CRÍTICA ÀS VERDADES ACABADAS

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

          Os deuses pagãos e os dos cultos agrários, da Trácia e da Frígia, estavam entre os mais solicitados nos altares romanos. Também foram os primeiros atingidos pelo processo de mudança dos nomes das imagens, após a vitória política do cristianismo. Os deuses e deusas que contribuíram para explicar a vida e a morte, oriundas dos universos míticos babilônico, egípcio e grego, foram substantivados como demônios e aglutinados no novo espaço, o inferno, como ameaças à vida e ao prazer, adotadas pela escatologia cristã, destinado aos transgressores e punidos.

            A parte do povo, infelizmente a maioria, alheia aos determinantes profundos dos símbolos míticos que fortalecem a consciência social, tende a aceitar a verdade, sempre, do lado do vencedor.

            Para o simplório copiador das tabelas dos arquivos, admirador incondicional da história do ganhador, e para aqueles que manipulam as leis em benefício próprio, os homens e os deuses vencidos são mentirosos e condenados.

            Os livros escritos pelos médicos professos do cristianismo foram escolhidos pelos doutores da Igreja como a nova verdade oficial. Podiam ser lidos, nunca questionados. A saúde e a doença, a vida e a morte, componentes essenciais do controle social, passaram às mãos da transcendência cristã.

            O mais importante deles, Cláudio Galeno, o continuador das ideias da escola de Cós, pode ser considerado o mais importante entre todos. Durante a Idade Média até a primeira metade do século 19, quem ousasse duvidar das teorias de Galeno, mesmo comprovando o disparate entre a afirmação e o observável, era considerado louco e poderia se considerar banido do mundo científico. Os ensinamentos galênicos foram repassados, no mundo cristão, como dogma religioso.

            A repressão ideológica, patrocinada pela Igreja Católica, para manter e reproduzir os princípios do médico romano, criou espécie de insanidade coletiva semelhante a verificada com os escritos de Karl Marx, no Leste europeu, e entre muitos intelectuais latino-americanos, ao defendê-los como respostas acabadas.

            Desde Galeno, a mudança na abordagem da causa das doenças, ocorreu quinze séculos depois da proposta do médico romano. O estudo da micrologia de Marcelo Malpighi (1628-1694) iniciou o deslocar da doença das teorias dos humores hipocrático e dos temperamentos galênicos para a célula.

            As descobertas de Malpighi, publicadas em 1661, com o nome ‘De pulmonibus observationes anatomicae’, descreveram com detalhes as porosidades do pulmão da rã, vistas com o auxílio do microscópio rudimentar.

            Novas perspectivas foram abertas pelo descortinar da microestrutura celular e bacteriano. A maior parte do ensino e da prática médica modernos, principalmente nos países subdesenvolvidos, está estruturada no contexto da microscopia da célula e da bactéria capaz de desvendar se o doente é portador ou não de tumor benigno, tumor maligno (câncer) e de infecção.

            Com a certeza de não estar cometendo exagero, é viável afirmar que as enfermarias dos hospitais no Terceiro Mundo, exceto aquelas reservadas aos traumas, estão ocupadas por enfermos dependentes do diagnóstico celular ou bacteriano, ambos frutos da morfologia microscópica, nascida com os estudos Marcelo Malpighi no século 17.

            Pouco mais de duzentos anos se passaram, desde o início do estudo celular e bacteriano, para que o desvendar da doença alcançasse a estrutura das moléculas, o genoma, no núcleo da célula.

            Os estudos do frade Gregor Mendel (1822-1884), da Ordem de Santo Agostinho, demonstrando as variáveis resultantes do cruzamento de ervilhas de cores diferentes, sem saber que estava mudando a ciência mundial, foram aplicados na nova busca da origem das doenças nas moléculas do ADN.

            A crítica do conhecimento mostra a incompetência das três teorias – humoral (grego-romana), celular (século 19) e molecular (século 20), são inconsistentes para explicar as dúvidas que persistem nos significados da vida e da morte como fenômeno biológico.

            Entre as inúmeras interrogações assentadas na incompetência dos saberes: em qual dimensão da matéria viva o normal se transforma em doença, os cânceres, a prevenção do infarto do miocárdio, as doenças imuno-moduladas (lúpus, artrite reumatoide e muitas outras), a etiologia das psicoses e qual a razão pela qual o grupo de pessoas convivendo com um tuberculoso, somente algumas desenvolvem a doença e sempre de modos diferentes.

            Desse modo, na ciência, estamos longe das verdades acabadas!

 

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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