Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
A palopatologia dos fósseis mostra que os homens e mulheres pré-históricos estavam sujeitos às doenças semelhantes as que nós, na atualidade, continuamos enfrentando. A fratura traumática constituiu uma das doenças mais frequentes nos fósseis estudados, em algumas delas, foram confirmados sinais evidentes de infecção do osso, a osteomielite, lembrando as encontradas nos hospitais de hoje.
Também se comprovou a existência de doenças não traumáticas, como a gota das cavernas, uma espécie de reumatismo. O pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica nos dias atuais, existe desde o Pleistoceno Médio, isto é, há mais de 100.000 anos. A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico em muitos países, inclusive no Brasil, está documentado no esqueleto de homem do período Neolítico, constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico dessa doença.
A ocorrência de moléstias na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para controlar a dor, conservar a saúde e empurrar os limites da vida. Desse modo, é importante relembrar que certos animais, quando feridos, lambem os ferimentos; outros mamíferos, promovem limpeza mútua dos pelos e comem plantas que provocam vômitos. É provável que o homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira: lambendo o machucado e pressionando o local para interromper a hemorragia.
Perdura a questão da existência de ritual mágico, na pré-história, ligado às concepções míticas, na busca de cura das doenças. Na gruta de “Trois Fréres, nos Pirineus franceses, está a pintura rupestre de um personagem em movimento de dança, datando de 10.000 anos, travestido de cervo, em atitude que sugere uma espécie de ritual, semelhante à dança dos bisões, dos índios do norte dos Estados Unidos, e a dos índios tukanos, no norte do Amazonas, ambas utilizadas em cerimônias simbolizando o poder animal na cura das doenças.
O conjunto das informações paleopatológicas, no Neolítico, sugere fortemente a gradual incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem. Essas atitudes, algumas vezes agressivas, como a trepanação do crânio, a abertura dos ossos do crânio. Essa extraordinária prática é facilmente comprovada por meio do estudo dos fósseis. E mais, alguns desses homens pré-históricos submetidos a essa cirurgia sobreviveram muito tempo, comprovado pelo crescimento do osso cortado.
É interessante assinalar, sem que existam explicações plausíveis, que as trepanações, realizadas no Neolítico europeu, também foram executadas até o século 16, em sociedades que não tiveram contato inter-étnico, como as da Polinésia Francesa e as do altiplano peruano pré-colonial.
Fora das dúvida por que as craniotomias foram realizadas, não se pode negar que representou algo absolutamente extraordinário, na medida em que uma parte do corpo, o conteúdo do crânio, foi exposto intencionalmente, desvendando o escondido atrás da pele.
Essa demonstração explícita de poder – o homem intervindo no corpo de outro homem – resultaria em grande destaque no grupo social. Respeitando as devidas proporções, essa relação de dominação do curador sobre o objeto da sua prática – o doente –, sob alguns aspectos, perdura até os dias atuais como um dos instrumentos da atávica fuga da dor e a preservação da vida. Pode ter sido um dos pilares sustentadores que edificaram o homem primitivo no processo de assimilação dos saberes para evitar a dor e a morte, capaz de impulsionar o ímpeto para desvendar o invisível, como primeiro passo ao aperfeiçoamento da linguagem e da transmissão dos saberes.