Dr. HC. João Bosco Botelho
Apesar de a medicina-oficial, a produzida nas universidades, ter feito progresso no trato da saúde coletiva, retirando-a do espaço fechado da classificação morfológica, é saudável insistir que prevalecem nas academias as correntes que colocam a doença como um produto exclusivo da organização social.
Nesse sentido, a principal proposta teórica, na modernidade, que associou a doença à desordem social (por corruptela ao capitalismo) e a saúde à ordem social (por corruptela ao socialismo), se fortaleceu a partir das condições de trabalho e da saúde dos operários ingleses, descritas por Engels.
É interessante assinalar que a associação entre a doença e a desorganização das sociedades e o papel político do médico para intervir e mudar, é mais antiga. Na Grécia, nos tempos de Sólon, já estava estabelecida, expressa no livro de Werner Jaeger (Paidéia: a formação do homem grego): “A função da justiça na sociedade corresponde para o corpo à da medicina, que Platão ironicamente denomina pedagogia das doenças. Todavia, o momento da doença é muito tardio como ponto de partida para uma verdadeira influência educacional. Sendo o médico o conhecedor da doença, ele pode intervir politicamente para evitá-la”.
Essa leitura mecanicista dos corpos, também anterior aos confrontos políticos do século passado, serviu para fundamentar uma das mais conhecidas tentativas para explicar a diferença entre o homem, possuidor de alma, e os outros animais, feita pelo médico espanhol Gomes Pereira, em 1554, ao afirmar que os animais são máquinas, incapazes de falar e raciocinar.
O peso decisivo para alavancar essas ideias recebeu forte impulso no filósofo francês René Descartes (1596-1650), ao robustecer o pensamento mecanicista, defendendo o corpo como o domínio da física e a alma, da religião.
As propostas oitocentistas incentivadas pela fisiologia experimental de Claude Bernard aprumaram a ciência na tarefa de explicar como funcionava o corpo, quase sempre o associando aos avanços da técnica. O pleno exagero do mecanismo coube às palavras do pensador La Mettrie, em 1748, que conduziu a mecanização dos corpos ao limite máximo: “Em todo o universo não há senão uma única substância diversamente modificada, portanto o homem é uma máquina”.
As sementes dessa estranha concepção linear da dor e do prazer, se reconstruíram no século 20, trazendo a máquina como o modelo ideal para ser comparado ao corpo humano. Nesse caso, os corpos, como num passe de mágica, passaram a ser comparados às máquinas, e as doenças, aos desajustes na engrenagem.
A industrialização impondo as linhas de montagem e a necessidade rápida de mão de obra, os corpos tornaram-se complementos das máquinas. O mecanicismo trouxe um impressionante conjunto metafórico às linguagens-culturas: o coração passou a ser a bomba; o pulmão, o fole; o rim, o filtro e, finalmente, o cérebro, o computador.
Os reflexos dessas mudanças na formação do médico não tardariam. Em 1910, o relatório Flexner, que analisou a competência de 150 faculdades de medicina existentes naquela época, nos Estados Unidos, seguido, dois anos depois, do segundo relatório, descrevendo os cursos médicos da França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, selaram o destino da nova metodologia do ensino da Medicina: o maior produtor de saúde estava fincado nas relações científicas vindas dos laboratórios de pesquisa.
Como consequência, o conjunto formador competente do médico só poderia existir na certeza de que o uso de aparelhos, para intermediar as práticas médicas responsável para a melhoria das condições de saúde das populações.
A estrutura teórica que ajuizou a indissociável ligação da medicina à tecnologia também se apoiou em Talcott Parsons, em 1951, ao entender que a saúde só poderia ser alcançada sob a estreita supervisão do médico. Essa abordagem, marcada pelo etnocentrismo americano, da década de cinquenta, legitimou os relatórios Flexner: “O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica competente (fundamentalmente um médico) e cooperar no processo de recuperação”.
É evidente que o estudo de Parsons só poderia ser aplicado nos poucos segmentos sociais, nos países industrializados, com grandes recursos disponíveis para pagar os serviços de saúde. A imensa maioria das pessoas, nos quatro cantos do mundo, continuam sendo tratadas pelos curadores populares de todos os matizes.