Dr. HC. João Bosco Botelho
A genial música “Comida”, de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito, representa muito bem o processo para repensar o poder do médico: “Bebida é água. Comida é pasto. Você tem sede de água? Você tem fome de quê? A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte…”.
A formação técnica, no mundo pós-industrial, instrui e modulou a dor sob o ponto de vista de uma ciência atrelada à ordem social vigente. O prazer inacessível a maior parte da população raramente é mencionado. Tudo transcorre como se o saber acadêmico fosse a única verdade.
A erudição para ter a saúde e viver mais, o cerne do conjunto, está amparada pelos poderes dominantes. É oriunda, no Ocidente, a partir do século 12, nas universidades, sendo o médico, representante dessa elite intelectual, como o único agente capaz de controlar a dor e adiar os limites da morte.
O conhecimento historicamente acumulado, voltado para adiar a morte, tão antigo quanto a espécie humana, representado pelos curadores de todos os matizes, brotou das primitivas trocas não só do homem e da mulher entre si, mas também com outros animais e a terra. O curandeiro, o pajé, o pai-de-santo, o político, os líderes e os religiosos são os atuais representantes.
Mesmo com a aparente hostilidade, fomentada pelo conflito de interesses dos agentes, todos estão ligados e dependentes e contribuem para manter os homens e a mulheres em postura partilhada, em grupos, fugindo da dor, do desconforto, evitando o falecer do corpo e garantindo o alimento, por meio da posse e defesa do território.
Um dos pontos mais contundentes da cooperação, entrelaçado no cotidiano, perdido no tempo, é a constante vontade para entender, nominar e vencer os distúrbios pessoais e coletivos, limitadores da vida. A ânsia de viver, mais e mais, inclusive no imaginado renascimento após a morte, compôs um conjunto importante da estrutura do poder sustentador das civilizações.
Nessa condição, as linguagens profunda e superficial, que tratam do prazer e da dor, concebidos nos espaços sagrado e profano das relações sociais, mantêm assombrosa coerência, apesar das diferentes roupagens metamorfoseadas.
O apego ortodoxo da verdade exclusiva só pode ser admitido nos lábios apaixonados. Fora da paixão, nada pode ser comparado com esse engano da realidade. O cotidiano, ao contrário, coloca a ciência e as ideias e crenças religiosas como dois paradigmas esticados numa rede de compromissos. Entre a mais perfeita teoria e o evento banal, existe uma distância incomensurável, cheia de vazios e dúvidas.
A fraqueza do crível, advinda das contradições, impostas pelo confronto das ideias, no rebuliço da convivência, gera a ruptura capaz de induzir mudanças na atitude coletiva. Novos compromissos refazem a trama e outros ciclos são iniciados, impondo outras conformidades com o real, mas sempre intermediado pelo poder dominador.
Parte desse processo é sentido de forma contundente nas compreensões da saúde e da doença. Os sentimentos ocorridos pelas mudanças, no corpo enfermo, mostram-se diversos nas culturas-linguagens, nos tempos e espaços. Muito mais do que isso, um quarto abrigando pacientes com doenças iguais, do mesmo sexo e idades, espelha emoções variáveis quanto à perspectiva da vida e da morte. O tratamento é decidido somente pelo médico, detentor absoluto do poder sobre os corpos dos outros. A maioria morre sem saber por que ou recebe a alta hospitalar, ignorando a mutilação perpetrada no interior, escondido atrás da pele, pela retirada cirúrgica do estômago, do baço ou outro órgão.
O sustentáculo desse processo teórico, para as pessoas aceitarem o poder médico, talvez esteja inserido na transferência simbólica, no Ocidente cristão, para o curador universitário, do controle absoluto de Deus sobre os corpos: “Ecles. 38, 1-2: Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços, porque o Senhor o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes”.
Nos países com melhor organização social, onde o Estado está laicizado, existe a clara tendência de limitar o poder do médico e torná-lo parte das ações voltadas à recuperação holística do doente, nas quais estão presentes a enfermagem, assistente social, cirurgiões-dentistas, fisioterapeutas, psicólogos e agentes de crenças e ideias religiosas: curar a doença e reinseri-lo à sociedade, para continuar desejando comida, diversão e arte.