A DOENÇA ALÉM DO SOCIAL

As proposições de Galeno retendo o perfil existencial das pessoas aos fatores natos pré-existentes – os temperamentos – fixaram os limites da cura além do social durante quase vinte séculos.

As microbiologias associadas ao desembarque da louca industrialização, no Ocidente, obrigaram à revisão da ordem galênica. O rápido desgaste do corpo, comprovado no micro e no macro dimensão, determinado pelo manuseio das máquinas, contribuiu para deslocar a dor e o prazer para o exclusivo limite do social.

A partir da segunda metade do século passado, a Medicina oficial continua transmitindo como verdade final, a morfologia das doenças, desprezando como e por que as pessoas se relacionam com a dores e os prazeres1.

Apesar da associação saúde-sociedade não ser recente na história da Medicina, nunca se tornou tão obrigatória nos trabalhos acadêmicos, quanto nos últimos cinquenta anos.

Notadamente, nos países do Terceiro Mundo, onde a dor-histórica (DH) é mais gritante, escrever ou orientar uma tese médica desprovida do suporte metodológico em torno da doença como fruto do social acabou sendo proibida.

Admitir como pressuposto que a doença só depende da ordem social, remete o raciocínio, de maneira obrigatória, à falsa premissa da exclusão da dor-pessoal (DP) e da DH em certas sociedades. Nada é mais prepotente! Como se o poder pudesse indicar, por intermédio dos decretos, o caminho condutor aos prazeres.

A herança genética que molda os corpos dos animais multicelulares foi estruturada, em milhões de anos, para fugir da DP e buscar o prazer com resposta inata contra o sofrimento. As vidas são impossíveis sem a distensão entre a dor e o prazer.

Ao contrário, os sentimentos pessoal e coletivo determinados pelas DP e DH que induzem ao juízo de valor do tipo da organização social, ou sejam, os circuitos biológicos identificadores da dor e do prazer pessoais e coletivos, estão embutidos em processos muito mais densos e pouco compreendidos.

Apesar de a Medicina oficial ter feito progresso no trato da saúde coletiva, retirando-a do espaço fechado da classificação nosológica, é saudável insistir que prevalecem, nas academias, as correntes que colocam a doença como um produto exclusivo da organização social.

Nesse sentido, a principal proposta teórica, na modernidade, que associou o patológico à desordem social e à dor (por corruptela ao capitalismo, como o agente do caos) e o normal à ordem social como agente do prazer (por corruptela à ditadura do proletariado, como condição indispensável à Grande Ordem Coletiva), nasceu a partir da descrição das condições de trabalho e da saúde dos operários ingleses2.

Todavia, a tendência de associar a doença à desorganização das sociedades é bem mais antiga. Na Grécia, nos tempos de Sólon, já estava clara3:

“A função da justiça na sociedade corresponde para o corpo à da Medicina, que Platão ironicamente denomina pedagogia das doenças. Todavia, o momento da doença é muito tardio como ponto de partida para uma verdadeira influência educacional. Sendo o médico o conhecedor da doença, ele pode intervir politicamente para evitá-la”

 

As sementes intelectuais da estranha concepção linear da dor e do prazer, já estavam delineadas no século XVI. Como esse mecanicismo primário interagia nos meios acadêmicos, a máquina foi escolhida como o modelo ideal. O corpo humano passou, como num passe de mágica, a ser comparado a um grande relógio, onde as doenças eram simples desajustes na engrenagem.

A leitura mecanicista dos corpos serviu para fundamentar uma das mais conhecidas tentativas para explicar a diferença entre o homem, possuidor de alma, e os outros animais, feita pelo médico espanhol Gomes Pereira, em 1554, ao afirmar que os animais são máquinas, incapazes de falar e raciocinar4.

O peso decisivo foi, sem dúvida, o das ideias do filósofo francês René Descartes (1596-1650), ao reforçar a corrente mecanicista, defendendo o corpo como o domínio da física e a alma, da religião5.

As ideias oitocentistas, provavelmente, incentivadas pela fisiologia experimental, presente nos trabalhos de Claude Bernard, aprumaram a ciência na tarefa de explicar como funcionava o corpo, quase sempre associando aos avanços da técnica.

O pleno exagero do mecanismo coube às palavras do pensador La Mettrie, em 1748, que conduziu a mecanização das pessoas ao limite máximo6:

“…em todo o universo não há senão uma única substância diversamente modificada, portanto o homem é uma máquina. ”

No início do século XX, a situação em nada mudou. Ao contrário, com a industrialização impondo as linhas de montagem e a necessidade rápida de mão-de-obra, os corpos tornaram-se complementos das máquinas.

O mecanicismo trouxe um impressionante conjunto metafórico à linguagem moderna. O coração passou a ser a bomba; o pulmão, o fole; o rim, o filtro e, finalmente, o cérebro, o computador.

 Os reflexos sobre as mudanças na formação do médico não tardariam. Em 1910, o Relatório Flexner sobre as cento e cinquenta faculdades de Medicina, existentes naquela época, nos Estados Unidos, seguido dois anos depois, pelo segundo Relatório que descrevia os cursos médicos da França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, selaram o destino da nova metodologia do ensino da Medicina.

As universidades passaram a considerar como produtor de saúde, exclusivamente, as relações científicas vindas dos laboratórios de pesquisa. O conjunto formador estava apoiado na certeza de que o uso de aparelhos, para intermediar a ação médica oficial, seria responsável, em futuro muito próximo, pela melhoria das condições de saúde das populações.

Talcott Parsons, em 1951, somou para que a Medicina oficial, de modo semelhante às crenças e às ideias religiosas, compreendesse as enfermidades como significantes de desvio social7. A coesão social só poderia ser alcançada com o controle das doenças, mas sob a estreita supervisão do médico. Essa abordagem foi marcada pelo etnocentrismo americano do Norte, da década de cinquenta, e legitimou os Relatórios Flexner quando afirmou:

“O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica competente (fundamentalmente um médico) e cooperar no processo de recuperação”.

 

A compreensão de Parsons estabeleceu a premissa de que o homem não pode ajudar-se a si mesmo e transformou-o num ser passivo e obediente que deve submeter-se inteiramente ao poder do médico. Essa conduta fortaleceu a Medicina oficial e a morte hospitalar fixando uma relação de dependência do paciente frente ao médico.

É evidente que o estudo de Parsons só poderia ser aplicado em alguns segmentos sociais, nos países industrializados, com grandes recursos disponíveis para pagar os serviços de saúde.

Do mesmo modo como a concepção da saúde atada exclusivamente ao social, a aplicação dessa Medicina oficial mecanicista é questionável, pelo menos, em grande parte da população do Primeiro Mundo e nos maiores segmentos dos países subdesenvolvidos, onde a DH esmaga as camadas sociais que não têm acesso aos hospitais.

Essa imensa parcela populacional desassistida, tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundos, continua recorrendo aos curadores populares para resolver os problemas da saúde e da doença.

Apesar da clara evidência, a prática médica nos países do Terceiro Mundo, desde os anos sessenta, ficou impregnada pelas teorizações de Engels, Flexner e Parsons. Os trabalhos acadêmicos ora primam para qualificar a dor como fruto da injustiça social, ora oferecem a máquina como solução para prolongar a morte temida.

 Apesar da maior questão dos saberes médicos não está resolvida – em qual dimensão da matéria viva a doença começa a substituir a forma preexistente para transformar o normal em patológico? –  os médicos oriundos da sedução marxista ou do tecnicismo exacerbado acreditam, perigosamente, na infalibilidade da Medicina oficial e distanciam-se do doente.

        As intolerâncias dos dois seguimentos forçaram o abandono da milenar tradição médica que valoriza a relação médico-paciente como ponto de partida para alcançar a cura.

As ordens médicas vindas da doutrina flexneriana e da Grande Ordem Coletiva são impessoais e a demonstração de sentimentos, junto ao leito do enfermo, é sinônimo de incompetência. O dom não tem lugar nas propostas de Engels, Flexner e Parsons.

Se, por um lado, os Relatórios Flexner concorreram para consolidar o ensino da Medicina, nos Estados Unidos da América e dos países da Europa e a publicação de Engels remeteu à crítica dos abusos do capitalismo, por outro, ambos podem ser responsáveis pelo descrédito com que a ciência lidou, a partir de então, com o conhecimento historicamente acumulado dos curadores populares.

O resultado final da tecnocracia médica refletiu-se no olvidar do modo como os doentes sentem as doenças e na valorização do abuso dos medicamentos como suporte indispensável para alcançar o sucesso profissional.

O médico não precisaria conhecer o paciente, bastaria estabelecer o diagnóstico e prescrever o tratamento. Os testes laboratoriais seriam confiáveis para garantir que as doenças, e não os doentes, responderiam de acordo com o esperado.

 Paralelamente à intolerância que afastou o médico do doente, muitas universidades iniciaram os estudos para entender como o homem e as mulheres se relacionavam com as doenças e com as práticas de curas fora dos muros das universidades.

O trabalho dos críticos, que armaram as primeiras barreiras contra o tecnicismo, trouxe para dentro da academia os conflitos resultantes das relações do profissional de saúde com os dois sistemas de saberes – o mítico e o empírico – presentes, desde tempos remotos, na história da Medicina.

Ao contrário da tendência modernista, ao longo da História, o controle das doenças sempre esteve além do social9:

“A doença não pertence somente à história superficial do progresso científico e tecnológico, mas à história profunda dos saberes e práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades”.

É insuficiente entender a doença somente como uma consequência das agruras sociais. As evidências apontam para a doença como dependente do social e do genético para que os indivíduos possam fugir da dor pessoal, transpor a dor-histórica e procurar o prazer.

Cada pessoa possui incontáveis padrões específicos para identificar qualquer ameaça de DP. As respostas biológicas frente às sensações dolorosas foram acumuladas durante o processo de humanização. Estão contidas nos circuitos específicos dos sistemas nervosos central e periférico e em cada segmento microscópico do corpo, todos moldados no ADN.

A herança genética é a responsável pela recombinação desses incontáveis padrões, quando o patrimônio dos genes paternos, residente no espermatozoide, penetra no óvulo e garante a transmissão aos descendentes na reprodução sexuada ou na inseminação artificial.

Muitas dúvidas quanto à possibilidade de o social causar alterações genéticas, transmitidas à prole, desapareceram após os estudos das mutações genéticas e dos trabalhos do cientista Susumi Tonegawa, o ganhador do Nobel de 1987, esclarecendo como se dá a variação na ordem dos aminoácidos dos anticorpos produzidos nos linfócitos B.

O pesquisador demonstrou que, quando o linfócito B se desenvolve, segmentos do seu material genético são selecionados e misturados para formar novos genes, dando origem a milhões de sequências variadas de aminoácidos, capazes de efetuar com competência a defesa do corpo humano contra as agressões micro e macroscópica do exterior.

Como consequência imediata dessas pesquisas, é possível afirmar que pelo menos parte da estrutura genética do homem é móvel e capaz de desenvolver, durante a vida, uma infinidade de combinações gênicas adaptadas às necessidades vividas. Com essa certeza, é possível articular o sólido elo entre a herança genética e a vida social.

A doença e a dor, por serem entidades abstratas e não existindo só em si mesmas, recebem nomes e classificações do homem. Esse mesmo homem que as teme quando sente a possibilidade da DP sem controle ou a proximidade da morte prematura, interliga-as aos sistemas cognitivos dos saberes e símbolos míticos e empíricos, oriundos de tempos muito distantes, para ativar os circuitos biológicos, que se projetam no social, tão vivos e verdadeiros como a cor dos olhos, dos cabelos  e da pele, com poderes suficientes para mudar os comportamentos pessoal e coletivo, com o objetivo de moldar a sociedade.

Esses circuitos natos –as memórias-sócio-genéticas1–  localizadas no genoma, respondem pelas correntes que ligam o ser ao social e à genética, impulsionam-no contra as ameaças da dor e aproximam-no do prazer.

Como a forma antecede qualquer manifestação do ser vivente, para que ele se expresse, entre as incontáveis maneiras, é indispensável existir um ou mais segmentos na forma do corpo, nas dimensões macro e microscópica, que sejam os responsáveis pela função.

Para cada função biológica existe uma ou mais formas singulares adaptadas, anatomicamente, à necessidade do ser. Esse elo, indispensável à vida, preserva a multiplicidade das sensações corpóreas objetivas e subjetivas, como existem nas linguagens oral e escrita, na audição, libido, fome, sede, medo, amor, raiva, choro, sono, etc.

 Considerando o ser como produto de longo processo da evolução, ele possui, obrigatoriamente, nas cadeias do ADN, muitos segmentos de combinações que o religam, de modo permanente, ao passado comum recente e ao muito distante.

Uma vez que o processo de mudança da forma e da função do corpo deu-se lentamente, adaptando-o à sobrevivência e forçando-o a fugir da dor, o ser possui, no ADN, vestígios das memórias-sócio-genéticas (MSGs) adquiridas e armazenadas antes de ter assumido a atual forma humana.

Por esse motivo, as doenças e os símbolos que as ligam aos limites da cura e ao medo da morte prematura são partes do conjunto biológico que, ao contrário de dependerem só do social, possuem a força motriz capaz de moldar o grupo social às necessidades da sobrevivência a partir das ordens ditadas pelas MSGs

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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