Relações míticas do curador

Dr. HC. João Bosco Botelho

A elaboração do universo primordial do curador foi processada na humanização, no primeiro momento, no âmago da mistura ambígua da ficção com o conhecimento empírico da natureza circundante, para obter o alimento e o abrigo, e, assim, fugir da dor e vencer a morte.

A primitiva intimidade dos antepassados distantes com o bicho, transcrita nas pinturas rupestres, gerou a figura mítica do senhor do animal, mais forte e protetor. Foi mesclada com outros símbolos, nascidos pela posse da terra cultivada, depois do sedentarismo, gerando o mito da mãe-terra. A linguagem profunda uniu sólida e indissoluvelmente o animal e o vegetal nas mentalidades.

A passagem do eixo aglutinador em torno da fêmea, fisicamente mais frágil, para o macho, mais forte e caçador, está inserida na exigência do sedentarismo para ocupar o território ocupado, proteger a cria e garantir o alimento.

A partir dessa fase, o sustento foi facilitado pelo produto da terra trabalhada. O pênis ereto, associado ao arado, penetrava na vagina e germinava como a terra cultivada. A substituição alegórica foi fundamental para os deuses masculinos tornarem-se verdadeiros e assumirem o lugar da mãe-terra.

Simbolicamente, a ordem social voltada para o controle do sexo, gerando dor, também alcançou o acesso ao alimento: jejum e castidade têm sido o chicote do poder para modelar o comportamento e interferir no exercício da livre consciência. A fantástica força de persuasão, unindo o desconforto da fome e a abstinência forçada ao prazer do gozo, passou a ser o mais importante instrumento para convencer os resistentes.

A exclusiva força de convencimento das armas tem se mostrado incapaz de substituir o sagrado curador dos povos conquistados. Os romanos repetiram a experiência: ao ocuparem as terras gregas, perceberam a força de Asclépio, o mais importante deus curador, adotaram-no com as mesmas qualidades, mudando o nome para Esculápio.

É possível que novas identificações tenham ocorridas. As escavações arqueológicas, realizadas em Jerasch, na Palestina, recuperaram uma cabeça em mármore, com o nome Asclépio riscado e o nome Cristo gravado abaixo. A associação estética ligando Asclépio, Esculápio e Cristo, executada pelo artista anônimo, é de extrema importância. Compõe a realidade vivida e realça a sabida metamorfose dos deuses curadores, mantendo o significado profundo das linguagens: vencer a morte inevitável.

A histórica sedução exercida pelo dom curador dos profetas taumaturgos, hábeis na articulação da dualidade mágica e empírica, tem sido constante nas relações sociais. Esses homens e mulheres, aceitos com dotes sobre-humanos, são mais capazes do que os outros para curar e aliviar o sofrimento.

O líder (guru, messias, profeta, carismático e político) mensageiro do novo tempo, tem de possuir o dom. É a pessoa que precocemente percebe a direção do movimento social de fuga da dor e da morte, durante os processos transformadores da sociedade. Ele não determina o início da mudança. Destaca-se pela sensibilidade para detectar o desejo coletivo. Aglutina os anseios, mediante a linguagem superficial, sempre atenta para mover-se contra a dor e procurarem o conforto.

Esse tipo de liderança perdeu espaço frente à melhor estrutura do aparelho legalista do Estado moderno. Mesmo assim, ainda é capaz de, em certas circunstâncias, mobilizar, rapidamente, milhões de fiéis para enfrentar a oposição.

É absurdo reduzir a questão social dos curadores doenças e dos infortúnios pessoais e coletivos, dizendo serem todos embusteiros e aproveitadores. Se fossem meia dúzia, seria razoável pensar neles como mentirosos. Ao contrário, são dezenas de milhares, muito bem ligados, desde os primeiros registros.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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