Dr. HC. João Bosco Botelho
No medievo europeu, quanto maior a miséria coletiva, maior o chamamento à caridade. Portugal, particularmente castigado pela peste negra, mais de vinte surtos registrados entre 1188 e 1496, junto às guerras intestinas da nação portuguesa, o quadro desolador se mostrou tão desesperador que o enterro dos mortos se tornou impossível; os cadáveres acumulavam-se por toda parte, dando um aspecto da chegada do fim dos tempos e o cumprimento das previsões apocalípticas.
Esse contexto de necessidades coletivas influenciou o crescimento das corporações-confrarias-irmandades ao longo das margens do rio Tejo, no trajeto que ligava Portugal à cidade espanhola de Compostela, onde ficava a igreja de São Jaime, o mais importante santuário cristão depois de Jerusalém, existiam centenas de pequenos albergues utilizados pelos peregrinos, que se dirigiam em romaria para pagar promessas e implorar saúde.
A lepra, um dos flagelos que assolava o homem medieval, não distinguia ricos e pobres, poderosos e despossuídos. A desfiguração da doença repugnava todos os próximos, em especial os familiares, não só pelo aspecto grotesco da deformidade, também pelo medo de contrair a enfermidade. Os leprosos, desamparados pelos familiares, tornavam-se itinerantes e rumavam munidos de catracas, anunciando a passagem, à procura da ajuda divina nos muitos santuários milagreiros anunciados pela Igreja. A maior parte deles morria da fome ou das complicações da doença, enquanto outros ficavam pelo caminho nas albergarias que os acolhiam. Esses edificações, na maior parte miseráveis, por receberam leprosos, com o passar dos anos, ficaram conhecidos como leprosários.
Nenhuma doença poderia simbolizar melhor a atenção que Jesus dedicou aos doentes quanto a lepra. Os leprosos foram escolhidos no Terceiro Concílio de Latrão (1179), sob o pontificado de Alexandre III (1159 -1181), para receberem tratamento especial dos cristãos ao mesmo tempo, foi reprovado o isolamento a que eles estavam submetidos pela sociedade. A Ordem de São Lázaro, criada para dar cumprimento às ordens conciliares, tinham o grão-mestre leproso.
Não se deve estranhar que o pano de fundo das corporações-confrarias-irmandades tenha sido também a obtenção de vantagens pessoais, financeiras e políticas para os envolvidos. Essa afirmação ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao seu irmão D. Duarte, sugerindo a intervenção real na administração das hospedarias, como alternativa para reabilitar a debilitada economia do reino, cujas reservas foram gastas nas guerras e o pouco arrecadado era consumido pelos fidalgos.
Sob esse enfoque, é fácil compreender o interesse por essas instituições, claramente demonstrado tanto pelos religiosos quanto pelos laicos. As ordens religiosas devem ter sido mais ágeis para dirigir o produto monetário da caridade aos cofres eclesiásticos, a ponto de a situação ter ficado insustentável, causando prejuízo à arrecadação do reino. A reação foi imediata. Por ordem de D. Duarte e publicada nas Ordenações Alfonsinas, de 1446, foi decretada a interdição real nas albergarias, determinando que todos os legados que fossem doados às irmandades deveriam passar pelas cortes civis e não mais pelos tribunais religiosos. Essa providência interrompeu, em Portugal, um aspecto rendoso da caridade cristã, porque proporcionava o recebimento de vultosas quantias em doações e heranças dos ricos súditos bem-intencionados, deveriam ser utilizados na atenção aos leprosos, mas a maior parte do dinheiro engordava a riqueza de clérigos e fidalgos.
A dissolução compulsória das albergarias-hospitais do reino foi seguida de medidas tomadas por D. João II, para viabilizar o hospital único sob o controle da administração real. Essa mudança só seria reconhecida, em 1479, por meio da Bula de Xisto IV (1471-1484), autorizando o rei tomar essa providência nas principais cidades.
Nesse conjunto muito complexo de fricções sócio-políticas, se destacou a obra de Guilherme de Ockham (Opus nanaginta dierum), de 1332, associando o Direito ao poder, em torno de duas realidades confluentes: a primeira, inteligível e inserida na realidade observável, sem natureza jurídica; a segunda, de natureza jurídica atada ao poder. Essa importante construção teórica associando Direito e poder serviria, nos anos vindouros, à retomada das ideias greco-romanas no Renascimento que se avizinhava.