, cujas reservas foram gastas nas guerras e o pouco arrecadado era consumido pelos fidalgos.

É fácil de compreender o interesse por essas instituições, tanto das ordens religiosas como da corte portuguesa. As ordens religiosas devem ter sido mais ágeis para dirigir o produto monetário da caridade aos cofres eclesiásticos, a ponto de a situação ter ficado insustentável, causando prejuízo à arrecadação do reino. A reação foi imediata. Por ordem de D. Duarte e publicada nas Ordenações Afonsinas de 1446, foi decretada a interdição real nas albergarias, determinando que todos os legados que fossem doados às irmandades deveriam passar pelas cortes civis e não mais pelos tribunais religiosos. Essa providência interrompeu, em Portugal, um aspecto rendoso da caridade cristã, porque proporcionava o recebimento de vultosas quantias em doações e heranças dos súditos bem intencionados.

Esses legados deixados pelos ricos deveriam ser utilizados na atenção aos leprosos, entretanto, a maior parte do dinheiro engordava a riqueza de clérigos e fidalgos.

A dissolução compulsória das albergarias-hospitais do reino foi seguida de novas medidas tomadas por D. João II para a organização de hospital único sob o controle da administração real. Essa mudança só seria reconhecida, em 1479, por meio da Bula de Xisto IV (1471-1484) autorizado o rei organizar hospital único nas principais cidades.

 Enquanto a união Estado-Igreja, interessada nos lucros proporcionados pela caridade, montava a mudança para consolidar um hospital que substituiria centenas de pequenas albergarias facilitando o controle das vultosas doações, muitas abadias e mosteiros que mantiveram núcleos de atendimento médico, dirigidos por padres e freiras, entre os séculos 9 e 11, serviram como sementes às futuras universidades criadas a partir do século 13, em vários reinos da Europa.

As abadias de Salerno e Montpelier, dois dos núcleos mais importantes das futuras universidades, se distinguiriam por retomarem antigos conceitos éticos gregos da Escola de Cós: “Em primeiro lugar, não façam mal”.

No medievo europeu, as conjunções políticas determinadas pelos conflitos e contradições entre a administração laica e a Igreja, determinou o desconstrução de grande parte da conjunção da Medicina e do Direito. Nesse conjunto, o Direito visigótico, em determinados momentos, se ajustou ao Direito canônico, que nem sempre valorizou as recompensas após a morte em detrimento da vida vivida.

    A idéia da ordem universal, defendida de modo violento por algumas variantes do Direito canônico, diminuindo grandemente a importância do indivíduo freando o movimento social, interferiu de modo brutal tanto na busca da materialidade da doença quanto do delito.

Nesse conjunto muito complexo de fricções sócio-políticas, se destacou a obra de Guilherme de Ockham (Opus nanaginta dierum), de 1332, associando o Direito ao poder, em torno de duas realidades confluentes: a primeira, inteligível e inserida na realidade observável, sem natureza jurídica; a segunda, de natureza jurídica atada ao poder. Essa importante construção teórica associando Direito e poder servirá para a retomada das idéias greco-romanas no Renascimento que se avizinhava.

Construções das éticas da Medicina e do Direito ajustadas à busca da materialidade da doença e do delito no renascimento europeu

Alguns acontecimentos marcaram o Renascimento como um novo tempo na Europa, interferindo diretamente na ética médica oriunda do medievo:

– Publicação mecanizada dos livros;

– Ruptura com as interdições eclesiásticas: dissecção pública de corpos humanos;

– Teatros de anatomia em vários reinos europeus;

– Publicação do livro “De humani corporis fabrica” de André Vesálio;

– Publicação do livro “A cirurgia”, de Ambroise Paré;

– Publicação do livro “Christianismno restitutio”, de Miguel Servet, contestando a veracidade da Trindade Cristã;

– Publicação do livro “De viscerum structura”, de Marcelo Malpighi, descrevendo o mundo somente visível sob as lentes de aumento, iniciando o pensamento micrológico, que pode ser considerado o segundo corte epistemológico da Medicina;

– Ampliação das fronteiras com a chegada dos europeus nas Américas, Ásia e áfrica.

Entre outras singularidades do Renascimento, se destaca a vontade coletiva de retomar os ideários políticos da Grécia platônico-aristotélica. Desse modo, inicia-se outra fase da ética médica sob menor influência dos dogmas do cristianismo medieval:

 – Importante e decisivo procura da materialidade da doença;

– Retomada das diretrizes teóricas da Medicina greco-romana;

– Diminuição do valor atribuído aos santuários curadores;

– Aumento do número de médicos oriundos das novas universidades;

– Maior participação de médicos laicos no processo formador da Medicina;

– Livros escritos em latim;

– Presença de geniais pintores e escultores, como Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Rembrandt, entre outros, detalhando nas obras de artes o corpo desnudo;

– Maior acesso aos livros produzidos n período greco-romano;

– Desenvolvimento da anatomia e fisiologia;

– Substituição das confrarias, sob a guarda dos respectivos santos protetores, como a dos cirurgiões sob a proteção de São Cosme e São Damião, pelos Colégios e Academias laicos, como o Royal College of Surgeons, em Londres, e a Sorbonne, em Paris;

– Cirurgia incorporada à Medicina;

– Recuo da compreensão da doença como mal.

 No Renascimento europeu, enquanto o Medicina-oficial ampliava os domínios da compreensão da saúde, aumento a busca da materialidade da doença sob o estandarte da micrologia.

De modo geral, a ética médica retomou os preceitos hipocráticos, reafirmado pelas Escolas de Medicina de Montpelier e Salerno, ao tempo em que ratificou o projeto teórico que avançaria até hoje: a busca da materialidade da doença nas dimensões da matéria viva invisível aos olhos.

Talvez um dos mais importantes representantes dessa fase, interligando a Medicina e o Direito, tenha sido Maquiavel, nas obras “Discurso” e “O Príncipe”, em ambos discursando com claro desprezo ao mundo espiritual da escatologia cristã, oriundo do Direito canônico, e valorizando a vida vivida. Dessa forma, iniciou novas reconstruções na busca da materialidade da doença e do delito.  

Construções da ética da Medicina e do Direito, na Europa, ajustadas à busca da materialidade da doença no século 17

O século 17 também conhecido como o século da razão trouxe o encontro entre busca da maior liberdade com a ética médica. Esse complexo conjunto sócio-político foi firmemente tocado pelas idéias de Newton, Descartes, Locke, Espinoza, Leibniz, Cornelle, Racine, La Rochefoucault e Molière.

– Isaac Newton (1643-1727), autor do “Principia”, um dos principais precursores do Iluminismo, físico e matemático, trabalhou com Leibniz na elaboração do cálculo infinitesimal, no período em que permaneceu na própria casa porque a Universidade de Cambridge fora fechada por causa do surto da peste negra, descobriu a lei da gravitação universal e a natureza das cores, que mudariam para sempre os rumos da ciência. 

– René Descartes (1596-1650), advogado, formado na Universidade de Poitiers, nunca exerceu essa profissão, se notabilizou como filósofo e matemático, fundador da filosofia moderna, na principal obra “Discurso sobre o método”, se consagrou na defesa do método cartesiano incluindo “Penso, logo existo”. Contudo, outras importantes contribuições que também seriam inseridas na nova apreensão dos saberes do século 17: fundiu a álgebra à geometria que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que recebeu seu nome. Esse genial filósofo expressou pensamentos revolucionários: supremacia da dúvida para alcançar o conhecimento, rejeitando em bloco a estrutura dogmática da Igreja, por essa razão considerado o “pai do racionalismo”. Após a morte, em 1667, em Estocolmo, a Igreja adiciona os livros dele na lista dos proibidos.

– John Locke (1632-1704), considerado a base do empirismo e defensor do direito natural, liberal e de tolerância seletiva, explicando que não poderiam ser aplicados ao “homem primitivo”, os índios, comparando-os ao animal, servindo de base ideológica para a tomada das terras e extermínio de populações indígenas. Esse controvertido filósofo defendia atitudes rígidas e coercitivas aos pobres, e se mostrou contrário aos conceitos pré-existentes do cartesianismo, rejeitou a doutrina das idéias inatas e defendeu que o conhecimento se origina a partir da percepção dos sentidos, valorizando a identidade do “ser” “self”.

– Bento de Espinoza (1632-1677), racionalista da Filosofia moderna, fugiu da Inquisição portuguesa, defendeu o panteísmo (Deus, natureza naturante). Em 1656, foi excomungado pela Sinagoga de Amsterdam, por defender Deus como mecanismo imanente da natureza e do universo e a Bíblia como obra metafórico-alegórica nao expressando a verdade sobre Deus. Após a excomunhão adotou o nome Bendito, tradução do original Baruch. Para Espinoza, Deus e natureza eram dois nomes para a mesma realidade. Ao propor o determinismo, também entendia que os acontecimentos ocorrem em razão das necessidades. Dois pontos importantes da filosofia desse extraordinário pensador:

– Defesa de que a razão não poderia dominar a emoção; uma emoção só seria consumada por outra emoção anda maior;

– Inovou a ética ao afirmar que ela não se opõe às emoções; todos deveriam buscar os instrumentos que constroem a felicidade e o bem estar e recusar os que determinam dor e sofrimento: a ética da alegria, da bem querença.

–  Gottfried Leibniz (1646-1716), genial pensador que brilhou nas áreas da física, matemática, história e filosofia; junto com Newton desenvolveu o cálculo moderno, em particular o Integral. Como outros iluministas, Leibniz teorizou certas estruturas explicando universalidades, incluindo a categoria “mônada”, que equivaleriam para a realidade metafísica, o que os átomos para os fenômenos físicos.

– Pierre Corneille (1606-1684), fundador da tragédia francesa, após desgaste amoroso, escreveu peças teatrais que inauguraram a exposição de sentimentos trágicos, em absoluto contraste com o teatro medieval, em especial, rompe com a ordem e critica os políticos que se acham acima das leis.

– Jean Racine (1639-1699), poeta trágico, matemático e historiador francês; suas peças também inovaram a dramaturgia francesa, longe das âncoras das autoridades da Igreja, que ainda tentavam manter as rédeas da produção literária.

– François de La Rochefoucauld (1613-1680), pessimista e socialmente desencantado, conspirador contra a autoridade real, apesar da herança aristocrata, explicitava que todas as qualidades da nobreza, as falsas virtudes, estão ligadas ao egoísmo e à hipocrisia. Essa crítica posição, com claro enfrentamento à autoridade real, ja refletia os novos ares da maior liberdade política que se avizinhava.

– Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, o grande mestre da comédia satírica do teatro francês. Muito crítico à superficialidade do mundanismo, da segunda metade do século 17, na peça “O misantropo”, de consistente valor moral, retrata um personagem que recusa se integrar na sociedade devida a exigência da sinceridade e absoluta aversão à hipocrisia. A resistência da Igreja ao novo teatro continuava inflexível, por considerarem os atores representantes do falso, não poderiam ser sepultados nos cemitérios cristãos. Mesmo como pedido do rei Luis 14, o arcebispo só concedeu que Molière fosse enterrado no espaço dos não batizados e durante a noite.       

Como nunca no passado, as práticas médicas associados aos movimentos sociais que saiam das amarras dogmáticas da Igreja, aumentou o valor da materialização da doença. Centenas de descrições de estruturas e sistemas anatômicos, que receberam os nomes dos respectivos autores, foram acrescentadas aos saberes anatômicos.

Sob o impacto dessas profundas mudanças estruturais a ética médica iniciou o processo de afastamento da Igreja e, em alguns aspectos, se identificou com os conceitos de Spinoza, nos seus geniais livros “A ética” e o “Tratado da reforma do entendimento”, ambos valorizando a vida e rejeitando valores negativos da compreensão dos conflitos sociais.

Nesse novo contexto, a Medicina-oficial e o médico como seu agente, e os julgadores, como agentes do Direito, novamente, valorizados, e reconhecidos como partes importantes da construção do belo, do feliz, da vida, adicionando às concepções do “direito natural”.

Construções da ética da Medicina e do Direito, na Europa, ajustadas à busca da materialidade da doença no século 18

O século 18 reconhecido como o século das luzes brilhou sob esplendor das idéias de Kant que reconheceu a supremacia da razão como instrumento para superar a ignorância. Sob certas condições é possível também entender certa semelhança com as idéias sobre a natureza dos homens, defendida pelos autores setecentistas, como o início da generosidade explícita, como manifestação da virtude, que os médicos devem adotar no trato com os doentes.

Nesse contexto, dois filósofos se destacaram:

– Denis Diderot (1713-1784), no livro “Carta sobre os cegos para uso por aqueles que vêem”, onde descreve as mudanças no próprio pensamento, do deísmo ao ceticismo e materialismo ateu. A mais importante obra de Diderot, composta durante 21 anos, “Enciclopédia”, com 28 volumes, retratou todo o conhecimento até então publicado. Essencialmente atento à natureza humana, problemas morais e o sentido do destino. Como ferrenho crítico do clero, declarou: “O homem só será livre quando o último déspota for estrangulado com as estranhas do último padre”. As obras desse filósofo, considerado por alguns o pioneiro do anarquismo, só foram publicadas pelo fato de já estar em curso idéias políticas mais forte do que a repressão real e da Igreja.

– Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escreveu na “Enciclopédia” de Diderot, adepto de uma religião natural, recusando os dogmas revelados e propondo que o encontro com Deus poderia ser no próprio coração. Uma das mais importantes obras, “Do contrato social”, defende que a população deve tomar cuidado ao transformar o direito natural no direito civil e que a soberania do poder deve estar nas mãos do povo. Com especial atenção à natureza como “delicada amiga do homem” e princípio da verdade e da virtude.

Desse modo, o século 18 também refunda a idéia da generosidade virtuosa, fora dos dogmas da Igreja, rapidamente aderiu à Medicina. Também é interessante assinalar que a idéia de progresso, central no século das luzes, não se desprendeu dessa generosidade, como está claro na declaração dos Direitos do Homem.

Esse ideário de generosidade, direito e ética se transformou em mensagens de liberdades e acenderam os pavios das revoluções que forçariam, outra vez, a abordagem da ética, sob a ótica do genial Kant. Esse homem extraordinário sem jamais sair de sua cidade natal Königsberg, na antiga Prússia oriental, publica dois livros que mudariam algumas abordagens da ética e da moral. Em 1788, “Crítica da razão prática” e, em 1790, “Crítica da faculdade de julgar”, essencialmente contra o autoritarismo que dominava o mundo político no qual vivia, sob o reinado de Frederico II, rei da Prússia, cujos julgamentos sumários lembravam os realizados pela Inquisição católica, nos quais o réu já entrava no julgamento previamente condenado e só eram permitidas as respostas “sim” ou “não” do próprio réu e das testemunhas. O desfecho contra o vício nos julgamentos viria na introdução do não menos genial “Crítica da razão pura”, onde a categoria metafísica é utilizada para repudiar todos os dogmatismos despóticos, falsas genealogias, as indiferenças quanto as diferentes naturezas dos saberes humanos.

Por outro lado, a presença do pensamento micrológico, inaugurado por Marcelo Malpighi, no Renascimento, atingiu e ocupou a maior parte do ideário da Medicina na busca da materialidade da doença sob as lentes de aumento.

Por outro lado, chegaram os avanços nos saberes em vários aspectos da Medicina:

– Fisiologia: a anatomia já não bastava à liberdade, as academias e sociedades médicas promoviam debates sobre o funcionamento dos órgãos;

– Fisiologia experimental: muitas funções foram monitoradas e melhor compreendidas nos animais de experimentação, principalmente o cachorro e o gato domésticos;

– Os estudos de Virchow foram fundamentais para a consolidação da histologia;

– Com a associação entre anatomia-fisiologia-micrologia-histopatologia nasceria a anatomia patológica explicando os mecanismos da morte causada pelas doenças;

– Muitos cirurgiões descrevem técnicas cirúrgicas com o objetivo de diminuir as complicações per e pós-operatórias. Contudo, permanecia a temeridade pelas cirurgias cavitarias, no crânio, tórax e abdome, quase sempre sinônimo de morte do doente.

Claramente, uma vez mais, a ética médica estava ligada aos bons resultados das práticas.

– Rudolf Ludwig Karl Virchow (1821-1902), médico e político alemão, considerado o pai da patologia moderna. Em Würzburg, trabalhou como anatomista. Em 1856, retornou a Berlim, para assumir a cátedra de anatomia patológica da Universidade de Berlim. Durante a Guerra Franco-Prussiana, liderou pessoalmente o primeiro hospital móvel para atender os soldados na frente de batalha. Também participou ativamente, em Berlin, na melhoria do saneamento básico, construção hospitalar, técnicas de inspeção de carne e higiene escolar. Descreveu o mecanismo do tromboembolismo, hoje a reconhecida tríade de Virchow. Entre outras grandes contribuições, foi o primeiro a publicar um trabalho científico sobre leucemia.

Construções da ética da Medicina e do Direito, na Europa, ajustadas à busca da materialidade da doença e do delito no século 19

Esse século foi caracterizado:

– Busca do agente etiológico de muitas doenças;

– Entender as doenças, com o mesmo agente etiológico, que apresentavam diferentes manifestações clínicas;

– Utilização de equipamentos que poderiam ver além dos olhos desarmados;

– Exame histopatológico de partes do corpo e de doenças, para firmar o diagnóstico;

– Reprodução nos laboratórios de reações físicas ou químicas corpóreas;

– Melhor compreensão das doenças infecciosas que provocaram epidemias temidas;

– Entender o desenvolvimento fetal.

Sob essa perspectiva, foram descritas as bases da micrologia bacteriana tanto preventiva quanto curativa, oferecendo às populações certa tranqüilidade quanto algumas doenças infecciosas que causaram medo e mortalidade, desde a Idade Média: hanseníase, tuberculose, estafilococcias, estreptococcias, malária, tifo, tétano, entre outras.

A Medicina se acoplou, sem esforço, às idéias evolucionistas de Charles Darwin e, sem imaginar a grandeza do evento, em 1866, presenciou a publicação de Gregor Mendel, sobre o cruzamento de ervilhas, que inauguraria o pensamento molecular. Mantendo a leitura de Gaston Bachelard, a ruptura determinada pelos trabalhos de Mendel pode ser compreendida como Terceiro Corte Epistemológico da Medicina.

O século 19 fortaleceria a anatomia-clínica que assentou as bases da atual formação médica e a fisiologia, ampliando as respostas quanto os mecanismos da digestão, respiração, urinário, vascular venoso e arterial.

Ao mesmo tempo em que as ordens sociais endereçavam elogios à Medicina e aos médicos pelos inimagináveis progressos no controle de muitas doenças infecciosas, as idéias políticas giravam em torno de seis vertentes, que nos anos seguintes proporcionariam outras discussões na ética médica:

– Humanismo de Feuerbach:

  Ludwig Feuerbach (1804-1872), aluno de Hegel durante dois anos, é reconhecido pela teologia humanista e influência exercida em Marx por meio do livro “Sobre filosofia e cristianismo”, ao defender que a religião é uma forma de alienação porque projeta o ideal humano num ser superior. A sua obra é considera uma transição entre o idealismo alemão e o histórico.     

– Evolucionismo de Darwin:

Charles Darwin (1809-1882), no livro “A origem das espécies” propôs a teoria evolucionista por meio da seleção natural e sexual. Com a magistral frase: “O homem ainda traz em sua estrutura física a marca indelével da sua origem primitiva”. Claramente em confronto com a Bíblia, até hoje, existem grupos religiosos que mantêm forte resistência ao evolucionismo.

– Individualismo romântico de Chateaubriand:

François- René Auguste de Chateaubriand (1768-1848), diplomata e político francês se imortalizou pelo conjunto da sua obra de natureza pré-romântica: “As ciências explicam tudo para a inteligência e nada para o coração”. Entre os principiais livros figura “O gênio do cristianismo”.

– Manifesto comunista de Marx e Engels:

Sem dúvida, as idéias de Marx e Engels em torno do socialismo científico expresso no “Manifesto comunista”, em 1848, e as publicações seguintes, especialmente, após a Revolução Russa, reconstruíram a deontologia e a diceologia atadas à ética médica voltadas muito mais, quase exclusivamente, ao bem coletivo em detrimento do pessoal. Esse conjunto ético-moral, direta e indiretamente, mais ou menos, influenciou práticas médicas em todos os continentes.

– Positivismo de Comte:

Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798-1857), considerado o pai da Sociologia e do Positivismo. Um dos pontos fundamentais do Positivismo está fincado em torno da lei dos três estágios, descrito no livro “Curso de filosofia positiva”, renomeado “Sistema de filosofia positiva”, em 1848, onde propõe conhecer o real, sem se ater aos conflitos, e a razão por meio do conhecimento positivo, como instrumento científico para melhorar a realidade. Descreve que todas as concepções humanas passam por três estágios sucessivos:

– Teológico: fatos observados explicados pelo sobrenatural com três subfases: fetichismo, politeísmo, monoteísmo;

– Metafísico: onde já existe a pesquisa da realidade, mas ainda ha a presença do sobrenatural por meio de abstrações personalizadas, de caráter absoluto como natureza, povo e capital;

– Positivo: explicando os fatos por meio de leis gerais, de ordem inteiramente positiva, possibilitando o avanço da ciência e da tecnologia.

– Historicismo de Hegel.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), considerado como o ápice do idealismo alemão, influenciou muito o materialismo histórico de Karl Marx. O livro mais importante de Hegel, “Fenomenologia do espírito”, onde expõe a proposta de deduzir toda a realidade a partir do conceito da identidade que não concebe espaço para o contingente, para a diferença. Introduziu a dialética como sistema para compreender a história da filosofia e do mundo: sucessão de movimentos para superar as contradições inerentes ao movimento anterior.

Os movimentos sociais, no século 19, rejuntam os agentes da Medicina e do Direito, em fiscalizações mútuas que provocam continuas reconstruções: a busca da materialidade da doença e do delito se torna parte importante da Medicina e do Direito, para evitar a morte e a injustiça.

Construções da ética da Medicina e do Direito, na Europa, ajustadas à busca da materialidade da doença e do delito no século 20

O século 20 foi marcado por transformações tão profundas e complexas nas práticas da Medicina e do Direito que se torna difícil compreender como em pouco mais de cinquenta anos, a longevidade humana, em certos países, foi aumentada em mais de vinte anos.

O maior destaque que dominou, completamente, a segunda metade do século vinte foi a genética, A partir da descoberta da cadeia espiralada do ADN, em 1953, por Watson e Crick, que alcançou direta e indiretamente o estudo do genoma humano, inseminação artificial, antibióticos, métodos anticoncepcionais, métodos terapêuticos experimentais, virologia, imunologia, cancerologia, radioterapia, quimioterapia, vacinas, que forçaram outras mudanças e novas leituras dos códigos de ética médica.

Ao mesmo tempo, é impossível pensar o século 20 sem relembrar os horrores das duas guerras mundiais, as propostas do eugenismo e os campos de concentrações dos nazistas. Em pouco menos de cinco anos, em alguns países, as raízes históricas da ética médica foram destruídas junto com as experimentações em seres humanos, a mortalidade proporcionada pelas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, aumento da quantidade de pessoas em condições de miséria absoluta, vertiginoso crescimento industrial, gerando milhões de trabalhadores trabalhando em condições insalubres.

Os vencedores da II Guerra Mundial impactados sob esses horrores praticados pelos vencidos, alguns realizados com a participação de médicos, em novembro de 1946, em Nuremberg, instalaram o Tribunal Militar Internacional, onde a maior parte dos oficiais alemães capturados pelas nações aliadas vencedoras foi condenada à morte, prisão perpétua e outras penas.

 A escolha da cidade de Nuremberg não foi um ato isolado, ao contrário, estava mesclado de grande valor simbólico, já que naquela importante cidade alemã ocorreram festividades apoteóticas ao nazismo.

Nesse contexto nasceu o Código de Nuremberg com a humanidade retornando o caminho da valorização da dignidade humana e da reflexão ética sobre a vida em torno das pesquisas em seres humanos.

Por outro lado, infelizmente, o Código de Nuremberg, único no gênero na história da humanidade, com enorme simbolismo na ética médica, inicialmente, não tiveram valor de lei.

Os dez princípios do Código de Nuremberg:

1. Consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial;

2. O experimento deve trazer resultados benéficos à sociedade;

3. O experimento deve ser baseado em resultados de experimental animal;

4. O experimento não deve causar nenhum tipo de sofrimento ao sujeito da pesquisa;

5. Nenhum experimento deve ser mantido se houver suspeição de poder determinar qualquer tipo de invalidez ou a morte no sujeito da pesquisa;

6. O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância humanitária do problema que o pesquisador se propõe resolver;

7.   Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o sujeito da pesquisa de qualquer possibilidade, mesmo remota, de dano, invalidez e morte;

8. O experimento deverá ser conduzido por pessoas cientificamente qualificadas;

9. Durante o curso do experimento, o sujeito da pesquisa deve ter a plena liberdade de se retirar, caso ele sinta que há possibilidade de algum dano;

10. Durante o curso do experimento, o pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos em qualquer estágio, se ele tiver razoáveis motivos para acreditar que a continuidade do experimento poderá causar dano, invalidez ou morte do sujeito da pesquisa. 

O Código de Nuremberg somente passou a integrar as relações médico-pacientes, nas décadas de 1960 e 1970, por meio da Declaração de Helsinque I, redigida em 1964, pela 18ª Assembléia Médica Mundial, realizada na Finlândia.

Declaração de Helsinque I

Na introdução é posta a responsabilidade do médico quanto a absoluta necessidade de atentar para as diferenças da pesquisa médica que tem como objetivo essencial o diagnóstico ou a terapia para um paciente, da pesquisa médica puramente científica e sem valor direto no diagnóstico e na terapia.

A estrutura teórica do documento se assenta no pressuposto de a missão do médico é resguardar a saúde do povo, para esse fim usará seu conhecimento e consciência.

Princípios básicos da Declaração de Helsinque I:

1. A pesquisa clínica deve adaptar-se aos princípios morais e científicos que justifiquem a pesquisa médica e deve ser baseada em experiências de laboratório e com animais ou em outros fatos cientificamente determinados;

2. A pesquisa clínica deve ser conduzida somente por pessoas cientificamente qualificadas e sob supervisão de outras igualmente preparadas;

3. A pesquisa não pode ser legitimamente desenvolvida, a menos que a importância do objeto seja proporcional ao risco inerente à pessoa exposta;

4. Todo projeto de pesquisa deve ser precedido de cuidadosa avaliação dos riscos inerentes, em comparação aos benefícios previsíveis para a pessoa exposta ou para ambos;

5. Precaução especial deve ser tomada pelo médico ao realizar z pesquisa clínica na qual a personalidade da pessoa exposta é passível de ser alterada pelas drogas ou pelo procedimento experimental.

A pesquisa clínica combinada com o cuidado profissional:

1. No tratamento da pessoa enferma, o médico deve ser livre para empregar novos métodos terapêuticos, se, em julgamento, eles oferecerem esperança de salvar uma vida, restabelecendo a saúde ou aliviando o sofrimento. Se possível, e de acordo com a psicologia do doente, o médico deve obter o livre consentimento, depois de lhe ter sido dada uma explicação completa. Em caso de incapacidade legal, o consentimento deve ser obtido do responsável legal; em caso de incapacidade física, a autorização do responsável legal substitui a do paciente;

2. O médico deve combinar a pesquisa clínica com o cuidado profissional, desde que o objetivo represente a aquisição de uma descoberta médica, apenas na extensão em que a pesquisa clínica é justificada pelo seu valor terapêutico para o paciente.

A pesquisa clínica não terapêutica:

1. Na aplicação puramente científica da pesquisa clínica, desenvolvida num ser humano, é dever do médico tornar-se protetor da vida e da saúde do paciente objeto da pesquisa;

2. A natureza, o propósito e o risco da pesquisa clínica devem ser explicados pelo médico ao paciente;

3.

a. A pesquisa clínica em um ser humano não pode ser empreendida sem seu livre consentimento, depois de totalmente esclarecido; se legalmente incapaz, deve ser obtido o consentimento do responsável legal;

b. O paciente da pesquisa clínica deve estar em estado mental, físico e legal que o habilite a exercer plenamente seu poder de decisão;

c. O consentimento, como é norma, deve ser dado por escrito. Entretanto, a responsabilidade da pesquisa clínica é sempre do pesquisador, nunca recai sobre o paciente, mesmo depois de ter sido obtido seu consentimento;

4.

a. O investigador deve respeitar o direito de cada indivíduo de resguardar sua integridade pessoal, especialmente, se o paciente está em relação de dependência do investigador;

b. Em qualquer momento, no decorrer da pesquisa clínica, o paciente ou seu responsável serão livres para cancelar a autorização de prosseguimento da pesquisa. O investigador ou a equipe da investigação devem interromper a pesquisa quando, em julgamento pessoal ou da equipe, seja a mesma prejudicial ao indivíduo.

Declaração de Helsinque II ou Declaração de Tóquio

A primeira revisão da Declaração de Helsinque foi realizada por ocasião da 29ª. Assembléia Mundial dos Médicos, em Tóquio, em 1975.

Na introdução, além do conjunto constante na Declaração de Helsinque I, estava presente a preocupação ambiental e com os animais envolvidos na pesquisa.

Foram acrescidos:

1. Aspectos legais da pesquisa, na pesquisa terapêutica e na pesquisa biomédica puramente científica

2. Formalização dos protocolos experimentais;

3. Esses protocolos devem ser analisados por uma comissão independente, para emitir parecer, orientar e fiscalizar;

4. Critérios na publicação dos resultados da pesquisa;

5. Absoluta primazia ao indivíduo sobre a sociedade.

Declaração de Helsinque III

Redigida de acordo com a segunda revisão, na 35ª Assembléia Mundial de Médicos, em Veneza, em 1983.

Conservando a Introdução da anterior, segue na mesma construção, incluindo sempre que possível o consentimento de menores de idade.

Tanto na Declaração de Helsinki II quanto na Declaração de Helsinki III estava norteado o indicativo para a criação dos Comitês de Ética, que deveriam:

– Manter estrutura administrativa independente para investigar projetos que envolvam seres humanos direta ou indiretamente;

– Aprovar ou desaprovar projetos de pesquisas;

– Supervisionar e acompanhar os projetos de pesquisas aprovados;

Organismos como Associação Médica Mundial (AMM), Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceram metas para ampliar os Comitês de Ética em todo o mundo em três etapas:

– Período da criação;

– Período de expansão;

– Período de estabilização.

Esses comitês de ética, pelos menos os que estão nas fases de expansão e estabilização, se organizam para manter permanente vigilância nos padrões éticos das pesquisas médicas acompanhando os movimentos de transformações nas praticas médicas, ajustando-as aos avanços tecnológicos e ao aumento da longevidade, em blocos de debates, acrescidos de outros de acordo com o movimento social e os avanços tecnológicos.

Declaração de Helsinque IV

Redigida de acordo com a terceira revisão, realizada na 41ª. Assembléia Mundial de Médicos, em Hong Kong, em 1989.

Conserva a mesma introdução das Helsinque II e Helsinque III, assim como defende os mesmos princípios fundamentais, tratando de definir a função e a estrutura da “comissão independente”.

Declaração de Helsinque V

Redigida de acordo com a 4ª revisão, realizada na 48ª Assembléia Médica Mundial, em Somerset West, África do Sul, em 1996.

Conservou a mesma introdução das Declarações II, III e IV assim como defende os mesmos princípios fundamentais.

Preocupados com o uso de placebos nas pesquisas clínicas, como a de 1994, para o tratamento da AIDS, no estudo da Zidovudina, na transmissão materno-infantil do HIV, acrescentou ao texto a frase: “Isso não exclui o uso de placebo inerte em estudo onde não há nenhum método de diagnóstico ou de terapêutica comprovado”.

Declaração de Helsinque VI

Redigida de acordo com a 5ª Revisão, realizada na 52ª. Assembléia Médica Mundial, em Edimburgo, Escócia, em outubro de 2.000.

Em consequência de os ensaios clínicos e o uso de placebos continuarem, nos países em desenvolvimento de forma antiética, ocorreu outro alerta entre as autoridades fiscalizadoras, já em 1988, nas palavras de Marcia Angell: “Seres humanos em qualquer parte do mundo devem ser protegidos por um conjunto irredutível de padrões éticos”.

– Marcia Angell, trabalhou mais de vinte anos no revista “New England Journal of Medicine”, professora Sênior do Departamento de Medicina Social, na Universidade de Harvard e autora do polêmico livro: “A Verdade Sobre os Laboratórios Farmacêuticos”. Em 1997, foi considerada pela revista TIME, uma das 25 personalidades mais influentes dos EUA.

 Ocorreram muitos debates e outras tantas resistências, sem conclusão consensual às novas mudanças quanto ao uso do placebo inerte. Entre os acréscimos importantes:

No Artigo 29:

– Maior ênfase para os benefícios alcançarem as comunidades em que as pesquisas foram realizadas;

– Maior atenção para os que agentes da pesquisa que não se beneficiam das pesquisas

No artigo 30:

– Após a conclusão dos estudos, os pacientes devem ter a garantia de acesso à intervenção melhor comprovada.

Declaração de Helsinque VII

Princípios

Ocorreu maior ênfase quanto à obrigatoriedade por parte dos médicos na obediência às recomendações, no sentido de a Declaração ser moralmente obrigatória para os médicos, inclusive, substituindo quaisquer leis nacionais ou locais ou regulamentos:

– Respeito ao sujeito da pesquisa é fundamental;

– Bem estar do sujeito da pesquisa é mais importante do que os interesses da ciência;

– Grupos socialmente mais frágeis, com maior vulnerabilidade, exigem maior fiscalização;

– Pesquisa deve estar fincada no conhecimento científico;

– Os riscos e benefícios devem estar aclarados;

– Prevalecer a probabilidade de benefícios à população estudada;

– Pesquisa dirigida por pesquisador treinado e competente;

– Pesquisa sujeita de modo permanente à revisão ética independente e fiscalização;

– Pesquisa deve ser interrompida se ocorrer indicativo de o projeto aprovado não estar sendo seguido;

– Estudo deve estar sempre disponível;

– Sempre que possível, testados inicialmente em animais.

Pesquisa médica envolvendo seres humanos

A pesquisa com seres humanos tem sido prática comum na ciência. Nos últimos anos, diferentes grupos sociais e técnicos, têm reclamado, insistentemente, para que as pesquisas sejam inseridas de modo mais claro na justiça social.

Não é demais sustentar que, até um passado muito próximo, os sujeitos das pesquisas não recebiam garantia de nenhuma espécie, mais agudamente nos países em desenvolvimento, e em grupos sociais fragilizados.  Esses determinantes impuseram a necessidade de normatizar as pesquisas em seres humanos.

            Benefícios das populações estudadas

            Todas as pesquisas em seres humanos, obrigatoriamente, devem gerar benefícios às populações estudadas, não somente monetária. Deve haver melhoria na qualidade de vida das pessoas e do grupo social que participaram da pesquisa. Muitas pesquisas trouxeram benefícios à humanidade, não só de caráter monetário para alguns agentes da pesquisa, como por exemplo, o que ocorreu na prevenção do escorbuto, vacinação contra raiva e varíola, uso da insulina, estudos da febre amarela, entre outras.

            Abusos cometidos pela experimentação em seres humanos

Se por um lado ocorreram pesquisas que beneficiaram a humanidade, outras a brutalidade enche de vergonha o mundo.

– Nos campos de prisioneiros, durante guerras diferentes, em países diversos;

– Médico William Wallace inoculou sífilis em cinco pessoas saudáveis, com idades entre 19 e 35 anos, todos foram contaminados pela doença, tendo publicado os trabalhos em 1851. Pouco tempo depois, publicou outra experiência semelhante, com pré-adolescentes de 12 e 15 anos;

– Estudos experimentais em seres humanos, não autorizados, da transmissão e complicações neurológicas da sífilis, em homens negros, no Alabama, Estados Unidos, depois da comercialização da penicilina:

– Injeção de células cancerosas vivas em doentes idosos para estudo da imunoterapia em cancerologia;

– Injeção do vírus da hepatite B em crianças em um hospital de Nova Iorque.

Concomitantemente, os Conselhos de Medicina, no Brasil e em outros países, se adaptaram às novas exigências sociais e tecnológicas e continuam discutindo deveres e direitos dos médicos e instituições médicas públicas e privadas. Nos debates foram adicionadas novas construções, mas mantendo sempre a posição doutrinária: a Medicina e os médicos como partes da cooperação entre pessoas e povos, também em torno das virtudes que amparam as relações humanas.

No momento, podem ser citadas os novos temas:

– Princípios gerais da humanidade;

– Inovações tecnológicas;

– Ética e psiquiatria;

– Ética e biotecnologia;

– Ética e novos cirurgias indicadas para promover o embelezamento;

– Ética e técnicas de fertilização fora do útero;

– Ética e fim da vida;

– Ética e deontologia;

– Ensinamento da ética.

O século 20 está profundamente marcado pela aproximação entre a Medicina e o Direito, ambos procurando por todos os meios da ciência e da tecnologia, controlar a dor, empurrar os limites da vida e evitar as injustiças.

Ajustes do código de ética do médico e do julgador frente às mudanças da ciência e da tecnologia

Ao aceitarmos a pós-modernidade, como sugere Jean‑François Lyotard, moldada no desencanto aos metarrelatos universalizantes, será inevitável o repensar o enquadramento metafísi­co de palavras‑sentimentos: “razão”, “sujeito”, “totalida­de”, “verdade” e “progresso”.

 Por essa razão, não existe mais lugar para os super-heróis com as super-propostas.

Se as sociedades continuarem seguindo o mesmo curso na ciência e na tecnologia, as relações de conhecimento, incluindo, especialmente, as éticas, ficarão entre o antagonismo entre dois outros mundos: o desenvolvido e os em desenvolvimento, separados pela produção tecnológica, oriunda do trabalho sistemati­zado nos laboratórios de pesquisa.

 Se abordarmos a pós-modernidade da Medicina sob esse enfoque técnico‑científico, veremos com transparência que o pilar sustentador está fincado na aquisição de um saber ‑ a engenharia genética ‑ vendido ou negado pelos países em desenvolvimento de acordo com as conveniências político‑econômicas.

 A condição pós‑moderna, resultante dessas pesquisas de ponta, obrigou a completa reformulação dos antigos conceitos em relação à saúde e a doença, aceitos desde o aparecimento da micrologia no século 17, atingindo diretamente os processos éticos.

 Nesse complexo conjunto, a Medicina dos países desenvolvidos se afastou da classificação morfológica das doenças e está utilizando a engenharia genética na busca de soluções para os problemas de saúde, entre outras, câncer, doenças degenerativas e o envelhecimento.

 A Medicina do subdesenvolvimento, ainda continua empenha­da, com muita dificuldade, no estudo da morfologia celular, sempre alte­rada pela desnutrição crônica e pelas doenças infecto contagiosas que dizimam de milhões de crianças por ano.

  A Medicina é na atualidade um grande trem caminhando veloz­mente em direção dos laboratórios de estudo do genoma humano, com a saúde sendo conduzida para a intimidade da estrutura molecular dos genes.

 As notícias sobre a engenharia genética são cada vez mais frequentes e completas, fazendo com que o tema entre nas casas como o anúncio de qualquer outro produto de consumo. A mídia mostra com grande destaque uma grande colheita de grãos ou a cura de certa doença, antes não imaginadas, tudo graças às pesquisas reveladoras dos segredos dos genes.

 Hoje, mais do que nunca, é imperativo o repensar dos pressupostos teóricos da Medicina nesse novo contexto, mais especificamente depois da publicação dos trabalhos do pesquisador Susumu Tonegawa, ganhador do Nobel da Medicina de 1987, esclarecendo muitas dúvidas de como se efetiva a defesa interna do corpo frente aos microorganismos patogênicos. Ficou demonstrado que quando os linfócitos B se desenvol­vem, segmentos do seu material gênico são selecionados e misturados para fornecer novos genes, dando origem a milhões de sequências varia­das, capazes de iniciar a luta contra muitas doenças.

 Graças aos novos conhecimentos, é possível afirmar que parte da estrutura genética humana é plástica capaz de desenvolver muitas combinações gênicas adaptativas às necessidades da vida. Para que esse mecanismo biológico ocorra na sua plenitude é indispensável, entre outros fatores, que o corpo disponha de uma quota mínima da sua fonte de energia ‑ o alimento.

 A partir dessa certeza, ficou fácil demonstrar o que já faz parte, após milhares de anos, do conhecimento historicamente acumulado: as pessoas não alimentadas com uma quantidade mínima de calorias, ja­mais terão competência imunológica suficiente para enfrentar a maioria das doenças.

  A partir dessa abordagem pós‑moderna na Medicina e no Direto, caíram todos os pressupostos étnicos racistas, diferenciando grupos sociais mais inteligentes e mais fortes do que outros, sempre lembrados pelos interesses dos grupos dominantes.

 O processo histórico reafirma a necessidade de as éticas da Medicina e do Direito, no presente e futuro, estarem sempre ao lado e na defesa intransigente da dignidade física e psicológica humana e próxima dos bons resultados.

Finalmente, a Medicina e o Direito como principais fiscalizadores das pesquisas atentem contra a dignidade humana.

LEITURA COMPLEMENTAR

AZEVEDO, Luiz Carlos de. O Direito grego antigo. Disponibilizado na internet. Web artigos. 22 nov. 2011.

BILLIER, Jean-Cassien. História da Filosofia do Direito. São Paulo. Manole. 2005.

BOTELHO, João Bosco. História de Medicina: da abstração à materialidade. 1ª. ed. Manaus. Valer. 2004.

______. História de Medicina: da abstração à materialidade. 2ª. ed. Manaus. Valer. 2010.

______. Epidemias: a humanidade contra o medo da dor e da morte. Manaus. Valer. 2008.

______. Medicina e religião: conflito de competência. Manaus. 2ª. Ed. Valer. 2005.

______. O Deus genético. Manaus. EDUA. 2000.

______. Os limites da cura. São Paulo. Plexus. 1998.

CICCO, Cláudio de. História do pensamento jurídico e da filosofia do Direito. 3ª. ed. São Paulo. Saraiva. 2006.

FONSECA, Ricardo Marcelo. História do Direito medieval. Disponibilizado na internet. Web artigos. 22 nov. 2011.

GIOVANNE, Anderson. Considerações sobre a origem e desenvolvimento do Direito. Disponibilizado na internet. Web artigos. 22 nov. 2011.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo. Martins Fontes. 2006.

NOËL, Didier. L’évolution de la pensée em éthique médicale. Paris. Conaissances et Savoirs. 2005.

VECCHIO, Giorgio del. História da Filosofia do Direito. Belo Horizonte. Livraria Líder. 2004.

{{Link||2=http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm |3=Declaração de Helsinque I}}

{{Link||2=http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin2.htm |3=Declaração de Hesinque II}}

{{Link||2=http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin3.htm |3=Declaração de Helsinque III}}

{{Link||2=http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin4.htm |3=Declaração de Helsinque IV}}

{{Link||2=http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin5.htm |3=Declaração de Helsinque V}}

{{Link||2=http://www.hportugues.com.br/medicos/pesquisa/legislacao/file.2005-05-

{{Link|es|2=http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin6.htm |3=Declaração de Helsinque VII}}

{{Link||2=http://www.ufrgs.br/bioetica/cioms.htm |3=Diretrizes Ética Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres Humanos}}

{{Link||2=http://www.ufrgs.br/bioetica/res19696.htm |3=Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, Conselho Nacional de Saúde, Res. CNS 196/96}}

 {{Link|en|2=http://www.wma.net/en/30publications/10policies/b3/index.htm |3=Declaração de Helsinki}}

{{Link||2=http://www.cioms.ch/ |3=Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS)}}

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DOENÇA E DOENTE: DÚVIDAS CONCEITUAIS

João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

Existem evidências, reproduzidas em laboratório, de que o estado emocional pode mudar a homeostase (capacidade de o corpo manter-se em equilíbrio com o meio, evitando a doença).
O estudo realizado em conceituada universidade inglesa, mostrou ser necessário mais do que ter o vírus da gripe para que a enfermidade se manifeste. Realizado com quatrocentas e vinte homens e mulheres evidenciou que o estresse determina duas vezes mais possibilidades de a doença acontecer. A distância entre a causa (vírus ou bactéria) e o efeito da presença dos agentes infecciosos no corpo (a doença), está engendrada na complexa malha, pouco entendida do sistema imunológico.
A maior parte das funções que guardam essas defesas inatas e adquiridas permanece imersa em dúvidas.
Como os medos das dores sem controles e da morte continuam muito significativas no cotidiano das pessoas, nos quatro cantos do planeta, é possível pressupor que alcancem também o pesquisador. Essa repulsa seria suficientemente intensa, para interferir nos objetivos do pesquisador?
A transformação tecnológica e da linguagem superficial adaptam-se, continuamente, a esse querer coletivo: multiplicar o prazer, afastar a dor, prolongar os sentidos inatos e adiar a morte. Continuam valendo os determinantes das memórias sociogenéticas*, para preservar o corpo sem mácula, sem doença, à imagem e semelhança da divindade imaginada.
A vontadede desvendar essa complexa malha – doença e doente – fortaleceu a medicina como especialidade e o ato médico interpondo a máquina entre o médico e o doente: raios-X, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas e ultrassonografias aumentaram as possibilidades para ver e entender o escondido atrás da pele.

*A proposta teórica das memórias sociogenéticas, interligando o meio vivido e as emoções sentidas à epigenética capaz de produzir mudanças no genoma, está publicado:
BOTELHO, JB. O deus genético. Manaus. Editora Universidade Federal do Amazonas. 2000. p. 11-146.

Sob essa construção, a proposta do sociólogo Talcott Parsons para consolidar a autoridade do médico tornou-se dominante, na sociedade industrial. O médico assumiu ser sinônimo de agente da proteção pura, evitando a dor e adiando a morte, no mundo laicizado. Por outro lado, contribuiu ao fortalecimento do descrédito dos saberes historicamente acumulados dos curandeiros, benzedoras e parteiras, substituindo-os pela tecnologia médico-hospitalar, inacessíveis à maioria dos que sobrevivem nas periferias urbanas sem água potável e esgoto sanitário.
A estratégia de Parsons, para valorizar o saber universitário, foi reproduzida no Ocidente, sob a perspectiva de metamorfose coerente: o médico é o absoluto responsável pelo corpo sadio e doente. Ao mesmo tempo, diluiu entre as máquinas a responsabilidade da morte.
Mesmo contestados pelas observações corriqueiras, muitos continuam resistindo à idéia da estreita dependência entre o subjetivo-emocional. Nas sessões clínicas, onde se discutem casos médicos de maiores complexidades, estão cada vez mais atados à exclusividade das máquinas, ignorando-se a ligação entre a causa e o efeito: se o paciente tem tuberculose, é lógico encontrar o bacilo de Koch, sem explicar por que os bacilos, iguais na forma microscópica, em algumas pessoas causam doenças no pulmão; nas outras, nos ossos na pele ou no intestino.
Durante uma inesquecível aula prática, há quase meio século, na enfermaria pediátrica, estávamos examinando a criança com diagnóstico de leucemia, quando ela segurou, angustiada, com as mãos pálidas, um pequeno crucifixo metálico e pediu, em lágrimas, o fim da dor. Estava muito assustada. A aparência descarnada inspirava, igualmente, carinho e compaixão. Com a boca tomada pelas feridas e sem um único fio de cabelo, consequências da quimioterapia antineoplásica, a face expressava terror. Todos sabiam que ela não viveria muito tempo. Mesmo assim, o tratamento agressivo era aceito como verdade acabada. Pouco significavao terrível pânico da criança porque as atitudes médicas estavam respaldadas na ciência.
Um dos alunos, impressionado com o desespero estampado nos olhos escavados da pequena doente, perguntou com receio de estar falando tolice: “Professor, por que tanto sofrimento?” Nos segundos seguintes, todos sentiram embaraço indescritível e não houve resposta. Talvez seja possível interpretar aquele silêncio como a alternativa para manter intocável o saber reconhecido. Era a posição cientificamente correta!
Nesse tipo de aprendizagem, não existia a pergunta: os temores e as alegras do doente podem interferir no curso da cura?
A vivência cotidiana profissional demonstra que a medicina, enquanto especialidade social, continua longe de compreender completamente por que e como as mudanças ocorrem no nível da molécula provocando a doença.
É mais grave nos países subdesenvolvidos, onde as instituições de ensino só conseguiram alcançar, ainda com dificuldade, a morfologia celular. Como a expressão morfológica da matéria viva, inclusive a doença, tanto na microscopia quanto na macroscopia é única e jamais se repete, é possível pressupor o quanto é falho esse julgar aceito como indiscutível.
Ainda estamos muito longe de entender em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença, ou, ainda mais desesperador: se realmente existe doença na forma como a compreendemos.

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