MEU PREGO TIÃO

LISELE BRASILEIRO

Para Rodrigo e Rafaela

Aos 37 anos de idade Lisbeth sentia uma grande insatisfação profissional.
Formou-se muito cedo e, aos 26, já havia passado em um Concurso
Público para ser Bioquímica em um grande Centro de Referência de
Manaus. Especializou-se, casou-se e foi mãe. Aos olhos alheios parecia
uma trajetória perfeita e estável, mas a jovem Bioquímica estava cansada
de ver e fazer as mesmas coisas todos os dias. Queria ser útil, e seguir
aquela rotina laboratorial era tedioso e estava longe do que ela imaginou
para sua vida profissional. Sobretudo pelo fato de se sentir sabotada, pois
ansiava entrar em um grupo de Pesquisa no Centro que trabalhava.
Oportunidade esta que nunca aparecia. Seu pai, o Sr. Bráz tinha um dos
maiores comércios de estivas de Alvarães, cidadezinha do interior do
Amazonas com pouco mais de 15 mil habitantes, distando cerca de 530
quilômetros da capital. Lá se vendia desde estopa para calafetagem de
barcos e canoas, malhadeiras, munição para caça até gêneros alimentícios
e materiais de construção. Seu Bráz, de pouca instrução, trabalhara a vida
inteira para dar uma vida confortável à família, e seu maior desejo era
formar Lisbeth. Queria uma filha doutora afinal. Lisbeth, aquela típica
menina do interior, chegou à capital muito desajeitada. Ainda no colégio
sofreu preconceito por ser uma “caboquinha” metida a besta que queria
ser cientista. Invocada que só ela, nunca arregou e aprendeu a ser uma
garota da cidade grande. Sentia-se muito bem naquele meio, de amizades
importantes e cursos caros que seu pai lhe pagava. Mas nos banzeiros da
saudade, sua identidade era mesmo Tupé. O cheiro de peixe do mercado
municipal, o jambu na cuia o lago para apreciar debaixo das mangueiras. A
infância dourada onde ela tinha amigos de todas as classes, do filho do
pescador ao filho do vereador, todos na mesma sala de aula. Perguntava
se às vezes se tiveram a mesma oportunidade que ela e percebia que
reclamava mais do que deveria.
A família de seu Raimundo Nonato era grande. No alto dos seus 70 anos
de idade, casado com Dona Nêga, Mundico como era conhecido, se
orgulhava de ter duas casas próprias no bairro de São Francisco, periferia
de Alvarães. Pai de cinco filhos e avô de seis netos, o velho contava de
boca cheia que suas casas eram as únicas de alvenaria do bairro: “Subi as
casas com tijolo e cimento. São as únicas por aqui.” As casas eram uma do
lado da outra. De alvenaria sim, mas inacabadas faltando embuce, piso e
banheiro dentro da casa. Na primeira casa moravam Mundico, Nêga e os
três filhos adolescentes. A segunda casa ficou para os dois filhos mais
velhos morarem com suas companheiras. Um casal havia tido três filhos,
duas meninas gêmeas e um menino. O outro casal havia tido dois meninos
e mais recentemente Talyne uma menininha de 8 meses que ainda
mamava no peito. Era Dona Nêga quem dava as ordens quando Mundico
saia da cidade rumo ao Vilarejo do Marajaí. Nega era uma cabocla de
rocha e colocava moral nas duas casas: “vai banhar esse curumim”; “tira
essa cunhantã do sol”; “esses meninos já comeram hoje?” Eram frases que
já faziam parte do cotidiano da família. No Marajaí, Mundico passava pra
mais de mês, onde caçava e pescava. Os dois filhos mais velhos eram
agricultores e iam com ele para tirar o açaí. Ao final do tempo já era Junho
e Nêga dizia empolgada em casa “Tem festa do divino e derrubação do
mastro. Mundico já está pra chegar do lago.” Naqueles beiradões, o velho
navegava as negras águas. A pequena embarcação ia lotada de carne de
caça, surubim e açaí. Era cada rebojo, que seu Mundico temia perder a
produção do mês. Estavam ansiosos em chegar a Alvarães, junto com eles
ia um presente inusitado para Dona Nêga.
Seu Bráz sempre dizia a filha: “Nesse mundo cão, podem tirar tudo de
você, menos o conhecimento. A maior herança que posso lhe deixar é o
saber.” Lisbeth se lembrava das palavras do pai, há pouco tempo falecido.
E pensava que havia parado no meio do tempo. Estava acomodada em seu
emprego e esquecida em um Setor que fazia rotina de exames
parasitológicos. Ela estava desmotivada lendo mais de 60 lâminas de fezes
por dia. Não tinha nada mais desagradável que passar a manhã inteira
sentindo aquele odor e identificando ora lombriga, ora ameba. Até que
certo dia, debruçada sobre seu microscópio, visualizou algo diferente.
Seria um ovo de Ascaris lumbricoides? “Não… não tem a mesma
estrutura”. Olhou na requisição do exame e viu que a amostra era
originária do município de Alvarães. Não fosse isso talvez nem tivesse ido
investigar. Decidiu então levar a amostra para o Sr. Adamastor, um técnico
com mais de 30 anos de experiência em Parasitologia. Se ele não soubesse
identificar aquele ovo ela não sabia quem mais poderia. Passados três
dias, Adamastor apareceu eufórico procurando Lisbeth. Dizia que sua
Gerente queria falar com ela sobre a amostra de Alvarães. Dra. Marilack
era uma pesquisadora muito respeitada. Lisbeth já havia ouvido falar dela.
Referência em Parasitologia, a experiente pesquisadora vinha dedicando
se há anos ao estudo de doenças infecto-parasitárias no interior do
Amazonas. Ela disse a Lisbeth: “Filha, precisamos investigar este caso. Se
nossa suspeita for confirmada trata-se de uma infecção parasitária rara
em humanos”. Lisbeth arregalou os olhos e questionou-se que ovo era
aquele que ela havia visualizado em seu microscópio afinal. Antes mesmo
de ela perguntar alguma coisa, Marilack falou em tom sério: “O ovo que
você viu é de Bertiella sp. Uma tênia frequentemente encontrada
parasitando macacos. O homem é um hospedeiro acidental.” E continuou
explicando à jovem bioquímica que a droga de escolha era o Praziquantel,
não disponível na rede do Estado nem em Drogarias. Que seria preciso
levar uma equipe até Alvarães para investigação e notificação de outros
possíveis casos na família. Que somente assim poderia solicitar a droga do
Ministério da Saúde e tratar essas pessoas. E finalizou perguntando a
Lisbeth: “Você topa entrar no nosso grupo de pesquisa e ir até Alvarães?”.
Aquela pergunta fez Lisbeth vislumbrar um futuro dentro da Pesquisa
Científica e finalmente evoluir profissionalmente. Além da oportunidade, a
causa era nobre e a levava de volta a sua terra natal o que inundava seu
coração de um terno sentimento.
“Nêga. Ó Nêga… chegamos pros festejos do Divino! Veja o mimo que
trouxe pra você.” Disse Seu Mundico segurando aquele pequeno primata
com topete engraçado na cabeça. “É um prego mulher. Ganhei lá na Vila
do Marajaí. Chamei de Tião em homenagem ao teu Santo de devoção”.
Sabe-se que o macaco-prego é considerado um dos macacos mais
inteligentes do mundo, sendo capaz de abrir frutos de casca rígida usando
pedras ou pedaços de madeira. Tião foi muito bem recebido por toda a
família. Já estava habituado a ver gente. Era dócil e adorava roer buriti.
Tratavam-no como um animal de estimação, andava com uma coleirinha
no pescoço e tinha sua casinha perto do jirau, nos fundos da casa. É
verdade que ali não tinha luxo, mas fartura nunca haveria de faltar
Enquanto a criança embalava na rede, tinha sulamba frita e farinha no
prato. Adultos, crianças e macaco conviviam sem se estranhar. O macaco
era mais traquina que malina, puxava o cabelo de quem não lhe queria
bem. Até os vizinhos se acostumaram com aquele pequeno prego
chamado Tião. Certa tarde, Talyne, a mais nova da família começou a
chorar muito. Tinha diarréia e muita cólica. A mãe pensou que fosse
alguma coisa que comera, pois a menina ainda mamava no peito.
Passaram dias e a criança de 8 meses não teve melhora. Ao contrário,
agora tinha perdido peso, e os episódios de vômito e diarréia não
cessavam. Preocupada, Dona Nêga a levou até o posto de saúde. O
médico do posto, que não era pediatra, mal olhou a criança e passou os
medicamentos habituais de sua prática médica naquele município. Talyne
continuou sem melhora. Arretada que só ela, Nêga foi até o Secretário de
Saúde do município para pedir por sua netinha. A menina, junto com a
mãe, foi mandada as pressas para a casa de apoio do município em
Manaus. Lá foi encaminhada para consulta e exames no Hospital que
Lisbeth trabalhava.
A Bertielose é uma doença infecto-parasitária causada por cestódeos do
gênero Bertiella que ocorrem em animais silvestres, especialmente
primatas não humanos. A infecção humana pode ocorrer acidentalmente
e, apesar dos poucos casos relatados em humanos, a ocorrência mundial
chama a atenção para o seu potencial zoonótico. O ciclo dos parasitos do
gênero Bertiella é heteroxênico e ácaros são os hospedeiros
invertebrados. O homem adquire acidentalmente a infecção por ingestão
desses hospedeiros que contenham larvas cisticercoides. A infecção
humana pode ser assintomática ou ocasionar distúrbios gastrintestinais,
como dor abdominal, vômitos, anorexia, constipação ou diarréia
intermitente (Souza Junior et al., 2008; Denegri e Perez-Serrano, 1997;
Lozano et al., 2010.; Achir et al., 2008). Quanto mais Lisbeth lia e ouvia
sobre a tal Tênia de macaco, mais tinha vontade de se aprofundar no
assunto. Quem diria que a Parasitologia poderia dar tanta pauta. Ouviu
várias vezes que eram linhas como Malária e HIV que poderiam lhe trazer
alguma esperança na pesquisa. Lisbeth então percebeu que as doenças
parasitárias eram negligenciadas, muitas vezes por ela mesma, no setor
que trabalhava. Decidiu então dedicar-se a causa e juntar-se a equipe da
Dra. Marilack que lhe aconselhou: “Tudo é jogo de cintura afinal, seja
sábia e não perca sua graça filha”. Na entrega de resultado do exame de
fezes, souberam que a mãe e a criança estavam acolhidas na casa de
apoio do município. Foi feita a notificação do caso de Bertielose ao
Ministério da Saúde e a criança recebeu o devido tratamento. Agora
restava saber se o restante dos membros da família também estava
infectado e como a parasitose foi transmitida.
Uma golada de café quente e surge na casa de Dona Nêga uma visita
inesperada. Era Lisbeth e a equipe da Dra. Marilack que visitavam Alvarães
em busca de novos casos de Bertielose humana. A equipe era composta
por Lisbeth, o exímio técnico Adamastor, um médico veterinário, uma
biomédica e um clínico geral. Além desta equipe, a Secretaria Municipal
de Saúde também havia sido acionada para dar o devido suporte na
investigação dos casos. Lisbeth bateu palma três vezes em frente às duas
únicas casas de alvenaria no bairro de São Francisco. “Perdão, procuro por
seu Raimundo Nonato. É aqui o endereço?”. Dona Nega desconfiada ficou
só olhando para a jovem bioquímica, toda de branco com uma prancheta
nas mãos. “É aqui sim! Pode entrar Doutora!”, respondeu a mãe de
Talyne, a criança agora com 12 meses que havia sido tratada em Manaus.
A equipe foi entrando devagar na humilde residência. A curuminzada toda
correu para ver aquelas pessoas interessantes que estavam ali. Vestiam
jalecos e carregavam notebooks, maletas, sacos e potes coletores. A
equipe tratou logo de fazer as devidas anotações e fotos do local onde a
família morava. Seu Mundico agora estava na sala também. Alguns
bancos, um sofá velho e o chão batido de terra ainda sem cimento e
cerâmica. Lisbeth tratou logo de cumprimentar o senhor de 70 anos. Tinha
as mãos calejadas do terçado e rosto marcado de muito sol. Foi
cumprimentando cada membro da grande família interiorana. Um dos
adolescentes ficou sem ação ao ser cumprimentado por Lisbeth.
Carregava um paneiro nas costas e tinha uma coceira nos fundos pior que
ferrada de jiquitaia. Sem paciência Mundico gritou: “Não está vendo
abestado, a Doutora está dando a mão pra ti.”

A equipe da Dra. Marilack ficou em Alvarães para receber as amostras de
fezes da família de Seu Mundico e também dos vizinhos. De 23 amostras
no total, 9 deram positivo para Bertiela sp. Os pacientes receberam o
devido tratamento e uma última visita foi feita no bairro para orientações.
Foi então que o veterinário viu um macaquinho prego no ombro de uma
das crianças. Todos da equipe se entreolharam, afinal, na primeira visita
não haviam visto nenhum macaco no local. Tião era gaiato e pulou no colo
da Biomédica que estava com a equipe. Ela riu e falou: “mas como ele é
fofinho”. No final, a equipe teve que fazer várias recomendações em
relação a criar um animal silvestre como animal de estimação e informar
sobre a suspeita da Bertielose ter sido transmitida pelo ácaro que vive no
pelo do pequeno primata. Foram várias perguntas como: “Há quanto
tempo Tião vive com vocês? Ele convive dentro de casa com a família?
Deita na rede das crianças?” E por fim, se a família tinha o hábito de se
alimentar de macacos. Seu Mundico respondeu: “Dona, lá na Vila do
Marajaí, onde eu caço e pesco, cheguei a comer macaco guariba.” A
equipe coletou algumas amostras de fezes de Tião e levou para ser
analisada em Manaus. Piciqueiros de plantão diziam ao velho Mundico:
“Esse teu macaco imundo que nos passou doença” ou “Dá cabo desse
leproso ou quem vai dar somos nós” O velho respondia: “Não metam a
colher no meu prato de chibé”. No mês seguinte Lisbeth fora novamente a
Alvarães, agora não para trabalhar, mas para matar a saudade da terrinha,
da bacaba e da farinha. Apesar do inquérito da Equipe ainda estar
incompleto, Lisbeth já sabia que não haviam sido encontrados proglotes
nem ovos de Bertiela sp nas fezes de Tião, o que eliminava o macaquinho
da possível cadeia de transmissão acidental da Tênia. E foi até seu
Mundico para contar a novidade. Chegando no bairro de São Francisco,
logo soube que haviam envenenado Tião. Seu Raimundo ainda estava
desolado pela maldade que fizeram ao seu bixinho: “Mataram meu prego
Tião”. E com o semblante querendo disfarçar a tristeza que ainda sentia
mudou de assunto e disse a Lisbeth: “Doutora, aqui tem muito é ferrada
de pium.”

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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