Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
A história da Medicina, antes exclusiva dos relatos factuais e épicos pessoais, passou a analisar os conflitos humanos frente aos desafios impostos pela sobrevivência. A tentativa de empreender a busca dos elos distantes da Medicina com o social, deve necessariamente estar contida nessa atual representação.
A humanidade sempre conviveu com a certeza da doença e da morte. Nas poucas dezenas de anos que o homem consegue viver, gasta grande parte do tempo na procura incessante do prazer, aqui compreendido no conjunto de situações, de lugares e coisas que oferecem conforto, saciam a fome a sede, protegem do frio e prolongam a vida.
O aprendizado frente a esse destino foi elaborado em dois espaços tão próximos ente si que é difícil afirmar onde começa um e termina o outro:
1.O profano, de natureza empírica, fruto do aperfeiçoamento da técnica;
2.O sagrado, de origem religiosa, dependente da vontade divina.
No sagrado, muitas idéias surgiram para justificar agonia do frio, da fome e da doença. A partir de uma fase, cujo início é impossível de precisar, predominou a venturosa vida depois da morte.
Mesmo com a certeza presumida de que as agruras terrenas, inclusive o fim da vida, dependeriam da divindade, a organização coletiva foi se impondo, pouco a pouco, no espaço profano das relações sociais, para superar os obstáculos à sobrevivência.
Os registros mostram a existência de uma prática médica, como saber empírico, em comunidades ágrafas de caçadores‑coletores. Vários ossos de hominídeos foram achados apresentando fraturas consolidadas. Os ferimentos não teriam curados sem a cooperação dos indivíduos do grupo para imobilizar o membro fraturado, fornecer o alimento e ajudar na locomoção do doente.
Curar é uma palavra mágica porque interliga o sagrado com o profano.O ato de curar traz na sua essência o poder (ou a sensação) de vencer o maior de todos os obstáculos da vida: a morte como manifestação do poder transcendente.
A história evidencia um passado comum entre a Medicina e a religião, ambas disputando a competência da cura para adiar a morte.
A mitologia grega pode ajudar a compreender essa ligação. A data atual de comemoração do dia do médico ‑ 18 de outubro ‑ corresponde, à época em que era celebrada a festa do filho de Apolo, Asclépio, o deus da Medicina grega.
Para entender a Medicina, a partir da Grécia antiga, tentando superar o destino mortal dos homens, é necessário que a análise comece pelos elos rompidos entre o pensamento mítico grego, inovador e questionador, e a mitopoiese opressiva dos egípcios e babilônicos.
O estudo da representação social de Asclépio no panteão grego é identificada na rebeldia à ordem divina. O deus grego da Medicina causou medo aos outros deuses do Olimpo na medida em que ele curava as doenças e evitava a morte.
Asclépio conquistou uma fama inimaginável. Tinha a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doentes que não obtinham cura em outros oráculos procuravam os serviços médicos de Asclépio. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos e por essa razão foi fulminado por Zeus com os raios dos Cíclopes. Zeus matou o filho de Apolo porque temia que a ordem natural das coisas fosse subvertida pelas curas e pela ressurreição dos mortos.
O episódio da morte de Asclépio, motivada pelo ciúme de Zeus, retrata o marco da resistência contra a vontade divina.
O deus da Medicina grega deixou duas filhas – Hígia e Panacéia – e dois filhos – Machaon e Podalírio. As duas mulheres se notabilizaram pelos conhecimentos empíricos ligados à higiene e às plantas medicinais. Os dois homens ficaram de tal modo famosos como médicos guerreiros praticando a cirurgia,na guerra de Tróia,que foram citados nominalmente por Homero (Ilíada, 830). Muitas esculturas e afrescos retratando Asclépio contêm uma serpente enrolada em um bastão.
O conjunto da cosmogonia greco‑romana recebeu o impulso de um dos mais importantes símbolos míticos da antiguidade ‑ a cruz ‑ adotado pelo catolicismo.
O poder da divindade mantendo a primazia sobre a morte foi revigorado pela gradativa consolidação do cristianismo como religião dominante. O calendário cristão manteve o dia 18 de outubro como o registro festivo para marcar o nascimento de Lucas, o evangelista médico.
A serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristã e formou um dos mais belos sincretismos religiosos da história. A serpente, símbolo da imortalidade embaixo da terra, e a cruz, como identificação do inatingível acima da terra, fecham o ciclo mítico pendular entre o desconhecido situado acima da cabeça e abaixo dos pés do ser mortal.
Portanto, não é sem razão que os médicos comemoram, muitos sem saberem porque, o dia 18 de outubro como marco da resistência à morte inevitável.