Desse modo, a Medicina como Paideia abriu o caminho para a dominação da medicina-oficial sobre a medicina-divina e a medicina-empírica. É possível que com esse objetivo central, os conceitos jônicos da natureza tornaram-se as principais medidas da medicina-oficial. As normas alcançaram os significantes das enfermidades entendendo-as como desvios da natureza e em maior amplitude, mudança na physis do homem.
É possível compor cinco alicerces fundamentais da physis embutidos na Medicina como Paideia:
– Como universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis própria, os astros, os ventos, as águas, os medicamentos, o homem com as suas partes e as doenças (Das Epidemias, distingue: “…a physis comum de todas as coisas, da physis própria de cada coisa”;
– Como princípio: a physis é o princípio (arkhé) de tudo que existe (Sobre os Lugares e o Homem, lê-se: “A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina”).
– Como harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é harmoniosa; é a ordem que se realiza com beleza. A natureza é harmoniosa e produz harmonia;
– Como racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão existe uma fisiologia; a ciência na qual o logos do homem se harmoniza diretamente com os logos da natureza;
– Como divindade: a physis é em si mesma divina.
É possível que esse caráter divino da physis estivesse transparecendo a necessidade de o senso comum manter a medicina-oficial ligada à medicina-divina e à medicina-empírica ou, sob outra perspectiva, não ser possível a completa separação entre as três medicinas.
Esse é um dos aspectos mais interessantes na Medicina, na Grécia, do século 4 a.C.: mesmo sem ataques aos deuses protetores da saúde, em especial, ao deus Asclépio, os médicos de Cós e os filósofos estabeleceram elos duradouros entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante, como está presente na introdução do manuscrito Dos Ventos, Águas e Regiões, de autor desconhecido, escrito no século 4 (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855. p. 1050):
– Cada doente ficou compreendido como um doente, diferente de todos os outros;
– Desaparecimento gradual da receita médica que valia para todos, como uma receita de bolo.
O centro de confluência dessa nova estrutura aproximou-se da teoria dos Quatro Elementos, do filósofo e médico Empédocles (495-435 a.C.). Segundo esse magistral filósofo de Agrigento, os corpos são formados por quatro elementos eternos que permanecem em constante movimento: fogo, terra, água e ar.
Estava em curso, pela primeira vez, uma proposta teórica para explicar a origem das doenças, divorciada dos deuses e deusas. Toda e qualquer enfermidade seria consequência do desequilíbrio entre um ou mais elementos.
Como toda mudança profunda nos saberes, a passagem da medicina-divina e da medicina-empírica, ambas ametódicas, mais ou menos mágicas, para a medicina-oficial metódica, unindo o diagnóstico, prognóstico e o tratamento valorizando a busca da etiologia, encontrou resistência em muitos setores da sociedade grega. Para contornar esses estorvos, os médicos expunham, como os sofistas, perante o público, os problemas determinados pelas doenças que poderiam causar a morte e a dor fora de controles.
Não é demais repetir que Platão, sistematizou o pensamento corrente da época ao descrever a nova postura do médico e do político. Ambos, baseados nos respectivos saberes, deveriam sempre que necessário, intervir na sociedade para promover melhoras. O diálogo platônico estabelece alguns parâmetros da nova posição social do médico atuando como agente da Medicina como Paideia no magistral Político (296a-b-c) (Platon. Oeuvres Complètes. Paris. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2.):
Estrangeiro: — Ora, como chamaríamos aquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto?