Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
O trauma foi a causa de morte mais frequente nos esqueletos neolíticos estudados, resultante de acidentes, lutas corpo-a-corpo de homens e mulheres entre si e com os outros animais.
Por outro lado, os mesmos registros pressupõem a existência de indivíduos especializados, no seio da comunidade ágrafa, para tratar e alimentar os incapacitantes, inclusive executar a abertura intencional da cabeça.
A arque-patologia relacionou muitos ossos, com mais de 10.000 anos, quebrados por traumatismos severos, tratados e curados. As fraturas não teriam sido saradas, com a completa consolidação, sem os cuidados imobilizadores e a garantia do alimento contínuo, executados por outras pessoas.
A cooperação foi instigadora da vida grupal! É uma das heranças comuns mais significativas das memórias sócio-genéticas (MSGs). A busca incessante da proteção pessoal encetou o agente da cura. Associou a força do saber empírico ao ato cooperativo, facilitando a oferta do alimento e a guarda do território contra as agressões internas e externas ao grupo.
A diversidade das trepanações – abertura intencional do crânio em pessoas viva -, há 10.000 anos, contribuiu para a suposição de terem sido utilizadas como intervenções propositais e com objetivos específicos. Assinala um tempo específico, no processo do desvendar do corpo. O curador deixou de ser mero espectador e intermediário da natureza, para tentar mudar, com o ato consciente, o curso da vida.
Se considerarmos o expressinho número de craniotomias em esqueletos pré-históricos, é necessário entender ser impossível que essa prática tenha sido executada que a maioria aceitasse o interior da cabeça como o local da busca. Aqui, não importa qual tenha sido o principal motivo de ter acontecido a concordância mútua para fazer e acatar a intervenção como necessária. O fato é que elas foram realizadas e é pouco provável terem sido efetuadas sob coação.
As trepanações ou craniotomias foram encontradas em grande número de crânios neolíticos, tiveram a força necessária para a reprodução, a partir do momento em que houve o desejo de mudar o curso da vida, depois de reconhecer a importância das funções vitais abrigadas pelos ossos da cabeça.
É possível compreender, nesse ponto, o nascer de uma consciência, diferenciando o cérebro da mente. Representou etapa significativa da corrente que entrelaçou nas MSGs a natureza e as relações sociais. Ao mesmo tempo, colocou o homem e a mulher numa condição singular e difícil: possuir a inteligência diferenciada da dos outros animais.
A consciência da vida diferente trouxe a inconformidade com a morte! O homem distante dos outros animais não poderia ter o mesmo destino das bestas. O falecimento, sempre temido, ficou ligado ao desastre causado pela dor. Por outro lado, o prazer, capaz de descontrair o músculo enrijecido, trazia sempre a lembrança do evento agradável. A estrutura do corpo foi adaptada para identificar nas MSGs as mensagens entre a polaridade do prazer e da dor, como o caminho mantenedor da ordem e da vida.
As mudanças operadas no corpo, causando a angústia da deformação dolorosa – os traumas – eram evitadas. A barriga eviscerada, no acidente de caça ou nas disputas pela liderança, ligava as consciências na dor e na morte. Faziam parte do mundo temido.
Igualmente, o castigo, sempre carregado de sofrimento, era imposto para gerar obediência. O medo, advindo da ameaça ou da dor, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos violentados, do permitido e do proibido.
O arcabouço da dor física, nas MSGs, transposto para a amargura coletiva, moldou a dor histórica. A coesão do grupo, quando atingido, é reforçada, ao identificar as causas e, assim, orientar o caminho, para eliminá-la da ordem social. É possível teorizar de ser a razão, desde os primeiros registros, de existir a procura de uma ética na prática curadora, ligada à sobrevivência comum, que apareceram no Código de Hammurabi, no século 18 a.C.
Posteriormente, melhor articulada, a ética do curador acompanhou os escritos dos médicos Alcméon, da Escola Médica de Knido, e os de Hipócrates, na de Cós, ambas na Grécia do século 4 a.C., que utilizaram, pela primeira vez, a origem das doenças como base de uma teoria empírica do conhecimento.
Com crítica áspera, Platão diferenciou a medicina de rico e pobre. Aristóteles entrelaçou a saúde e a doença no modelo de uma medicina atada aos os valores da época: os políticos curavam os males sociais e prediziam um futuro de bonança, ao modo dos curadores que tratavam as doenças.