SOLIDÃO NOTURNA

GUILHERME KEMERON MACIEL SALAZAR

I. Ambiente e Solidão
O rio Juruá corre sinuosamente, serpenteando, calmo e tranquilo,
friccionando os barrancos em suas margens robustas, fortes, feitas de barro,
fortificada por raízes e troncos encravados, caídos no chão. Zonas de matas
fechadas, árvores grandes ou baixas com copas ricas em vida. O silêncio domina
o ambiente de certa forma a causar agonia e medo aos desavisados. Distantes
quilômetros de qualquer cidade, a vida é calma.
As aves voam tranquilas e serenas, preocupadas somente em conseguir o
seu próximo alimento. O silêncio é rompido pelo som do motor do barco flutuando
pelo rio, tão solitário, tentando vencer a corrente e seguir viagem, a fim de chegar
em segurança em sua casa.
A noite chega, o manto preto cobre o céu, a luz se vai no horizonte e a floresta
que até então era viva e alegre, aos sons dos pássaros, passa a ser sinistra e
tenebrosa. Ao olhar para cima, a única esperança de luz vem das estrelas, tão
numerosas quantos os grãos de farinha feitos em brasa, a luz do luar gentil e
meiga guia o barco noite a dentro como norte e companheira durante a jornada
longa e cansativa, somente com a esperança de chegar.
Dentro desse barco, existe um homem, seu Bira, pescador, pai de família,
homem baixo, moreno, típico caboclo dos rios amazônicos, olhos pretos e sorriso
discreto, pela falta dos dentes? Não, sorriso de guerreiro que acaba de chegar
do trabalho tendo em posse um pirarucu tão grande quanto as histórias que
conta aos seus netos aos finais da tarde. Suas mãos cansadas e calejadas fruto
de um combate alexandríaco com o seu prêmio, o peixe.
No horizonte, depois da escuridão noturna, você vê? Sim, como esperado
por todos do barco, pequenas luzes de todas as cores, como um arco-íris
pontilhado em meio o manto escuro.
O sorriso discreto de seu Bira passa a ser virtuoso, logo após os barulhos
dos motores cortarem o silêncio da noite, ouve-se vozes soando vindas da
pequena comunidade de São Miguel. Veja! todas as pessoas da comunidade a
receber o nosso Bira, felizes e contentes por terem o que comer durante alguns
dias. Desligando o motor o barco lentamente se direciona a margem de forma
calma, encrava o seu calado no barranco molhado fincando firme como ponte
para que o homem desça.
II. A comunidade
Localizada na margem direita do rio Juruá, tão pobre quanto distante da
cidade mais próxima, se encontra a pequena comunidade de São Miguel.
Possuindo quinze casas de madeiras em formato de palafita, ligadas entre si,
por uma ponte contínua e frágil de uma madeira a muito tempo cortada e exposta
ao tempo, sofrida pelo desgaste.
Embaixo desta ponte existe um animal bem peculiar grande e sujo que adora
ficar deitado na lama, sim o porco. A lama misturada e envolvida pelas fezes
deste animal, corre em forma líquida para as margens dos rios, onde a população
residente coleta água, toma banho e lava as louças e roupas do seu dia-a-dia.
Ali residem quinze famílias humildes, grande parte delas parentes próximos,
pescadores, agricultores e fofoqueiros, a final cuidar da vida dos outros também
é considerado trabalho nessa pequena comunidade ribeirinha.
A comunidade São Miguel, tão conhecida pela hospitalidade e suas
festas, no passado, na qual os marinheiros em outrora passavam, em grandes
empurradores com mercadorias, em viagens de três meses, aproveitavam para
relaxar e descansar. Lá encontravam pequenos bares com cerveja gelada e
jovens meninas, que estimuladas por suas mães, buscavam encontrar um
homem para se casar e poder sair dali. Eram seduzidas pelas juras de amor e
promessas nunca cumpridas a irem para cama.
Hoje somente os frutos dessas relações persistem na comunidade, já que
a construção e finalização da estrada federal que liga Cruzeiro do Sul, no Acre,
ao restante do Brasil fez a frota de navios e empurradores diminuir
significativamente, desta forma isolando-os do mundo.
Nem tudo na comunidade tão pacata de São Miguel eram flores, desde os
problemas pessoais entre vizinhos, aos dramas de saúde que eram impostos
aquela população pela falta da assistência e o acesso a saúde que movimentava
aquele local de vez enquanto. A calmaria está prestes a ser quebrada.
III. As construções sociais problemáticas
Seu Bira, ao desembarcar do seu velho barco de madeira deu de contra com
o seu amor dona Arlete, com a qual está casado a mais de quarenta anos. Um
sorriso meigo e alegre de uma senhora que ficara aguardando o regresso de seu
esposo:
– Meu velho, porquê demorou tanto?
Seu Bira, com um olhar de alegria misturado com cansaço, responde:
– Foi difícil pegar o monstro. Desculpa a demora.
A caminho da terceira casa, onde eles moram a vinte anos, seu Bira encontra a
sua comadre dona Raimundinha:
– Boa noite, minha comadre.
– A senhora soube das novidades que os pescadores de São João estão
contando por aí?
A comadre curiosa, logo pergunta com cara de espanto e interesse no assunto:
– Boa noite, Compadre
– O que eles estão dizendo por aí? É muito sério?
Bira responde com cara de preocupação:
– Estão espalhando rumores por aí que uma doença está chegando por
essas bandas. Falaram que já matou duas pessoas há quatro praias daqui.
– Essa não é a comunidade de Liberdade?
– Acho que sim, Raimundinha. Eles disseram que um homem visitou a vila
e acabou passando uns tempos por lá. Nisso ele ficou com uma mulher que
morava por lá, logo depois ele foi embora e ela passou uns tempos e morreu.
– Como assim, ela morreu do nada? Isso só pode ser obra do cão!
Ele continuou:
– Eles falaram que começou a aparecer bolhas e feridas por todo o corpo
dela. Ela ficou muito doente e morreu.
– Meu Deus, compadre! Que isso fique por lá mesmo.
Traçando um sinal da cruz no próprio corpo, como que exorcizando o mal,
dona Raimundinha e seu Bira, continuam sua vida, lutando contra o “monstro”,
remando a vida contra a corrente do rio.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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