Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
O contexto da fragilidade humana partilhada, desde o passado ágrafo, contribuiu para consolidar a divinização dos objetos, acontecimentos e pessoas, para explicar a vida e a morte, utilizando a linguagem resultante do confronto entre o visível e o invisível.
É possível teorizar que o sagrado, ficção tornado real, para compensar a dor, o sofrimento, imponderável por si mesmo, encontrou unissonância no brado dos espoliados, em nome da divindade.
Não é intenção simplificar tema de tamanha complexidade. A partir de certa referência, impõe-se a crença numa memorização lenta e gradual, onde as necessidades básicas, para sobreviver, desempenharam papel preponderante.
A bioquímica da memória, um dos pontos mais angustiantes do saber acumulado, abriga a quase completa ignorância de como funciona o sistema nervoso humano. Todavia, o conhecimento está esculpido na perene solicitação coletiva e mostra a fascinante anatomia funcional no cérebro. A forma e a função despontam na exata medida.
As primeiras evidências das ideias estéticas e religiosas, diferenciando o cérebro da consciência, foram encontradas no Paleolítico Superior. Apesar da impossibilidade de rastrear os sistemas religiosos, antes de 10.000 anos, existem indícios de que o homem se comportava como o atual: dominava os mais fracos, modificava a natureza para obter o alimento, fugia da dor e da morte.
Inicialmente, foram conferidas às divindades os anseios da vida. Como a escolha não satisfez as exigências da crítica e confrontava com o observável, iniciou-se a longa caminhada de conflitos, para achar outras vertentes capazes de responder às indagações.
O exercício do poder dos representantes dos deuses, os sacerdotes e as sacerdotisas, misto de curadores e adivinhos, impondo o castigo doloroso aos resistentes, resultou numa dinâmica social, onde a coesão e a dissolução, em equilíbrio dinâmico, são dependentes, respectivamente, do predomínio do conforto e da dor, em certa parcela da comunidade.
Os contestadores das autoridades dominadoras, compreendidos como agentes da discórdia ou pecadores, eram punidos com o pior dos castigos: a exclusão pelo corpo deformado, mensageira do sofrimento e da morte. A doença deixou de ser uma entidade abstrata: nominada, obrigatoriamente evitada pela obediência obsequiosa.
Os significantes vitais das memórias sócio-genéticas (MSGs), ligados à sobrevivência comum, foram moldados durante centenas de gerações e transcritos na passagem da oralidade para a escrita, hoje, sob o crivo da epigenética. Os adivinhos, responsáveis pela previsão dos malefícios, ordenados como castigo pelos homens ou pelas divindades, assumiram um papel destacado na ordem grupal. Os livros revelados, referências maiores da ambiguidade sagrado-profana, são claros quanto ao destaque desfrutado por eles, no controle do espaço sagrado.
As tábuas de argila com escrita cuneiforme, feitas na Mesopotâmia, são contundentes. Os assírios e babilônicos entendiam o pecador como rebelde possesso dos deuses maus. Nos textos, as palavras sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos.
A cultura grega antiga, da época hipocrático-platônica, portou-se como o marco divisor da emergência de distinguir a opinião do conhecimento. Não bastava mais alguém achar, era imperativo acrescentar argumentos e provas demonstrativas da linha condutora do evento.
Com esse suporte teórico, os médicos gregos, particularmente os das Escolas Médicas de Cós e de Knido, começaram a decompor a doença e a retirá-la da primazia dominadora divina. No livro ‘A doença sagrada’, atribuído a Hipócrates, o primeiro sinal da resistência ao invisível divinizado, está assinalado: ‘Quanto à doença chamada sagrada, eis aqui o que ela é: não me parece nem mais divina, nem mais sagrada das outras; ela tem a mesma natureza do resto das doenças, e por origem as mesmas causas de cada uma delas’.
Os gregos hipocráticos foram buscar nos elementos de Empédocles – terra, água, ar e fogo – a justificativa das mudanças determinadas pela doença no corpo disforme. O filósofo de Agrigento, pretendendo o renovar da imagem do mundo, fundamentou a sua teoria em concepções mais antigas, que sustentavam, desde a oralidade, a importância do fogo, da terra, do ar e da água, na sobrevivência humana. A Teoria dos Quatro Humores, a primeira entendendo a doença fora do domínio dos deuses, defendida pela Escola de Cós, concebia o ser humano formado de quatro humores: sanguíneo, fleumático, bilioso amarelo e bilioso preto. A saúde seria o resultado da perfeita harmonia entre os humores e a doença apareceria quando um prevalecesse sobre os outros.
Nascia a resistência ao invisível divinizado conduzindo a saúde e a doença.