Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
Constitui um equívoco associar o milagre somente ao cristianismo. A convivência dos homens e mulheres com os fatos extraordinários — os milagres — materializados a partir das vontades divinas, nos quatro cantos do planeta, constitui história de longa duração.
Os cultos terapêuticos dos povos que habitaram as terras férteis, nas margens do Indo, do Nilo e da Mesopotâmia, eram fortes nas relações sociais e muito utilizados por ricos e pobres. Naquelas culturas, os registros mais antigos, alguns com 4.000 anos, a doença era compreendida, invariavelmente, ligada ao pecado e à ação dos deuses e deusas maus.
Os panteões daqueles povos estavam repletos de divindades taumaturgas e os peregrinos se dirigiam aos santuários à procura da cura milagrosa assentada no pressuposto do curador mágico ser competente para curar e empurrar os limites da morte.
É no Antigo Testamento, notadamente no Pentateuco, que o milagre apareceu como sinal, ligado à fé monoteísta, em contraposição ao politeísmo dominante. O fundamento da fé, para a liturgia judaica, não é o simples milagre, mas sim a Criação como a existência concreta e estrutura da moral. Desse o ato criador, essencialmente divino, concretizou-se acima de todas as leis da natureza, sendo o primeiro e o mais importante de todos os sinais. Assim, Iahweh estabeleceu o ritmo das estações (Ge 8, 22), o curso das estrelas (Sl 148, 6), movimento dos mares (Jó 38, 10), as leis do céu (Jó 38, 33) e as da terra (Jr 33, 25).
A herança do judaísmo observa duas tendências na interpretação dos milagres. A primeira admite a Bíblia plena deles, devendo constituir fonte de reflexão à pequenez do homem. A segunda está relacionada com as interpretações místicas do judaísmo contidas no Zohar, o livro dos Esplendores, escrito em torno do século 12, na Espanha. Nessa, os rabinos não aceitaram a necessidade do sinal porque existiria harmonia absoluta entre o Criador e a sua obra.
A tradição semita também compreendeu a enfermidade como castigo pelas faltas cometidas contra a Lei (Ex 4, 6) e a saúde ligada à intervenção divina (Sl 38, 2‑6).
Os primeiros teóricos cristãos construíram fantástica re-elaboração teórica dos sinais referidos no AT. Os milagres de Cristo, descritos pelos quatro evangelistas, assumiram grande importância na apologética da nova religião.
São Tomas de Aquino compreendeu a importância do milagre estrutura na fé como “fato extraordinário produzido por Deus”. Dessa forma, os anjos bons e os santos poderiam ser instrumento na promoção dos acontecimentos situados à margem das leis naturais. Por outro lado, distinguiu o milagre do prodígio. Esse último, simples simulacro, não era fruto do poder divino.
Estabelecendo o juízo de valor, o tomismo dividiu o milagre em duas categorias: absolutos ou de primeira ordem e relativos ou de segunda ordem. Só o primeiro seria verdadeiro, porque superando, em si mesmo, todas as concepções da natureza criada, só Deus seria o autor. O relativo, ao contrário, poderia ser determinado por meio de outras forças sensíveis ligadas ao demônio.
O milagre apologético, sempre de primeira ordem, deve ser perceptível e confirmar a origem divina da revelação. Esse milagre como instrumento de louvor, assume enorme importância na catequese pela própria natureza, porque é capaz de mudar a forma dos corpos, curando a doença como mal. Logo, a cura de uma doença, considerada mortal, pode ser entendida como milagre e sinal de Deus, justificando a consagração.