Serpente e a compulsão da vida eterna

Dr. HC. João Bosco Botelho

A esperança de viver para sempre não pode ser exclusivamente uma complexa construção social: está presente nos quatro cantos do planeta compondo todas as crenças e ideias religiosas. O centro comum dessa oratória – vencer a morte – parece estar entre os mais significativos desejos pessoais e coletivos, caminhando para pressupor como verdade absoluta dos humanos.

Como as relações com os curadores de todos os matizes repetem o cerne protetor, não existem diferenças na essência dogmática salvífica. As eventuais mudanças, adaptadas à temporalidade social, são feitas na linguagem superficial, na forma e não no conteúdo, com o objetivo de adaptá-las às exigências dos que sofrem com a expectativa do fim próximo da vida.

Nesse gradual mecanismo de substituição das antigas linguagens superficiais pelas novas, o maior de todos os curadores do Ocidente, Jesus Cristo, absorveu, nos primeiros tempos, certa identificação com Asclépio, filho de Apolo, representado pela serpente enrolado num bastão, o mais respeitado deus curador greco-romano, festejado em festas populares, no dia 18 de outubro, como o deus da Medicina. Este último, por sua vez, manteve pontos comuns com os outros deuses curadores do panteão egípcio e babilônico.

Os doentes que recuperavam a saúde nos templos de Asclépio, tornavam público os agradecimentos em esculturas – as estelas – especificando o nome do doente e a cura milagrosa obtida. Existem duas particularmente bem documentados: o caso da cegueira de um certo Phalysios e o das varizes de outro paciente anônimo. Ambos ofereceram peças de mármore esculpidas, onde gravaram as agruras.

Muitos afrescos, retratando Asclépio, contêm a serpente enrolada no bastão. A associação da serpente com a medicina já estava presente na sociedade babilônica, alguns séculos antes da polis grega. O deus da cura, Ningishzida, da região de Lagash, era representado por duas cobras enroladas numa vara.

A imagem de Asclépio, ligada ao réptil, dava força aos desprotegidos. Curadores e enfermos veneravam-no, nas cidades greco-romana. Milhares de peregrinos doentes e deserdados marchavam em procissões, para suplicar nos altares desse deus curador, as graças da saúde e da fartura.

É possível estabelecer duas imagens simbólicas, ligando a serpente ao ensejo de recusar a morte. A primeira, ao fato de ela poder viver acima e abaixo da terra, mediando dois mundos diferentes, em estreito vínculo com a localização subterrânea do mundo invisível. A outra, mais importante, está fincada na crença do renascer, por meio da renovação periódica da pele.

A serpente como elemento protetor da vida também está presente no Rig Veda (I 79,1), onde os Adityas são descritos como descendentes da serpente porque, ao perderem a epiderme velha, eles venceram a morte e adquiriram a imortalidade e na epopeia de Gilgamesh, onde esse herói mítico, depois de inúmeras peripécias, vê a planta da vida eterna ser comida por uma cobra e, impotente, admira o renascimento do bicho.

Esse elo dos humanos com a serpente gerando a possibilidade de adiar a morte é uma das heranças simbólicas arcaicas mais interessantes, que foram compreendidas, durante dez séculos, com força para curar as doenças e empurrar os limites da vida.

Não pode ser exclusivamente social essa identificação do poder do curador, representado pela serpente, é o símbolo vivo da luta, para modificar o determinismo irremovível da morte.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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