Dr. HC. João Bosco Botelho
A história está repleta de dados confirmando a existência, desde tempos imemoriais, dos curadores e adivinhos.
É necessário entender as práticas dos curadores e adivinhos como história de longa evolução, sob o enfoque dinâmico das relações sociais, para que possamos compreendê‑los como agentes de coesão social.
Até hoje, discute-se se essas pessoas especializadas em curar e adivinhar tenham a qualidade especial ‑ o dom ‑ que as distingam das outras. Enquanto a ciência não tiver resposta, continuará prevalecendo o sentido bíblico (Tg 1, 17): “Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das Luzes”, isto é, estritamente expresso na linguagem religiosa.
Essa constatação ficou clara a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme, em algumas tábuas de argila, encontradas nos sítios arqueológicos babilônicos, esclarecendo que as palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento, expressas na mesma palavra.
Por outro lado, é possível evidenciar que os curadores e adivinhos, em muitos contextos históricos, exerceram função equivalente na organização social. Talvez, por esta razão os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estiveram ligados desde os primeiros registros.
Parece lógico pressupor que a posse do dom, desse as primeiras cidades, acrescentou mais evidência a quem o possuía, colocando‑o em destaque na comunidade. Nas práticas, os adivinhos e curadores utilizaram esse poder no trato da doença para manter privilégios e estruturar núcleos de resistência em situação de adversidade, especialmente, após mudanças políticas traumáticas.
Alguns personagens citados no Antigo Testamento, como Baal e sua filha Astarte (Jz 2, 13), cultuados na Mesopotâmia, foram identificados pelo judaísmo como curadores e adivinhos inimigos. Nos tempos, os sacerdotes organizaram forte resistência contra Israel.
O processo de substituição cultural nunca se dá em linha reta. É efetuado em dois momentos distintos: a desmoralização do antigo e a substituição pelo novo. É somente no segundo instante que a conquista se consolida, quando aparecer o herói mítico de salvação, sempre um curador e adivinho poderoso – para satisfazer as aspirações coletivas imediatas.
Com a mesma abordagem é possível enfocar alguns aspectos do processo colonizador brasileiro, onde o sincretismo religioso se fez muito forte em todos os estratos sociais.
A força dos núcleos de resistência à substituição cultural imposta pelo colonizador cristão, no Brasil, em diferentes épocas, obedeceu às tendências das três tradições religiosas, com os respectivos representantes presentes como curandeiros e adivinhos: o pajé, o pai-de-santo e o padre.
O pajé, esteio da coesão tribal, apesar de ter sido brutalmente desmoralizado pelo elemento colonizador, continua resistindo nos confins das florestas amazônicas. O padre salesiano Alcionílio Bruzzi, depois de conviver durante mais de duas décadas num povoado da tribo Tukano, é testemunha dessa resistência: “É talvez o maior sacrifício que a catequese católica impõe aos indígenas cristãos, a renúncia à crença no poder do pajé. Em alguns casos só o consegue parcialmente”.
A Igreja ao combater sistematicamente os curadores e adivinhos nascidos das tensões sociais e sem compreendê‑los como agentes de coesão social, no Brasil, não está conseguindo processar linguagem sedutora capaz de satisfazer os desejos nascidos nas contradições das periferias urbanas.
Essa dissociação entre a hierarquia eclesiástica e a concepção do sagrado, das massas populares, em parte responsável pelo esvaziamento das paróquias e a diminuição gradativa da confissão da fé cristã católica, está clara no discurso disciplinador do Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Sales, um dos mais ilustres representantes do clero :”…os assuntos abordados foram os desvios graves da piedade popular, desde as práticas da macumba, candomblé, umbanda até o espiritismo e outros do tipo pentecostal. Está incluído também o recurso à superstição e à exposição incompleta da Doutrina genuína.”
Do outro lado, as novas igrejas divulgam mensagens sedutoras de curas e adivinhações, sob os cânticos de louvor, entoados por milhares de fiéis. Com essa estratégia, ocupam os espaços sócio‑políticos nascidos do desencanto, da insatisfação e da miséria.