Dr. HC. João Bosco Botelho
Ao aceitarmos a pós‑modernidade, como sugere Jean‑François Lyotard, moldada pelo desencanto dos metarrelatos universalizantes, será inevitável o repensar do enquadramento metafísico de muitas palavras‑sentimentos, como “razão”, “sujeito”, “totalidade”, “verdade” e “progresso”.
Se abordarmos a pós‑modernidade da medicina sob o enfoque técnico‑científico, veremos com transparência que o pilar sustentador está fincado na aquisição do saber ‑ a engenharia genética – vendido, ao peso de muito ouro, ou negado pelos países desenvolvidos aos subdesenvolvidos de acordo com as conveniências político‑econômicas.
A condição pós‑moderna, resultante dessas pesquisas de ponta, obrigou a completa reformulação dos antigos conceitos em relação à saúde e a doença, aceitos desde o aparecimento, no século 17, da micrologia.
Quando o mundo microscópico começou a ser revelado pelas lentes de aumento e foram identificadas as primeiras bactérias patogênicas, pensou‑se que tudo estava resolvido no trato das doenças. Para isto bastaria classificar o micro-organismo e descobrir o remédio. Nos anos seguintes, ficou evidenciado que o corpo humano tinha muitos componentes, ainda desconhecidos, também interferindo diretamente no processo. Com a ajuda do fantástico aparato médico‑industrial da modernidade, as máquinas passaram a mapear cada centímetro dos tecidos na busca das modificações ocorridas no período de tempo entre a entrada da bactéria e a instalação da doença. Tudo isso resultou na aquisição de um novo saber ‑ os mecanismos imunológicos de defesa. Foram três décadas de pesquisas para revelar o quanto é importante o papel dos linfócitos (células responsáveis por grande parte da defesa do organismo) na imunologia humana.
Entretanto, a grande conquista tinha sido realizada apenas parcialmente. A função imunológica de proteção à vida obedecia às ordens vindas do núcleo da célula, onde está o genoma (conjunto de genes). Os genes são formados por uma malha complexa de informações codificadas responsáveis por todas as características internas e externas dos seres vivos. No homem e na mulher, eles respondem desde a cor dos cabelos à pele dos pés.
A partir dessa certeza, a medicina afastou-se dos princípios passivos da classificação morfológica das doenças e passou a utilizar a engenharia genética na busca de soluções para as mortes causadas pelo câncer e envelhecimento.
Por outro lado, a medicina no subdesenvolvimento, ainda continua empenhada, com muita dificuldade, no estudo da morfologia celular, sempre alterada pela desnutrição crônica e pelas doenças infectocontagiosas dizimadoras de milhares de crianças por ano.
Podemos afirmar, sem receio de estar cometendo um exagero, que a medicina no terceiro mundista continua aperfeiçoando o diagnóstico da morfologia dos tecidos, ainda ligado à microscopia celular e bacteriana, oriunda do século 17. A maior parte das suas instituições de saúde estão voltadas somente para o tratamento dos tumores e das infecções hospitalares já instalados, sem dinheiro e tecnologia para pesquisar a causa dessas doenças.
A tendência geneticista é a nova abertura aos conhecimentos da medicina desde a micrologia seiscentista de Marcelo Malpighi (1628‑1694). Todas as certezas trazidas pelo conhecimento exclusivo da morfologia estão sendo repensadas. Não avançar nesse rumo significa permanecer no conhecimento contido no espaço hermético da doença já instalada, onde o olho clínico e o diagnóstico microscópico (a biópsia) são as diretrizes maiores.
A medicina é na atualidade um grande trem caminhando velozmente em direção dos laboratórios de estudo do genoma humano, com a saúde sendo conduzida para a intimidade da estrutura molecular dos genes.
Esta posição, nascida com a pós‑modernidade, está rompendo muitas fronteiras do homem com a linearidade do tempo organizado, onde é impossível saber com precisão a diferença entre doença e saúde. O despertar dessa consciência que floresce na descrença das certezas acabadas está muito longe da simplicidade da morfologia celular e acaba compondo, inevitavelmente, uma nova leitura da vida.
As notícias sobre a engenharia genética são cada vez mais frequentes e completas, fazendo com que esse tema entre nas casas como o anúncio de qualquer outro produto de consumo. A televisão mostra, com grande destaque, a cura de certa doença antes não imaginadas, tudo graças às pesquisas reveladoras dos segredos dos genes.
Uma dessas notícias que dominou a mídia internacional, está relacionada à atividade do gene S1c6a15, na área cerebral ligada à depressão. Os pesquisadores do departamento de anatomia e neurobiologia, da Escola de Medicina da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. A ação desse gene nos neurônios de animais de experimentação, interfere na manutenção da vontade, para superar adversidades sociais que provocam grande estresse.
No futuro, substituindo verdades acabadas, até muito pouco tempo, as resultantes dessa pesquisa substituirão alguns tratamentos das depressões e abrirão caminhos para diminuir o incrível número de suicídios anuais, no mundo, que ultrapassa 800 mil.