Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
A análise das imagens metafóricas da coisa sagrada, tanto nas práticas sociais e políticas dominantes quanto nas periféricas, é indispensável para compreender o conflito de competência entre a Medicina e as crenças e idéias religiosas.
Sob essa perspectiva, é possível entender melhor alguns cenários de como e por que os curadores populares, adivinhos, magnetizadores, feiticeiros e benzedores nunca cessaram de receber os consulentes, suplicando as curas de incontáveis males físicos e emocionais.
O repensar do binômio “curas-coisa sagrada” suscita contínuo interesse das academias que conseguem repensar os compromissos monolíticos com a lógica das concepções científicas, porque a cura mágica ou milagrosa, que interliga o pedinte à coisa sagrada, parece tratar-se de uma forma de credulidade. O processo reprodutor desse fenômeno social passa, necessariamente, pela crença pessoal ou coletiva no poder de curar exercido pelas coisas sagradas. Deste modo, a coisa sagrada é, antes de tudo, aquilo que cura.
A disputa trançada entre a medicina popular, amparada na coisa sagrada como instrumento de cura, e a medicina construída nas universidades, raramente vem à tona despida de paixões, ora em defesa, ora atacando violentamente uma ou outra. Como consequência desse embate, a importância social da medicina popular é diluída na polarização de uma luta de poder em torno da cura.
Os dois pressupostos ─ a existência da coisa sagrada nas crenças religiosas como instrumento de cura e a religião mantendo diversos níveis de conflito com outras categorias na busca da saúde ─, contribuíram para estruturar pensamentos e atitudes pessoais e coletivas que conduziram o homem e a mulher, no duplo papel de executores e objetos das práticas de curas, para enfrentar o determinismo da morte.
A literatura que trata dos temas, por meio da Nova História, se enriqueceu nos trabalhos associando as práticas religiosas de curas às coisas sagradas ao conjunto sócio-político. Os progressos teóricos para melhor entender os movimentos sociais estão se fazendo de modo contínuo, inclusive no que diz respeito às abordagens da história da medicina e da doença, antes exclusivas dos relatos factuais e épicos pessoais.
Nessa trilha, existem evidências muito antigas da associação da coisa sagrada com as curas das doenças e com a luta ancestral para vencer o determinismo da morte. Uma das mais significativas é data da comemoração do dia do médico — 18 de outubro — que corresponde, na mitologia grega, à época em que se celebrava a festa do filho de Apolo, Asclépio, o mais importante deus curador do panteão grego. Pela importância da festa nas tradições populares da antiguidade, o cristianismo acabou provocando o sincretismo e manteve o mesmo registro festivo, no calendário cristão, para marcar o nascimento de São Lucas, o Evangelista médico.
Entre o início e o fim da vida, no passado distante e no presente, homens e mulheres convivem com a certeza da doença e da morte. Nas pouco anos vividos, fogem da dor: buscam lugares e coisas que oferecem prazer, protegem da fome, do calor, prolongando a vida, mantendo a saúde e combatendo a doença.
O imaginável renascimento após a morte — mais significante de todas as coisas sagradas — que cura todas as doenças e prolonga a vida ao tempo infinito, é o alicerce que mantém vivo o conflito de competência entre a medicina e a religião.