Dr. HC. João Bosco Botelho
Os indicativos apontam, com clareza, que a ciência caminha na direção da melhor compreensão do átomo e a Medicina, inexoravelmente, seguirá na mesma trilha e aplicará as novas teorias na busca da arqueologia da doença, trazendo à discussão os processos teóricos do caos ‑ instabilidade que persiste.
Apesar do grande avanço tecnológico que o homem alcançou com a mecanização‑automação do cotidiano interferindo cada vez mais profundamente no domínio da natureza, persistem muitas questões fundamentais para que se possa compreender melhor a coisa em si (referida ao conceito kantiano). Contudo, deve ficar clara que esta abordagem teórica está voltada à certeza da resolutividade do processo histórico do conhecimento como ponte para transformar a coisa em si para coisa para nós.
O caos está presente em toda natureza. Ele pode se manifestar quando um objeto é submetido ao efeito de mais de uma força gerando situações impossíveis, com os atuais conhecimentos, de previsibilidade. Os exemplos mais banais vão desde a tentativa de prever o próximo movimento de uma folha que corre livre ao sabor da corrente das águas de um rio, uma bactéria que sobrevive na corrente sanguínea até às previsões climáticas (o movimento do ar). Nestes exemplos ainda não é possível saber o que poderá acontecer à folha, à bactéria e se terá ou não tempestade em Malta num determinado dia mesmo utilizando os mais sofisticados e complexos sistemas de cálculos.
A maior dificuldade reside em separar a supremacia do caos à aparente estabilidade e ritmicidade do cosmo. Aqui tudo se apresenta dentro de um ritmo uniforme e eterno: a noite, o dia, as estações do ano, as estrelas e o movimento dos planetas. Sob a guarda dessa ritmicidade aparente que o homem começou a transformar a natureza e se fez Homem acumulando o conhecimento. Do mesmo modo foi construída uma compreensão estática da saúde e da doença, onde parecia existir um divisor de águas entre o homem doente e o sadio, sendo aquele representado pela negação e este pela afirmação da vida.
Foi sem dúvida o matemático francês Henri Poincaré (1854‑1912) quem demonstrou a instabilidade mesmo em sistemas simples. Este pensador acabou ficando conhecido também pela sua colocação acerca da comodidade da ciência, onde as teorias científicas traduziriam unicamente a arbitrariedade da razão com o objetivo de tornar inteligível um conjunto de fatos observados. A atual compreensão de instabilidade regendo o conjunto que mantém a vida no planeta é absolutamente fantástica e preocupante ao mesmo tempo. É fantástica porque nos fez mergulhar na incerteza angustiante e preocupante porque colocou por terra as certezas acabadas. O estudo do caos está abrindo a matemática aos sentidos do homem onde a sua capacidade de abstrair formas espaciais foi incorporada à uma geometria muito diferente da euclidiana. Mesmo com a indiscutível indeterminação de Heisemberg somos hoje capazes de imaginar como é a projeção espacial de uma molécula de ADN e o feed‑back (retroalimentação) dos hormônios hipotalâmico‑hipofisário no controle das glândulas endócrinas (tireóide, ovário, testículo, suprarenal), para o equilíbrio de muitas funções vitais do homem.
O avanço foi concomitante em várias direções. Um novo entendimento de espaço surgiu e envolveu o caos trazendo subsídios ainda maiores e mais concretos para romper o equilíbrio tridimensional.
Parece ser adequado continuar discutindo que a doença, enquanto abstração nominada pelo homem, será compreendida como fenômeno dinâmico e mutante no tempo capaz de ser estudada fora do espaço euclidiano. Haverá tempo em que a biologia perguntará: em qual espaço você deseja estudar o hipertireoidismo? É claro que este espaço não se refere ao tamanho da sala, mas a descrição da estrutura geral do objeto a ser investigado.
O simples raciocínio da hierarquização orgânica (só estamos tratando dos seres vivos) pode reforçar essa suposição. Do organismo vivo até as partículas subatômicas conhecidas, o caos pode passar sucessivamente pelos sistemas orgânicos (respiratório, digestivo, urinário etc.), órgãos, tecidos, células, organelas (ribossomos, mitocôndrios etc.), moléculas, átomos e partículas subatômicas. O mais fascinante é o fato não se esgotar aqui. Existem sistemas matemáticos que apesar de serem determinados não são como seria de esperar previsíveis. Não existe nenhum fator desconhecido que possa justificar a falha da previsibilidade. Esta ocorre pela incapacidade do homem para representar a infinitude.
Sendo partes do mesmo todo é possível que a teoria do caos contribuirá também para a melhor compreensão dos sistemas vivos sob o prisma da termodinâmica. Hoje continua sendo muito difícil entender o homem, como exemplo de sistema aberto, consegue manter a vida com rigorosa ordem interna e baixa entropia.
Enquanto as correntes ideológicas se digladiam na busca das suas certezas acabadas utilizando a saúde e a doença como armas para conquistar o poder, a coisa em si passa gradual e inexoravelmente à coisa para nós.