Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
A mais antiga referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral escrito nos anos 100: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida”. Existe a possibilidade de ter sido escrito por religiosos egípcios monoteístas, com ideário semelhante aos dos cristãos.
Essas regras influenciaram, de alguma forma, o filósofo cristão Tertuliano (190‑197). Nos seus escritos abandonou a posição aristotélica, aceita nas comunidades do mundo greco-romano, para adotar a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.
A posição tertuliana, isto é, a alma e com ela o pecado original é transmitida pelo esperma, que fundamentava a negação ao aborto provocado, além de ter sido negada pela Igreja, não foi suficiente para resolver as diferenças entre os fetos animados e inanimados levantada pelo aristotelismo. Isto sim, gerou a contra-resposta patrocinada pelo Criacionismo, advogando que é Deus, diretamente, ninguém ou nada mais, introduz a alma no feto, e, dessa forma, fazendo-o vivo e humano. Porém, não só isso, mas a simbiose entre vida e ser, como a súmula perfeita do ato divino gerando a vida. A passagem em João 14, 6 é significativa: “Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida.”
Apesar do Concílio de Elvira (305) ter ameaçado de excomunhão todas as mulheres que abortassem após adultério, essa questão apaixonou muitos intelectuais do século 4. Como não existe registros refutando ou punindo o aborto, é provável que mesmo com o freio imposto pelo cristianismo em ascensão política, a tradição permissiva do aborto, pelo menos na compreensão aristotélica, dominava o cotidiano nessa época.
Uma parte significativa das propostas teóricas dos doutores da Igreja, teceram-se em torno de Mt 19, 12: “…há eunucos que nasceram assim, desde o ventre materno. E há eunucos que foram feitos eunucos pelos homens. E há eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus. Quem tiver a capacidade para compreender, compreenda. ”
Era necessário que essa clara exclusão da sexualidade para alcançar a santidade, explícita no Evangelho, fosse referendada e socialmente dissecada para melhor compreensão entre os leigos.
São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algasia, argumentou que: “…os semens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”.
Em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos. Parece claro que o suicídio foi incluído, nas análises de São Jerônimo, porque ainda ocorria essa opção para escapar às agruras da infidelidade descoberta.
Santo Agostinho, o genial teórico do cristianismo, argumenta que todos os seres humanos nascem em pecado, porque são concebidos em pecado, porque o primeiro homem, Adão, pecou. Essa fantástica articulação teórica – a doutrina do pecado original – . foi consagrada como doutrina oficial da Igreja. A doutrina agostiniana está associado à sexualidade proibida: “Estou convencido de que nada afasta mais o espírito do homem das alturas do que os carinhos da mulher e aqueles movimentos do corpo sem os quais um homem não pode possuir sua esposa.”