Os doutores Fritz

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

No momento, os países do Terceiro Mundo, onde as pressões sociais estão alcançando níveis insuportáveis, são sede da multiplicação dos doutores Fritz.

Esta constatação é concreta e não deve ser deixada de lado. Ao contrário, ela envolve questões importantes não resolvidas do binômio saúde-doença com dos seus indissociáveis componentes sociais, além da desconfiança coletiva dos recursos médicos-hospitalares oferecida pelo Estado.

A antropóloga Maria Andrea Loyola, da USP, em pesquisa realizada no bairro em Santa Rita em Nova Iguaçu (RJ), estabeleceu importantes relações entre a busca de saúde nas instituições oficiais com a levada a termo por um grupo de curadores que ela denominou “especialistas não reconhecidos”. Levantou também alguns vetores sociais que interferem no processo de legitimação das duas formas de tratamento. Os resultados desse trabalho estão publicados no livro Médicos e curandeiros. Conflito social e saúde, onde está claro que a procura do tratamento fora das instituições oficiais na comunidade estudada é motivada em parte pelo descrédito da medicina social e dos seus agentes (1).

Entretanto, existem ainda alguns pontos que devem ser questionados tanto na elaboração quanto na reprodução da liberdade com que uma parcela destes especialistas do sagrado – os doutores Fritz – atuam na nossa sociedade (Medicina e biotecnologia, Jc. 5.7.87).

O início pode ser a partir da certeza que o próprio pioder político alimente estes mecanismos de anteparo das pressões coletivas frente às dificuldades do Estado terceiromundista no trato da saúde pública.

É simplesmente impossível imaginar o governador de Nova York ou o chefe do partido comunista de Leningrado procurando um doutor Fritz para tratar uma cólica renal. Infelizmente isso só não é possível de se pensar, mas acontece com frequência no nosso País.

Alguns anos atrás apareceu no Rio de Janeiro um doutor Fritz que se auto denominou sete da lira, este personagem durante alguns meses atendeu centenas de pessoas no subúrbio de Campo Grande. De tudo, que restou foi o enorme patrimônio econômico da “fundação que administrava os dons mágicos do curador.”

É vital para a medicina enquanto ciência enquanto se busca explicações para essa confusa realidade onde a medicina continua sendo a mistura da magia e religião (Medicina e cristianismo primitivo, JC, 24.4.87 e 03.5.87).

O material mais imediato da antropologia do sagrado continua a ser o objeto sagrado.  Tudo tem o seu objeto de fixação, do culto do corpo santo às relíquias, das imagens às cruzes das encruzilhadas, gerando consciência e resposta.

A maioria dos cultos de conjuração e de recursos são cultos terapêuticos. Essa forma de atuar na saúde e na doença é a mais comum e a que toca fundamentalmente no cerne da existência humana na sua ambição de poder e de não morrer.

A ação do sobrenatural na exigência da integridade física tomou corpo a milhares de anos, provavelmente antes do homem ter a sua forma atual. Ela foi consolidada no mundo cristão onde rezar pela cura, pedir a cura, já é curar-se em algumas formas de desequilíbrio biológico (Relações médico-míticas, JC, de 28.12.86 a 25.1.87).

Os indicadores que continuam contribuindo para a reprodução dos doutores Fritz, começam no atual modelo de desenvolvimento, gerador dos enormes desníveis socioculturais e se consolidam na ausência de uma política voltada para a atenção primária da saúde e da infância nos países do Terceiro Mundo. (Repensando novas práticas médicas na América do Sul, JC, 31.5.87).

É importante que se afirme publicamente que a mistura de magia e religião dos doutores Fritz estão longe de representar uma forma sincretizada de medicina popular. Esta não prejudica o doente. Mesmo não se pode afirmar das sessões transcendentes dos doutores Fritz. Não deve existir qualquer mistura entre os dois procedimentos. Um é fruto dos métodos empíricos na busca da saúde que o homem lançou mão durante milhares de anos, o outro é charlatanice, má fé e irresponsabilidade criminosa.

Já é do conhecimento dos zoólogos que os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, são capazes de se tratarem mutuamente lambendo pequenas feridas de duas peles retirando parasitas e espinhos que penetram casualmente. Não se trata de simples catação, é indício de verdadeira assistência à saúde porque envolve atividade consciente e dirigida a um determinado ponto do corpo onde está ocorrendo desconforto e desarmonia da saúde (3).

O espaço de tempo, cerca de 50 mil anos, no qual a nossa espécie está vivendo, foi suficiente para a transformação predatória dos ecos sistemas formados ao longo de milhares de anos, mas o suficiente para   que o próprio homem compreendesse que ele é somente uma espécie biológica, como foram todos os seus antepassados que não mais existem.

A partir do aparecimento da consciência crítica (4) no homem reveladora da sua importância frente à ocorrência das doenças e da morte multiplicaram-se as explicações divinatórias para gerenciar esse desconhecimento assustador.

Não se pode duvidar que os mecanismos de produção do inconsciente coletivo tenham importância fundamental para sustentar essas atividades cerebrais de deificação das relações sociais ainda muito pouco compreendida (5).

Esse conjunto arquitetado ao longo de milhares de anos, pode ter sido responsável pelo fantástico número de deuses que a historiografia registrou. Todos eles mantiveram características comuns, independentemente do número social estudado. Uma delas é o poder de curar determinadas doenças e de ressuscitar alguns mortos.

Esses personagens santificados ou deificados que evoluíram como descendente da trindade assírio-babilônica, An, En-Lil e En-Ki (6) até a trindade cristã, Pai, Filho e Espírito Santo (7), seriam possuidoras de uma capacidade intrínseca de curar algumas patologias. Em dependência do vigor deste dom nato, inexplicavel pela ciência, alguns deles poderiam ressuscitar determinados mortos.

As curas milagrosas mais comumente delatadas são representadas pelas mesmas doenças por milhares de anos. Os cegos de nascença, os paralíticos, leprosos e loucos foram escolhidos por essas divindades para demonstrar ao Mundo o seu poder transcendente.

O mais interessante é que as curas não são aplicáveis em todos os doentes. Somente alguns são os eleitos. O câncer, as anomalias congênitas, o diabetes, a AIDS

(Até agora a imprensa ainda não divulgou nenhum milagre com esta enfermidade) e centenas de outras não são acessíveis aos doutores Fritz.

É possível que a evocação do nome Fritz, seja ainda a onda retardatária da ideia de disciplina e organização que os Alemães repassaram para a América Latina durante os anos do Hitlerismo. Sem dúvida que causa muito maior intenção junto às crendices do subdesenvolvimento ser (tratado) pelo doutor Fritz examinado pelo médico Raimundinho formado pela FUA.

Atualmente o mais conhecido dos doutores Fritz no nosso País é o médico pernambucano Edson Queiroz. A reportagem publicada no Jornal do Brasil de 12.4.87, fornece dados que reforçam a ideia da influência germânica entre as décadas de 30 e 40.

Esse doutor Fritz evoca o espírito do médico alemão Adolf Fritz, cirurgião morto durante a segunda guerra mundial. Com profundas influencias kardecistas, o médico pernambucano declara que sempre frequentou centros espíritas desde a sua infância.

Na mesma matéria o curador Edson afirma: ” O doutor Fritz é um instrumento nas mãos de Deus pessoalmente Edson Fritz não cobra nada, porém, a ” fundação Adolf Fritz ” administra as doações que são solicitadas das pessoas que o procuram até mesmo os jornalistas no exercício da sua prática não escapam da avidez das ” contribuições voluntárias “.

É inesquecível que esses acontecimentos refletem diretamente as pressões sociais vivenciadas por governantes e governados. Somente deste modo é compreensível que deste modo sofredor das angústias da insegurança coletiva que domina as relações de produção dos países do Terceiro Mundo, procurarem os doutores Fritz que mantinha sessões mágico-religiosas, estava acompanhada do seu aprendiz. Ambos, em casas diferentes sob o sol inclemente do verão, faziam curas milagrosas (como os seus dons não eram muito fortes, não conseguiam ressuscitar nenhum morto). Como a multidão aumentou muito depois que tinha sido atendido um político da região descrente da medicina que o estado oferece, eles começaram a receber os doentes num clube. O mestre, antigo conhecedor dos mistérios, já tinha atendido quase todos o da sua fila e o seu aluno ainda estava no primeiro do grupo preocupado com o que poderia estar acontecendo e com a sua reputação, resolveu verificar as dificuldades que o discípulo poderia estar enfrentando. Quando se aproximou, viu um homem deitado numa maca respirando com dificuldade ictérico, abdome distendido e com a pele sobre os ossos chamou o afoito pupilo para longe dos familiares que guardavam ansiosos pelo milagre, e fulminou: Sai de fininho que isto é câncer!

LEITURA COMPLEMENTAR

1 – Nesse trabalho conclui Maria Andrea Loyola, Médicos e curandeiros. Conflito social e saúde, Saõ paulo, Defel, 1984, p. 194. ” Em uma situação globalmente caracterizada pela penúnria e pela carência, o fato da concorrência historicamente produzida – entre especilistas médicos e religiosos (ou em medicina científica ou erudita e medicina mágico-religiosa ou popular) cria um esforço que permite a população de Santa Rita como a muitas outras no Brasil, Um mínimo de extratégia “.

2 – As diferentes formas sincréticas da medicina popular foram analisadas no clássico de Alceu Maynard Araújo, Medicina rústica, São Paulo, Companhia editora Nacional, 1979, a partir do leventamento detalhado das formas centenárias de tratamento das várias doenças na cidade alagoana de Biaçabuço. porém o livro de David Werner,  Onde não há Médico, 8ª Ed. São Paulo,  Ed. Paulinas, 1985, constitui o melhor manual de sintese da medicina popular usadas por milhões de pessoas por todo o Mundo.

3 – Esta afirmação é reforçada a partir das informações contidas nos textos de Albert S. Lyons et Joseph Petrucelli, Histoire ilustreé de la médecine, Paris, Presses  de la renaissance, 1979 ” La  succion de la peau, transperceé par une pigûre d’insecte et le fait d’exercer une pression pour arrêter les hemorragies ont probablement fait partie des  thèrapeutiques “mèdicale” utilisèes par les premiers hommes”.

4 – Na compreensão Marxista, a cosnciência é uma forma dinâmica que surge da interação entre o homem e o meio. Esta conceituação está em Karl Marx and F. Engels, the German Ideology, New York, Pascal Ed., 1947. Sobre a consciencia dominante ver Karl Marx e Friedrich Engels. Feuerbach. Oposição das concepções materialistas e idealistas, in Obras escolhidas, Lisboa, Edições Progresso, Tomo I, 1982, p.38-42.

5 – Sobre o incosciente coletivo  ver Carl G. Jung, O homem e seus símbolos, 4ª ed., rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1964, p. 18-103. É esclarecedora a conclusão de M.L. Vonfrans na mesma obra, p.304, ” ainda estamos longe de compreender o incosciente ou os arquéticos  – estes núcleos dinâmicos da psique – me todas as suas implicações. Tudo o que podemos constatar agora é o enorme impacto que os arquétipos produzem no indivíduo, determinando as suas emoções e perectivas éticas e morais, influenciando  o seu relacionamento com as outras pessoas e afetando assom todo o seu destino”.

6 – Sobre as religoes mesopotâmias ver Miercea Eliade. Histórias das crenças e das  idéias religiosas, 2ª ed., tomo I, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983, p.78-108.

7 – Novas abordagens da cosmogonia da Trindade cristã estã sendo teorizada pelos teólogos da libertação. Ver Leonardo Boff, A trindade, a sociedade e a libertação, 2ª ed., Petrópoles, Vozes, 1986, p. 21. ” Num nível ontológico (que diz respeito a realidade em si mesma), a trindade, Pai, Filho e Espírito Santo não é outra realidade, diferente daquela buscada e encontrada pelos corações sinceros de todos os tempos”.

8 – Esse tema foi dissecado por lain Entralgo, História Universal de la Medicina, vol. 1, barcelona, Salvat Editores, 1981, p. 273 ” La mitologia griega, por el mismo caracter afeccionador del mito, abunda em ejemplos de enfermidades punitivas y de sus correnpondientes curaciones. Un hecho notorio es uqe, fuera del castigo colectivo representado generalmente por la peste los morbos predilectos de los dioses son tres: La lepra, la cegueira e la locura  (grifo nosso)”.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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