Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
As idéias médicas estruturada na tríade — diagnóstico, tratamento e prognóstico — apareceu com clareza no pensamento grego, no século 4 a.C., de forma tão bem sedimentada que influenciou, marcadamente, os caminhos tomados pela Medicina ocidental nos vinte séculos seguintes.
Naquela época, o médico assumiu atributos mais amplos, reconhecido como um dos especialistas sociais que poderiam contribuir na edificação do pensamento coletivo, sem dúvida, transpondo as funções históricas somente centradas na cura das doenças, presentes em muitas sociedades, tempos antes da polis grega.
Por essa razão, alguns médicos destacaram-se na busca de explicações sobre aspectos visíveis do funcionamento do corpo, isto é, novos entendimentos da saúde, sem dependência da vontade dos deuses e deusas, sob a égide do entendimento jônico da natureza visível. Um desses homens extraordinários, o medico e filósofo Empédocles utilizou a clepsidra para ilustrar a teoria da respiração formulada por ele, segundo a qual o corpo transpira por meio dos poros, espalhados na superfície da pele. Esse pressuposto teórico, absolutamente genial, continua válido!
A influência jônica, buscando a materialidade dos fenômenos corporais, mais ou menos visíveis, foi tão intensa que a maior parte da literatura médica da época foi registrada em prosa jônica, apesar de ter sido escrita na ilha de Cós, de população e língua dóricas, onde floresceu a Escola Médica de Hipócrates. Esse fato por si só, retrata a relevância da cultura jônica naquele tempo.
Não há dúvida de que a importância social do médico, na Grécia, como o principal agente na busca da saúde já era reconhecido, coletivamente, desde Homero que sentenciou no magistral Ilíada: “O médico vale por muitos homens”. A mudança dessa abordagem mítica do médico, ligada ao panteão, especialmente em Apolo e Asclépio, presente tanto nos versos de Ilíada quanto nos de Odisséia, para aquela valorizando os princípios jônicos, contribuiu para consolidar o destaque social do médico sob outra perspectiva: a busca da relação do corpo com a natureza, referida de diferentes modos por Platão (Protágoras 313D, Górgias 450A, 517E, República 298A e Timeu 78B).
Os vínculos da Medicina com a natureza, tão bem assimilados pelos gregos, claramente, ultrapassavam o senso histórico da cura das doenças e fixavam regras no conjunto social, objetivando a melhoria das condições de saúde. Essa afirmação também pode ser comprovada em Sólon, que descreveu a conexão das doenças ao todo social. Baseado nesse pressuposto, Sólon fundamentou parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiram na qualidade da saúde coletiva.
De modo semelhante, os elos entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante também estão nítidos na introdução do livro Dos Ventos, Águas e Religiões, de autor desconhecido, escrito nesse magnífico período:
“Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presente as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais, mas diferem radicalmente quanto a sua essência especifica e quanto as suas mudanças”.
Por todas essas razões, parece razoável afirmar que um dos pontos fundamentais da Medicina grega, no século 4 a.C., firmou-se na filosofia jônica da natureza, como meio de explicação da saúde e das doenças, sem a influência das idéias e crenças religiosas.
Parecer lógico pressupor que como uma das consequências dessa influência jônica,floresceu a Escola de Cós, que congregou médicos e filósofos, sob a influência de Hipócrates, em quem Platão reconheceu a personificação da Medicina.
Hipócrates foi realmente respeitado como símbolo de uma Medicina corretamente aplicada, essencialmente, voltada ao bem-estar e a recuperação do enfermo, como está claro nas conhecidas passagens de Platão (Prot.313 B-C e Fedro 270 C) e de Aristóteles (Pol. VII, 1326).
O aparecimento de uma literatura médica específica, discursiva na busca das condutas que poderiam melhor ajudar o doente, mostrou-se importante no desenvolvimento e aceitação da importância da Medicina nas relações sociais. Nesse sentido, tornou-se fundamental a interpretação do papel social do médico registrada por Platão (Leis, 857 D e 720 C–D), onde abordou as terríveis diferenças entre as Medicinas praticadas nos escravos e nos homens livres. Com arguta percepção, o magistral filósofo descreveu de modo satírico a conduta dos médicos que tratavam os escravos, correndo de um doente para o outro e oferecendo instruções rápidas sem convencimento, com os que atendiam os homens livres, sempre bem remunerados, com tempo disponível para explicar cada etapa do tratamento preconizado.
O interesse pelo saber das matérias médicas, presentes no homem culto grego, pode ser compreendido na figura do jovem Eutidemo, que Xenofonte descreveu como grande entendido da Medicina sem ser médico, e do historiador Tulcídides, que relatou com incrível minúcia o quadro médico-social da peste que assolou Atenas entre os anos 430 e 427 a.C.
Aristóteles vai longe e chega a distinguir na sua obra Política (I, II, 1282), o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções especificas.
Esse conjunto de informações é suficiente para afirmar a existência de uma literatura médica que alcançava os letrados da polis. Nesse conjunto, também é possível perceber a complexa interdependência entre os conceitos produzidos pelos filósofos não médicos e pelos médicos. Algumas vezes, estavam em acordo; em outras, em completa discordância.
A compreensão mútua, perceptível entre médicos e filósofos, de que a saúde era o produto do equilíbrio de várias forças antagônicas no organismo, contribuiu para consolidar outra corrente de pensamento, liderada por Políbio, o genro de Hipócrates, que sob a influência da idéia dos quatro elementos da Empédocles — fogo, ar, água e a terra — e da noção do justo equilíbrio proposto por Anaximandro, produziu a teoria dos Quatro Humores — sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso negro — para explicar as causas da saúde e das doenças. A teoria dos Quatro humores, atribuída a Políbio, descrita no livro Da Natureza Antiga:
“O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra; que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsável pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo quando estas coisas estão na devida proporção em relação uma ás outras, no que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturada com as outras”.
O autor desconhecido do livro Da Natureza Antiga discorda do dogmatismo a priori da filosofia de que todas as doenças são formadas pelo excesso de calor, frio, secura ou humanidade. No Corpus Hipocraticum (cap.XIII), o autor também sem identificação, usando como argumentos teóricos os quatro elementos de Empédocles e a teoria dos Quatro Humores, argumenta sobre o mesmo assunto:
– Que no caso de um doente afetado por uma alimentação cozida, não é possível dizer se a causa foi o calor, se o frio, se a humanidade ou a secura;
– Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de tomar água quente ou vinho quente ou leite quente e a água o vinho e o leite tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor.
Em torno dessa discussão dos acordos e desacordos entre filósofos e médicos gregos, no século 4 a.C., é possível entender a teoria dos Quatro Humores como o primeiro corte epistemológico da Medicina, antepondo-se frontalmente as práticas médicas, sob a tirânica influência das idéias e crenças religiosas, nas primeiras cidades, margeando os rios Nilo, Indo, Tigre e Eufrates.
A teoria dos Quatro Humores norteou os rumos da Medicina dominando as técnicas dos diagnósticos e das terapêuticas por quase dois mil anos.