A VIDA SOCIAL ENTRE A DOR E O PRAZER

Dr. HC. João Bosco Botelho

            Os que sofrem o martírio da dor podem estar fragilizados, mas não ignoram a crítica ao sofrimento, que compõem as peças que deslocam o conflito entre o sagrado e o profano, para transpor os obstáculos ao prazer.

            A arcaica submissão aos desígnios do transcendente sofre contínuas mudanças metafóricas e está sendo encaminhada para modelos de adoração adaptados à modernidade. Os partidos políticos, sindicatos e grupos organizados forçam a retomada da posse do corpo dessagrado.

            A luta, para manter a expressão da livre consciência, é longa e árdua. O corpo dócil, sob a pressão da violenta ordem social, tende a apagar a chama do singular, tornando parte do coletivo ordenado impensante, como no genial filme “Tempos modernos”, de Chaplin.

            O estudo das mentalidades, em diferentes períodos, mostra um impressionante repetir coletivo atrás dos anseios fundamentais, ditados por lembranças arcaicas, denominadas, neste ensaio, memória sócio-genética (MSG), mais forte do que todos os poderes constituídos.

            A MSG entrelaça, em sintonia fina, o pensamento e o conhecimento. Explode de coerência e ternura compulsiva, quando a boca do mamífero acopla, suave, no mamilo túrgido de leite e acalenta, por instantes, o estertoroso despertar da vida.

            É transparente nos humanos o contínuo frenesi para sentir, intensamente, o conforto físico e emocional (aqui compreendido como a liberdade de ir e vir, de falar, de explorar e, sobretudo, a sede e a fome saciadas, o abrigo do calor e do frio), irresoluto para a maior parte da humanidade. Todos fogem da dor e procuram o prazer. Conforto e desconforto são as chaves mestras acionadoras da MSG. As relações interpessoais, com ou sem ajuda da técnica, resultando prazerosas, são acatadas pela maioria. Sempre que a ordem insiste em limitá-las, ocorre a resistência com o objetivo de transpor os obstáculos. A rebeldia contra as fronteiras artificiais, o clamor étnico, o sexo limitado, a incrível sedução pelas drogas proibidas e pelo cigarro, as revoluções milenaristas e a atual ordem internacional voltada para o verde estão contidas na mesma geometria.

            A constância transmitida aos descendentes dos pontos comuns das MSGs, especialmente a fuga da dor e a busca do prazer, por meio da epigenética, estrutura e mantém a memória sócio-genética coletiva (MSGC). Nesse contexto, as mensagens explícitas ou metafórica estruturadas na ambiguidade sagrado-profana, trazendo a esperança (não é necessária a certeza, basta o leve indicativo da possibilidade) de amenizar a dor e o sofrimento, são aceitas e festejadas.

            Os acontecimentos, no Leste europeu, entre 1989 e 1992, são adequados para avaliar quanto o poder político ordenador tenta, sem sucesso, torcer a MSGC, por meio da informação consentida. Nenhuma força militar consegue conter, durante muito tempo, o manifesto coletivo em busca da liberdade como pressuposto da fuga da dor.

            Os muito exemplos, retirados dos confrontos sociais, em contraponto, favorecem teorizar a outra força, também em sintonia com a MSGC, mantida pela transmissão epigenética, criando alternativas para influenciar e manter, pela coação, a conduta coletiva sem resistência, uniforme. Como consequência, a diversidade, o diferente, é a primeira grande vítima. Os discordantes são perseguidos pela implacável caça ao dissidente. Considerados loucos, os corpos perdem o valor de identidade e a prisão compulsória retira-os da convivência pluralista.

            Nada mais esclarecedor do que o politicamente correto, ordenando o caminhar da maioria, modificando a linguagem superficial e as atitudes, convencido da verdade na nova postura. A partir de determinado ponto, os seduzidos tornam-se coesos. A frouxa adesão, algumas vezes oportunista, de uma parte, dá-se também pelo medo das sequelas da discórdia.

            A capacidade de convencer, fazendo grupo da ideia institucionalizada, assenta-se sobretudo na história das representações, ideologias e mentalidades, constituídas a partir do saber acumulado e sobre ele. Por essa razão, continua muito significativa a atração exercida pelos políticos, líderes, cientistas, médicos e religiosos, prometendo maior conforto e pelos professores, convencidos e convencendo da certeza, na sala de aula.

            Durante o período em que frequentamos como estudante, o hospital universitário, os diálogos entre os alunos impecavelmente vestidos de branco e os enfermos eram transformados em rígidos monólogos técnico-burocráticos. Os professores ansiosos para demonstrar competência orientavam o discurso na beira dos leitos. As anamneses eram concluídas na ilusória margem de excluir o paciente dos medos e desejos mais profundos. Triste simulacro!

            A ética industrial moldada para desenvolver o consumo a qualquer custo, baseada nos pressupostos do racional, considerada como garantia de progresso e questionada depois dos horrores de Auschwitz, Hiroshima e das intolerâncias políticas, não é mais capaz de negar o quanto o corpo sofre durante as emoções violentas. Somente para citar alguns exemplos, observados pelo senso comum, no curso de situações angustiantes, as viroses instalam-se com maior facilidade, aparece herpes no lábio, o coração bate em descompasso, o ritmo do sono e a libido manifestam-se alterados.

            São muitas as evidências tanto do senso comum quanto da ciência haver memórias sócio- genéticas conduzindo os humanos para fugir da dor e buscar o prazer.

 

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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