Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
O COTIDIANO DAS MATERNIDADES EM MANAUS ‑ É do conhecimento público o grande número de grávidas que procuram as maternidades públicas em trabalho de aborto incompleto. A maioria é provocado pelo uso de substâncias químicas ou pelo manuseio da cavidade uterina com material contaminado.
Já chegam aos hospitais com hemorragia severa e infecção, algumas em sério risco de vida. Quando inquiridas, todas negam a intenção abortiva pelo medo das represálias legais.
A BUSCA DAS RESPOSTAS ‑ Para compreender um problema de tamanha gravidade é necessário refletir, sem prejulgamentos nem preconceitos.
A pergunta básica é a sequinte: o que se mostra tão sedutor a essas mulheres capaz de lhes dar força suficiente para tomar uma atitude capaz de levar à morte ?
A análise feita em países industrializados e ricos mostra claramente que os indicadores socio‑econômicos não podem ser os únicos responsáveis.
O aborto, como método anticoncepcional, sob a permissão jurídica do Estado ou realizado criminosamente, continua sendo uma questão complexa, oriunda de tempos imemoriais, com fontes acessíveis a partir do escravismo grego‑romano.
NO ESCRAVISMO POLITEíSTA ‑ Os métodos abortivos, usados como concraceptivos, foram usuais em toda a antiguidade. Essa herança chegou ao mundo grego‑romano. Os registros mostam que pouco importava à mulher daquela época o momento biológico mais propício para se desembaraçar de uma criança indesejada. O universo mítico do politeísmo, no Oriente e no Ocidente, não empunhava restrição.
Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica, controlada pelo poder dominante laico, o Código de Hammurabi, escrito no século XVII a. C. , e as leis de Eshnunna (1825‑1787 a. C. ) não fazem referência ao assunto.
Os mais respeitáveis autores da história da medicina egípcia afirmam que a parada provocada da gravidez não é citada em nenhum dos papiros até hoje estudados. Existem descritos, principalmente no papiro de Ebers, os métodos para o tratamento das hemorragias uterinas, sem especificar se é ou não consequência do aborto.
NA BíBLIA ‑ É difícil entender como tanto o Antigo Testamento (AT) como o Novo Testamento (NT), mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar hebraica, não citam uma só vez a prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer em muitas mulheres, não tivesse qualquer importância para a coesão do grupo.
A Bíblia judaico‑cristã não condena nem aprova a interrupção da gravidez. Na verdade, não existe nenhuma referência ao aborto.
NO JURAMENTO DE HIPÓCRATES ‑ A leitura desse conhecido juramento mostra, num primeiro momento, a clara tendência antiabortiva dos médicos gregos da ilha de Cós: “…Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provocar aborto”.
O padrão ético desse manuscrito surgiu para ordenar os conhecimentos médico‑sociais acumulados pelas escolas de Knido e Cós, na Grécia antiga, entre os séculos V e IV a. C.
Mesmo não existindo dúvida historiográfica acerca da autenticidade da mensagem hipocrática, é perfeitamente coerente o raciocínio de que pode não ter sido somente a conduta do médico o motivo principal.
Não é nenhum absurdo pensar que a auto‑proteção do grupo, oriundo das duas escolas, tivesse sido o imperativo maior para distinguí‑los dos curadores populares detendores de técnicas consideradas perigosas e nada recomendáveis para a parte dominante da sociedade grega.
A indução do aborto, milenarmente feita por esses curandeiros rejeitados pela mentalidade platônico‑hipocrática em ascenção no mundo grego, estaria entre os procedientos as que invariavelmente levavam a morte da paciente pela hemorragia e infecção.
Essa abordagem audaciosa é reforçada pela certeza de que havia uma certa indulgência, entre os autores reconhecidos da antiguidade clássica, para a pratica do aborto. Aristóteles (Política, VII, 4) aconselhava a interrupção da gravidez frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida.
NO CRISTIANISMO PRIMITIVO ‑ A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100 da nossa Era: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida”.
Existe a possibilidade de que pode ter sido escrito por religiosos egípcios monoteístas, com ideário semelhante aos dos cristãos, mas anteriores a eles.
Não é aceitável supor que as complexas recomendações contidas no Didaqué, divididas em preceitos ético‑morais e normas de celebração, não tenham sido elaboradas como proposta para modificar o cotidiano que incomodava uma parcela grande e organizada da população.
Essas regras influenciaram, de alguma forma, o filósofo cristão Tertuliano (190‑197). Nos seus escritos abandonou a antiga abertura aristotélica, aceita em muitas comuniades, e adotou a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.
A querela tertuliana não foi suficiente para resolver as diferenças entre os fetos animados e inanimados levantada pelo aristotelismo. Apesar do Concílio de Elvira (305) ter ameaçado de excomunhão todas as mulheres que abortassem após adultério, essa questão apaixonou muitos intelectuais do século IV.
Mesmo com o freio imposto pela moral cristã, a tradição da premissividade abortiva também dominou o cotidiano no século IV.
O PENSAMENTO DOS DOUTORES DA IGREJA ‑ São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algasia, argumentou que “os semens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de tríplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos. É claro que o suicídio foi incluído porque havia a morte, como na antiguidade, de muitas gestante.
De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) mantém a separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande problema da almanão pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva nun corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos. “
NO FEUDALISMO EUROPEU ‑ As elaborações dos teóricos não sairam dos muros das abadias. O reforço para melhorar o controle social, entre os séculos VI e VII, veio com o sincretismo entre o cristianismo, agora dominante no Oriente e no Ocidente, e as crenças mais antigas do politeísmo.
Surgiram as festas cristianizadas para saudar a vida concebida pela vontade de Deus. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século IV, iniciando os atributos de sacralidade à todas as concepções. Foi seguida da Natividade da imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, e da Anunciação, ou “festa da concepção de Cristo”, respectivamente nos nos séculos VI e VII.
Essas celebrações contribuíram para impor uma simbologia sagrada à gestação. Com isto, foi iniciado um complexo processo de auto‑punição para quem ousasse interromper o ato de Deus: a gravidez.
As dúvidas sobre a data correta para o início da animação do feto atravessaram os séculos e chegaram a Santo Tomás (1225‑1274). Ele sustentou claramente que a animação não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio.
A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.
NA IGREJA DO PERíODO PÓS‑INDUSTRIAL: O retorno da Igreja, verificado no século XIX, ao rigor do cristianismo primitivo do Didaqué tem dois componentes inseperáveis: um teológico e outro político.
O primeiro, promovido pelo papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado. O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão‑de‑obra, já que historicamente o aborto e suas consequências meléficas alcançam mais as mulheres oriundas das clases subalternas.
No famoso discurso papal, dirigido às obstretas, em 1951, foi enfático ao atribuir vida intrauterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do inocente: “…Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus… Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, eugenética e econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente… visando sua destruição”.
O documento conciliar GAUDIUM ET SPES, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis”.
Certas passagens do AT (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do NT (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18) valorizando a vida situando Deus como o único Senhor da vida e da morte, foram utilizados pelos teólogos para construir a doutrina oficial da igreja católica.
O ABORTO NO MUNDO E NO BRASIL ‑ Depois de quase dois mil anos de limitações impostas pela Igreja, a estimativa do número de abortos provocados por ano no mundo ultrapassou, em 1989, 40 milhões. Dez por cento desse total, 4 milhões, foram feitos no Brasil, causando a morte de trezentas mil mulheres.
Nas ruas dos grandes centros urbanos brasileiros já perambulam mais de 500 mil menores prostitutas (Folha de São Paulo, 25. 10. 90). Assim não podemos estranhar a denúncia do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (Jornal do Brasil, 08.03.91) de que mais da metade dos abordos registrados são praticados em condições precárias de higiene por meninas de 14 a 19 anos de idade.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou que o Brasil já tem maior número de abortos do que de nascimentos (Jornal do Brasil, 07. 03. 89).
Os estudos da OMS e de outras entidades de direitos humanos, mostram que a mortalidade e a morbidade são atenuadas com a melhor assistência do Estado.
Foi o que aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir de 1973, quando a Suprema Corte legalizou o aborto, com severas restrições à realização em hospitais públicos, em menores de idade e em gestantes com mais de dois meses de gravidez.
A TENDÊNCIA MUNDIAL PRÓ‑ABORTO ‑ A tendência pró‑aborto iniciada na Europa, nos anos setenta, é hoje mundial. Nos últimos trinta anos, pelo menos vinte países modificaram as leis, para permitir a interrupção voluntária da gravidez, em certas condições e sob a supervisão dos médicos, em instituições hospitalares públicas e privadas.
Na Itália, o mais católico dos países da Europa, a legalização do aborto provocou muito conflito. Só depois de cinco anos de debates no Parlamento, em 1975, reunindo os representantes de todos os partidos políticos, foi aprovada a mudança. O plebiscito, realizado no papado de João Paulo II, mostrou que 70 % dos italianos aprovaram a lei.