Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
O marco dos primórdios da ruptura da Medicina com o mágico está expresso no livro “Das Doenças Sagradas”. Pela primeira vez, uma doença é retirada do domínio dos deuses e deusas e assentada no domínio da tékhne, no trecho em que o autor afirma: “Quanto a doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras”.
Foi nessa época, na ilha de Cós, no século 4 a.C., o esplendor da Escola de Cós, sob a liderança de Hipócrates, em quem Platão (“Protágoras”, 313b-c e “Fedro”, 270c)) e Aristóteles (“Político”, VII, 1326) reconheceram a personificação da Medicina.
Apesar de todas as obras desse período ter chegado a nós sob o nome de Hipócrates,não existem dúvidas de que foram escritas por diferentes autores.
Os integrantes da Escola de Cós deixaram o maior legado da Medicina grega como paidéia: a teoria dos Quatro Humores. Para cada elemento de Empédocles, associaram uma categoria teórica, denominada “humor”, unindo com coerência as qualidades da natureza e as do corpo. Atribuída a Políbio, genro de Hipócrates, está no livro “Da Natureza do Homem”: “O corpo humano contem sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza”.
Por outro lado, não foram menores os embates entre os filósofos e os médicos. As contradições estão claras na análise de quatro textos:
– Heráclito de Éfeso (540-470), de genialidade exclusiva, é contundente na antipatia pelos médicos: “Os médicos, quando cortam, queimam, e de todo o modo torturam os pacientes, ainda reclamam um salário que não merecem, por efetuarem o mesmo que as doenças”;
– Autor desconhecido do texto “Sobre a Medicina Antiga”, escrito no século 4 a.C., ressalva o relacionamento conflituoso entre médicos e filósofos;
– No livro “Da Natureza do Homem”, atribuído a Políbio, enfatiza com veemência as idéias de Alcméon, defensor da idéia da saúde ser dependente do equilíbrio de múltiplas forças dinâmicas e a doença seria o predomínio de uma sobre as outras;
– Platão (“República” , 407b, c, d, e) adotou o modelo médico dos tempos homéricos. Esta leitura platônica,no genial “A República”, ativou o conflito de competência entre a Medicina como ciência, incluída na interpretação da natureza através da tékhne, e a religião. Por outro lado, em aparente contradição, Platão (“Leis”, 720a, b, c, d, e) retoma a Medicina como téhkne ao distinguir as diferenças entre as práticas Medicinais entre pobres e ricos. Platão faz a abordagem satírica de como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres:
Platão, de modo genial, explicou que se alguém ouvisse o médico tratar pessoas ricas, dando explicações da doença e do tratamento, ao comparar com a atenção do mesmo médico ao escravo riria muito e diria:”O que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico”.