COMPANHEIRO ÍNTIMO

ERICK FROTA GOMES FIGUEIREDO

Já era o terceiro dia de febre, sempre nesse mesmo horário, final da tarde. Dona Raimunda, da casa da frente, me avisou sobre os banhos nos ramais do Puraquequara, mas nunca acreditei que algo pudesse acontecer por lá, sempre achei ser papo daquela mulher. Naquele dia do balneário nós fomos cedo, teve peixe assado, tomamos cerveja bem gelada e ficamos batendo papo até o anoitecer. Foi ótimo ficar de molho naquela água gelada e corrente, sair um pouco da rotina pesada e relaxar com esse contato com a natureza. Mas agora, indo pro Hospital, fico pensando se fiz algo errado pra merecer isso. Tomei os antibióticos que Seu Ramos, da casa do lado, recomendou, disse que era tiro e queda pra melhorar. Mas quem levou o tiro e está caindo sou eu, pois as dores e a febre estão insuportáveis. Deve ser dengue, pensei, porque a tal da “zika” que estão falando só dá nas mulheres grávidas, pelo menos foi o que meu primo disse. Acabou que não era dengue, nem zika e nem essa virose que todo mundo pega, o resultado veio em cruzes, duas cruzes de malária, fiquei com medo, “meu Deus isso não mata?”. Estava vendo o doutor falando, mas não estava entendo aquilo direito, ele disse alguma coisa sobre o fígado, “meu Deus! É hoje que paro de beber”. Fiquei feliz quando ele me deu a receita e disse que eu podia buscar os remédios ali mesmo, um por três dias e outro sete. Fui pra casa e comecei a tomar os remédios.

No terceiro dia já não sentia mais febre. Contei pra Dona Raimunda dessa malária e ela tem trazido todos os dias chá de alho com casca de “não sei o quê” que ela tem no terreno dela, disse que é ótimo pra curar isso. Mesmo sem febre, ainda não estava muito bem, estava me sentindo cansado, sem vontade de nada, “bad vibes” mesmo. Achei estranho de manhã ao ir ao banheiro e a urina estar escura demais, fiquei preocupado e aquilo não saiu da minha cabeça, não só não saiu da cabeça como a urina ainda continuou vindo escura daquele jeito. Voltei com o doutor e falei tudo pra ele, e que estava com medo da malária ter “descido”, como na caxumba. Ele disse que faríamos alguns exames, ligou para alguém e logo depois apareceu um jovem de jaleco e maletinha branca, disse que faria uma
coleta rápida em mim. Pediram para que eu esperasse, fiquei na recepção observando todos aqueles outros pacientes, com certeza não era só malária. Já vi na tv que aqui no Hospital Tropical vêm quem tem AIDS, espero que não me vejam por aqui. Quando voltei com o doutor ele disse que seu aluno havia feito um teste com meu sangue e viu que eu tinha uma deficiência. Estava com anemia, que o sangue já estava saindo na urina, tudo isso por causa do remédio para malária. Doutor falou que existem outros como eu e que ficaria muito feliz se eu participasse do estudo dele. Logo apareceram outros alunos, curiosos, com vários papéis pra ler e assinar, mais sangue. Quando os garotos saíram o doutor disse que o remédio teria que ser tomado de maneira diferente, para não continuar me sentindo mal.

Seis meses depois e eu senti febre, aquela febre, depois de sentir uma vez é impossível não reconhecer esse mal-estar. Em meio aos calafrios eu tentava refazer meus passos, não saí mais daqui, nunca mais fui para banhos, nada de aventuras no meio do mato, então como? Dessa vez foi mais rápido no hospital, já sabia como funcionava e não foi diferente do que eu esperava, cruzes de malária! Diferente, dessa vez, era o doutor que estava na sala, logo falei da última vez e da deficiência de “G6P não sei das quantas” que acharam no meu sangue. Acho que consegui prestar atenção agora, ele disse que a malária ficou no meu fígado e como não posso tomar o remédio certinho ela pode voltar, mesmo sem a carapanã me ferar. Doutor pediu para participar de outro estudo, e como da primeira vez os meninos de branco chegaram com seus papéis e seringas sedentas pelo meu sangue. Voltando pra casa fiquei pensando nessa malária no meu fígado, será ela vai ficar sempre acordando dentro de mim? Será que o primeiro doutor com seus alunos conseguiu ver alguma coisa com meu sangue? Será que o doutor de hoje vai conseguir? Não sei, vou ver se Dona Raimunda tem cura pra isso.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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