CÉREBRO: O ELO FINAL ENTRE EVOLUÇÃO E CONSCIÊNCIA

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

            O homem ao longo do processo de evolução tem procurado, caminhando em diferentes trilhas, o centro do corpo, simbolizando a natureza da consciência.

            Existe indicativos desde os primeiros registros escritos, há mais de quatro mil anos, de que a busca da consciência foi dimensionada em duas direções:

– A sagrada, sagrando coisas e homens;

– A profana, buscando a ressonância das ideias na realidade vista e mensurada.

            No espaço sagrado, as divindades emergiram com força motriz para dominar os sentimentos. A vontade divina assumiu o controle das emoções, bastando o suplicante pedir ajuda às divindades. Restava às pessoas cumprirem fielmente o determinismo inexorável, vindo do céu, obedecendo às ordens dos representantes na terra do poder divino e agradecer, com oferendas e ritos de louvor, a vida vivida. De certo modo, essas características têm mantido semelhanças até os dias atuais.

            Na dimensão profana, isto é, aquela situada à margem do sagra­do, mais árduo, as pessoas iniciaram a longa busca para conhecer o próprio corpo escondido atrás da pele como primeiro passo para saber porque chorava, ria, amava e odiava. O esforço tem se mostrado difícil, cheio de avanços e recuos.

Sob certos aspectos, o problema básico da escolha reside no fundamental conflito de competência entre os dois espaços para desfazer as dúvidas e seduzir pelo convencimento. Desse modo, são bastantes claras as sucessivas tentativas, quase sempre no sentido do sagrado ao profano, para utili­zar o naturalmente observável, mortal e mensurável, para legitimar o imaginado, eterno e não mensurável.

            É possível que a estratégia usada para superar as dúvidas tenha iniciado com a sagração do corpo, uma parte dele ou coisas, transformando-as de acordo com as necessidades, para facilitar a comunicação com o divino. As interpretações dos registros arqueológicos mesopotâmicos mostram com bastante clareza que o fígado foi escolhido por aqueles povos como a porção mais importante do corpo. Os sentimentos que dirigiam a vida estavam localizados na estrutura hepática. É impossível saber exatamente a razão determinante da escolha e porque não outro órgão como o pulmão, o coração ou o cérebro.

            Os indícios dessa preferência podem ser averiguados com o auxílio dos registros cuneiformes nas tábuas de argila, com farta citação de o fígado ter sido compreendido como o centro mágico do corpo. É possível teorizar a partir desses dados que existem forte possibilidade de as margens alagáveis dos rios Tigre e Eufrates, onde as sociedades sumério-mesopotâmicas se desenvolveram, as doenças febris tenham sido prevalentes com manifestações de doença hepática por meio do amarelamento da pele (icterícia) da mucosa dos olhos e da boca. É interessante que o deus aterrorizante Pazuzu, também relacionado com os ventos, identificado com aparência grotesca em forma de mosquito díptero. Nada nos impede de relacionar esses dados com a possibilidade de as doenças febris estarem relacionados com a malária nas áreas onde o inseto díptero era fartamente identificável.

            Adotando esse raciocínio, é lógico se alguém pudesse inter­pretar as variações anatômicas do fígado, o centro do corpo, o órgão mais sanguíneo, tanto nos ruminantes quanto nos humanos, seria capaz de prever o futuro pessoas. A adivinhação pela hepatoscopia, a análise da forma do fígado de um carneiro, especialmente sacrificado para saber a vontade dos deuses, era uma prática corriqueira em todos os estra­tos sociais.

            O judaísmo resistiu desde os primeiros tempos à tradição politeísta e colocou o centro do corpo no coração. É possível supor que a escolha está contida em outro saber historicamente acumulado que apontava as mudanças do ritmo das batidas cardíacas durante as fortes emoções.  No Antigo Testamento (AT) existem algumas citações metafóricas do coração como sede da vida física (Ge 18, 5; At 14, 17), da tristeza (Dt 15, 10), da alegria (Dt 28, 47) e do medo ( Dt 20, 3).

            O cristianismo não fez inovações e manteve a mesma certeza de que Deus se comunica com os homens através do coração (Mc 2, 6‑8; Lc 3, 15; 2Co 2, 4).

            O islamismo construiu além. Estabeleceu relação com a presença do Espírito sob o duplo aspecto do Conhecimento e do Ser. O coração passou a representar o órgão da intuição (“al kashf” = revelação, ato de levantar o véu) e o ponto de identificação (wajd) com o Ser (al wujud).

            No século IV a.C., a Escola Médica de Cós, na Grécia, onde floresceu a conjunto de saberes liderados por Hipócrates, mencionado nominalmente por Platão, iniciou a contestação indicando o cérebro como a centro do corpo. A proposta grega não conseguiu avançar fora dos poucos letrados da ilha de Cós.

             No medievo europeu, a força cultural do cristianismo dominante fez com que, pouco a pouco, o fígado deixasse de ter importância e a consciência volitiva fosse acoplada às batidas cardíacas. A literatura medieval está repleta de aforismos associando o coração à felicidade e às tristezas.

            É também interessante assinalar que a força do espaço sagrado cristão conseguiu desmoralizar uma das máximas de Hipócrates de o cérebro ser o centro das emoções:

“Algumas pessoas dizem que o coração é o órgão com o qual pensamos, e que ele sente dor e ansiedade. Porém não é bem assim: os homens precisam saber que é do cérebro e somente do cérebro que se originam os nossos prazeres, alegrias, risos e lágrimas. Por meio dele, fazemos quase tudo: pensamos, vemos, ouvimos e distinguimos o belo do feio, o bem do mal, o agradável do desagradável… O cérebro e o mensageiro da consciência… O cérebro é o intérprete da consciência.”

O desvendar profano do corpo chegou com a anatomia renascentista, nos séculos XVI e XVII, resgatando a maravilhosa percepção de Hipócrates e trouxe para o primeiro plano um novo centro corpóreo como elo final entre a evolução e consciência humanas: o cérebro.

            A suprema beleza da “Criação do Homem”, pintada por Michel­angelo (1475‑1564), no teto da Capela Sistina, no Vaticano, é a sublime manifestação na arte do deslocamento do coração, como o centro do corpo, para o cérebro. O afresco que retrata o momento em que o homem recebeu de Deus a inteligência tem a perfeita forma do sistema nervoso central.

            Diferente da opção feita pelo fígado e coração, o cérebro foi seguramente proposto como centro do corpo no espaço profano dos saberes, mas as dificuldades persistem para identificar, na estrutura material (neuroanatomia) e na função do sistema nervoso central (neuro­fisiologia), como a estrutura cerebral constrói o pensamento.

            Alguns filósofos trataram desse tema para estabelecer o elo entre cérebro e consciência. René Descartes (1596‑1650) admitiu uma res cogitans (substância pensante) se comunicando com uma res extensa (substância material) por meio da glândula pineal. A neurofisiologia atribuiu a essa pequena estrutura cerebral o papel bem menos importante: a secreção, em determinada época do crescimento, de alguns hormônios relacionados com a maturação sexual. Nada tendo haver com as suposições do filósofo francês.

            Karl Popper (1902‑1994), o filósofo resistente às posições não realistas, propôs um sistema de três mundos: das coisas, das experiências subjetivas e dos e dos enunciados. Pela construção de Popper a obra de Michelangelo, na Capela Sistina, poderia ser desdobrada em: a composição material utilizada (tinta, pin­cel, superfície pintada) estaria contida no mundo das coisas; a ideia para associar o cérebro (dando a forma da pintura) como fonte de inteligência oferecida por Deus seria o fruto da experiência subjetiva e a criação acabada representaria o produto exclusivo do homem.

            Do outro lado de Descartes e Popper, está a proposta do biólogo francês Jean Pierre‑Changeux, professor do Collège de France, em Paris, sobre a possibilidade de existirem áreas cere­brais onde estariam localizadas as representações, portanto tendo uma base física.

O escasso saber na neurofisiologia pode alimentar as discussões filosóficas como atos de fé. Por isso, é justo pretender identificar a arquitetura física da consciência, no cérebro, no neocórtex frontal, particularmente desenvolvido a partir dos ancestrais Homo sapiens, para iniciar novas construções teóricas da compreensão do cérebro como elo final entre a evolução e a consciência.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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