O CÓLERA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: A LIÇÃO DO PASSADO

Prof. Dr. HC João Bosco Lopes Botelho

‘A cólera se transformou em obsessão… De modo que quando voltou a sua terra e sentiu vindo do mar, a pestilência do mercado, e viu os ratos nos esgotos expostos e os meninos se revolvendo nus nas poças das ruas, não só compreendeu que a desgraça tivesse acontecido como teve a certeza de que se repetiria a qualquer momento”.

O COTIDIANO DA MISÉRIA – O trecho acima, tirado do livro ” O amor nos tempos da cólera”, do escritor Gabriel Garcia Marques, Prêmio Nobel de Literatura, continua como o retrato fiel da desgraça social que ronda os povos latino-americanos.

Os amazônidas vivem, no momento, o terror da chegada da cólera a partir da fronteira peruana. Lá, como aqui, existem as condições necessárias para concretizar o terror infectocontagioso – a ausência do saneamento básico, a fome, a miséria, a água insalubre e a desinformação.

O CONHECIMENTO ANTIGO – A doença é conhecida desde muitas centenas de anos antes do cristianismo. Os comerciantes que percorriam os caminhos marítimos dos grandes rios da Ásia meridional a sabiam como sinônimo de desgraça.

O livro ”Epidemias”, escrito pelos médicos das escolas de Cós (Grécia) e de Alexandria (Egito), entre os séculos V e III a.C., contém a exata gravidade da cólera: vômito, diarreia, fraqueza muscular, anúria, contrações nas pernas e morte. Apesar dos registros confirmarem dezenas de episódios desde o século XVII, foi somente no XIX, como consequência do aumento das trocas comerciais entre o Ocidente e o Oriente, que a patologia produziu a maior quantidade de vítimas fatais.

A TEORIA DOS QUATRO HUMORES – A nominação como KHOLERA ASIATICA FLUXO DE BÍLIS foi feita pelos gregos de Cós. Eles explicaram a moléstia pela teoria dos Quatro Humores. Segundo esta antiga teoria, a primeira tentativa de abordagem das enfermidades no espaço profano, a saúde do homem seria fruto do equilíbrio entre os quatro humores fundamentais: sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso negro. A produção desordenada pelo corpo doente do humor bilioso negro provocaria todos os sinais e sintomas.  O tratamento proposto consistia em eliminar o excesso humoral pelos purgatórios e vomitórios.

O TERROR DA MORTE ANTECIPADA – O pavor gerado pela impotência frente à morte coletiva antecipada, torna propícia a prática das insanidades coletivas. O povo acuado e desesperado perde rapidamente as linhas mantenedoras do direito. As autoridades, pressionadas pelo formidável volume da opinião pública, tentam manter a todo o custo a organização social falsando informações valiosas.

Por outro lado, as religiões aproveitam a insegurança da maioria para reafirmar os seus próprios valores ético-morais de salvação e fomentar a catequese.

O PLANO SECRETO DO GOVERNO BRASILEIRO – As notícias alarmantes de Portugal chegaram, em 1854, ao Governo Imperial do Brasil. Foi elaborado um plano secreto (grifo nosso) tratando o conjunto de medidas higiênicas e profiláticas. O imperador assinou um decreto confidencial, em 10 de outubro de 1854, e o mandou às autoridades provinciais. O presidente da província do Pará, em despacho datado de 24 do mesmo mês, determinou as seguintes medidas:

” 1) que os navios considerados suspeitos pelo Provedor de Saúde do porto ou que viessem diretamente dos portos infeccionados, fossem obrigados a quarentena defronte da ilha de Tatuoca;

 2) que um navio de guerra, fundeado próximo à ilha, fiscalizasse rigorosamente esta quarentena;

 3) que começasse a construir, quanto antes, o lazareto na aludida ilha”.

O CÓLERA NO PARÁ – O segregamento de nada adiantou. A cólera chegou no Pará, em 15 de maio de 1885, a bordo da galera portuguesa Defensor. Durante a viagem entre a cidade do Porto (Portugal) e Belém, morreram trinta e cinco pessoas a bordo. O secretário da Provedoria da Saúde, depois de ter constado que alguns passageiros estavam infectados, determinou o bloqueio do navio lusitano. Para entender a tragédia resultante da rápida disseminação da moléstia na Amazônia brasileira, é necessário analisar os registros disponíveis para comprovar o quanto pode custar, em vidas inocentes, a irresponsabilidade, a incompetência e a cumplicidade de autoridade pública. Apesar de todas as evidências que as mortes dos passageiros do Defensor estavam relacionadas com a cólera, o provedor da Comissão de Higiene Pública não levou em consideração o relatório do seu secretário e baseando-se exclusivamente nas informações de um passageiro médico, liberou o livre trânsito da galera lusa. O provedor afirmou, no depoimento perante à Comissão de higiene, que os óbitos verificados durante o trajeto tinham sido em decorrência das péssimas condições de higiene que o navio oferecia, da fome e dos maus tratos do comandante. Ele justificou, nos seguintes termos, o seu parecer catastrófico em documento enviado ao presidente da Província do Pará: ” Fui imediatamente examinar a referida galera e reconheci na realidade que estes infelizes não faleceram de moléstia alguma de caráter maligno ou contagioso que na viagem aparecesse, mas sim morreram da fome, da sede e espancados pelo capitão… A vista do deplorável estado em que achei estes passageiros, cobertos de miséria, desembarquei a dita galera, dando-lhe neste porto livre prática”. Enquanto a autoridade punia o comandante autoritário, estava iniciando o alastramento no interior do Pará. A primeira cidade a sofrer foi Óbidos ao receber com festa, vindos de Belém no vapor Tapajós, os trinta e dois colonos imigrantes, alguns já com a manifestação clínica.

A CUMPLICIDADE DO PODR ECONÔMICO – É possível que a Companhia de Comércio e Navegação do Alto amazonas, proprietária do Tapajós, detentora da exclusividade da rota pelo rio Amazonas, tenha pressionado para minimizar o quadro. É claro que a notícia alarmaria os colonos estrangeiros chegados em Belém. O pânico seguido da fuga implicaria em grandes prejuízos para a Companhia do Visconde de Mauá, um dos principais representantes dos interesses da Inglaterra no Brasil. É importante relembrar que o fluxo migratório europeu para a região amazônica começou em 1854, um século depois do fracasso do Diretório Pombalino e dez anos após a Diretoria dos Índios. A vinda dos trabalhadores foi coordenada pela Companhia Mauá com o objetivo principal de substituir a escassa mão-de-obra indígena, destruída pela política colonial, e melhorar a produção agrícola regional. A estratégia acabou não dando resultados efetivos porque a maior parte dos estrangeiros não ficou nas colônias agrícolas. Eles preferiram participar do extrativismo que oferecia mais lucros.

A TRAGÉDIA – Com o aumento das mortes o governo não tinha mais como esconder os fatos. Os jornais locais começaram a publicar os números assustadores. A população de baixa renda, abandonada e sem recurso para aviar as receitas extravagantes dos poucos médicos, recorreu aos antigos tratamentos, gravados na memória coletiva, dos purgativos e vomitórios. Mesmo com toda a evidência de uma calamidade pública, foram poucas e ineficazes as medidas tomadas pelo governo. Em novembro do mesmo ano, portanto seis meses depois da chegada da galena portuguesa foi publicada a primeira cartilha dirigida à população. Nesta época, dois terços dos vinte mil habitantes de Belém tinham sido contaminados com mais de dois mil casos fatias. A devastação nos povoados distantes não foi menor. Na localidade de Cametá, com sete mil pessoas, houve mais cinquenta óbitos por dia. o presidente da Província alarmado com o agravamento do pânico em algumas vilas, inclusive em Cametá, resolveu verificar pessoalmente os acontecimentos. Ele morreu na viagem de volta à Belém, no paquete Rio negro, vítima da cólera.

A RELIGIÃO E O CONTROLE SOCIAL – Os momentos difíceis vividos pelo homem quando ameaçado na segurança comum, têm motivado o empenho das religiões para ressaltar a importância da ética ligada ao controle social e à catequese de conversão. A doença compreendia como tal a trabalhada pelos representantes da divindade (sacerdotes) como castigo pela transgressão das regras divinas. Neste sentido, é ilustrativo o discurso pastoral, feito em Belém, no dia 9 de junho de 1955: ” E que outra coisa deveríamos esperar depois de tantos excessos pecaminosos? … Deus ficou no esquecimento; sua religião, suas leis foram postergadas; o mundo, suas máquinas, seus prazeres foram novamente a justiça divina”. O bispo de Belém entendendo que a fúria do céu só poderia ser aplacada com reza e penitência, com a autorização do presidente da comissão de higiene (o mesmo que assinou o livre trânsito do navio português contaminado), promoveu concorridas peregrinações que acabavam se constituindo em mais um agravante.

O CÓLERA NO AMAZONAS – A cólera seguiu viagem e penetrou em terras amazonenses a bordo do mesmo vapor Tapajós, aportado em Manaus trazendo quarenta soldados do 11º Batalhão de Caçadores, no dia 9 de junho de 1855, três semanas depois da partida de Belém. A epidemia foi confirmada infelizmente tarde demais, pelo alerta do cirurgião do Corpo de Saúde do Exército comunicando que dois dos milhares estavam contaminados. Foi um ano de temores. O abrandamento chegou com a notícia do presidente da Província do Amazonas, em relatório dirigido à Assembleia, em 8 de julho de 1856: ” … pela grande importância do assunto, em relação aos nossos interesses sociais e políticos, que eu tenho a satisfação de anunciar … a notícia da extinção da epidemia da cólera…”. Nesse documento consta que em 1855, cento e oitenta e oito pessoas adquiriram a infecção e houve uma morte. As autoridades reconheceram também quatorze óbitos em cinquenta doentes de Itacoatiara e vinte e uns infectados em Silves que resultaram em dois casos fatais entre os meses de janeiro e fevereiro de 1856. É pouco provável que os números divulgados pelo governo tenham sido verdadeiros. O artigo publicado no jornal ««Estrela do Amazonas” no dia 25 de agosto de 1885, um ano antes do relatório do Presidente da Província, dá um outro aspecto da questão: ” O vice-presidente da Província para complemento das providências que acertadamente tem tomado para preservar os habitantes desta capital do rigor da cólera, tenciona brevemente consultar o provedor da Saúde a escolher recantos para estabelecimento de lazaretos de quarentena e observação”. Esta atitude não teria sido pensada se o total de pessoas doentes não fosse grande a ponto de não ter aonde alojá-las. O povo amazonense, desgraçadamente abandonado, também atendeu com fervor ao chamamento eclesiástico. O correspondente em Manaus do jornal paraense ” Treze de Maio”, em 9 de julho de 1855, descreveu do seguinte modo a fé das massas: «« … o povo reconhecia na terrível peste um castigo do céu e que o melhor remédio para combatê-lo era a penitência e a humilhação”.

OS ERROS – no dia 28 de janeiro de 1856 , a exposição do vice-presidente da província do Amazonas desvendou os erros cometidos também pela administração baré: ” O vapor Tapajós, que ancorou no porto desta cidade a 9 de julho do ano passado, foi o portador da desagradável notícia de que no Pará tinha aparecido uma moléstia de caráter mortífero, que os profissionais a classificaram CHOLERINA: dei as devidas providências para que fossem examinados os quarenta praças, que vieram no vapor, visto acharem alguns doentes… entendi que era  conveniente fazer o vapor fundear longe da cidade, expedi neste sentido as ordens ao agente da companhia de Navegação e comércio do Amazonas… Só no dia seguinte se verificou a retirada do vapor (grifo nosso)…”. Entre 1857 e 1861 não houve notícia oficial da cólera nas amazonas. Ele reapareceu no papel, em 14 de fevereiro de 1862, pelas mãos do Inspetor de Saúde pública encaminhando ao presidente da Província as medidas higiênicas e terapêuticas para conter outro possível surto. Inexplicavelmente, ignorou completamente a catástrofe que tinha castigado a Amazônia brasileira entre 1855 e 1856. Nenhuma lição foi tirada dos erros cometidos no passado recente. Como justificativa maior, o inspetor citou somente a situação vivida pela província de Pernambuco: ”Tendo chegado a esta cidade a infausta notícia de que o exterminador cólera-morbo, deixando novamente as plagas do velho mundo, se manifestou em caráter epidêmico na província de Pernambuco…”.

 A referência foi, no mínimo, incompleta e atrasada. A última epidemia pernambucana, entre 1855 e 1856, teve o foco primário vindo da Bahia e alcançou do Rio Grande do Norte até o Rio Grande do Sul no mesmo período. Está absolutamente claro que houve uma sucessão de erros, omissões e cumplicidade das autoridades das Províncias do Pará e do Amazonas que contribuíram para espalhar a doença na Amazônia brasileira.

A TEORIA BACTERIOLÓGICA – O bacteriologista Robert Koch, o mesmo que identifico o bacilo da tuberculose, reconheceu e provou, em 1893, que o bacilo em forma de vírgula de Pacine era o responsável pela cólera. Estava iniciada mais uma etapa para dessagrar os males humanos.

A TRISTE LIÇÃO DO PASSADO – O atual poder público do Amazonas não pode esquecer que o amazônida, como há um século atrás, continua sem saneamento básico, sem água potável e sem acesso à educação fundamental. São estas as condições que transformam a cólera em ameaça mortal.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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