Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
Não existem registros precisos do início do embalsamamento. No período pré-histórico, as populações sedentárias nas margens do Nilo, enterraram os mortos sem preparações na conservação dos corpos. A especial qualidade do terreno desértico, quente e seco, conservou intactos alguns corpos. Não é improvável que essa comprovação, incluindo os corpos exumados muitos anos após o óbito, tenha contribuído no aperfeiçoamento das técnicas do embalsamamento com o objetivo de alcançar melhores resultados.
Por outro lado, esse indicativo pode estar relacionado à crença no renascimento após a morte. Restam questões, absolutamente sem respostas, em especial, quanto ao processo que consolidou o convencimento coletivo, nos milênios seguintes, entre os egípcios de ser possível renascer após o enterramento ritual dos mortos.
Os mais antigos registros de mumificação datam de 3.400 a. C. Trata-se de Hetep-Heres, mãe de Keops e mostram os membros desarticulados antes de terem sido envoltas com as bandagens.
Modificações importantes ocorreram nos procedimentos para embalsamar os mortos, no Egito antigo, antes de existir a codificação, elaborada no Novo Império. A partir dessa época, o trato do cadáver obedecia normas de acordo com a riqueza e a importância social do morto.
Em alguns casos, os embalsamamentos duravam sessenta dias: corpo era transportado à casa dos deuses; cérebro liquefeito e retirado através das fossas nasais; evisceração abdominal por meio de incisão no flanco esquerda para a retirada dos órgãos; coração permanecia no lugar; as vísceras recebiam cuidados e eram depositadas em recipientes adequados (canopos); corpo desidratado, lavado com óleos e essências e envolto com tiras de pano.
As fontes contidas nos papiros são claras no sentido de não haver correlação entre o extraordinário progresso alcançado na técnica de mumificação e o conhecimento da anatomia humana. Sob a perspectiva atual, considerando o incontável número de múmias, produzidas em mais de dois milênios de história do povo egípcio antigo, seria natural esperar-se um soberbo conhecimento anatômico humano. Mas, não foi isso o que aconteceu. A descrição dos órgãos estava quase sempre identificada com ferimentos abertos pelo trauma da guerra ou eram de animais. Esse fato reforça as suposições no sentido de: mumificadores não mantiveram relação especial com a Medicina.
Os registros também apontam no sentido de que os componentes da teogonia e teofania egípcias, principalmente, o ka, que valorizava o conservação do corpo, na esperança do renascimento, contribuíram para que não fosse atribuída importância ao estudo da anatomia.
O modo como os embalsamadores tratavam o corpo morto com o objetivo de mumificá-lo, evitando determinar deformidades, também indica a importância dada à inviolabilidade religiosa do corpo morto, sem relação com o aprendizado.
Como não é possível ensinar e aprender sobre o escondido atrás da pele sem esmiuçar os órgãos, apesar do notável avanço na medicina egípcia do Novo Império, a construção teórica para compreender e tratar as doenças se consolidou distante do estudo da anatomia humana.
Essa guarda religiosa dos corpos mortos, no politeísmo egípcio, se repetiu nos monoteísmos judaico, islâmico e cristão, punindo com a morte os que ousavam desobedecer, no Ocidente cristianizado, dificultou muito o estudo da anatomia humana. A ruptura dessa ordem impositiva só se consolidou no Renascimento europeu.