FILHOS DA BORRACHA

MÁRCIA DOS SANTOS DA SILVA

Era fim de tarde no Amazonas. O sol se punha ao final das margens negras do rio em plena vazante e sua cor se misturava ao azul do céu, tingindo a paisagem em tons de laranja, emitindo raios que invadiam portas e janelas até alcançar o rosto de Luiz. Sentado em sua habitual cadeira de balanço, ele cochilava de frente para o rio em seu local preferido da casa, onde costumava descansar aos finais de semana. Era nesta casa, localizada no condomínio mais luxuoso de todo o Tarumã, que ele podia esquecer o dia a dia atribulado como empresário bem sucedido e se reconectar com suas origens humildes. Luiz era o quinto filho de um casal de seringueiros. Seus pais moravam em um pequeno casebre feito de palha, construído no meio do seringal, de onde tiravam o sustento dos doze filhos. Os tempos áureos da borracha há muito haviam se passado. Quando o avô de Luiz chegou em Lábrea, conheceu o auge do período extrativista. Vindo do interior do Ceará, acreditou na oportunidade de enriquecer extraindo o tal ouro do Amazonas. Ali permaneceu durante toda a vida sem nunca ganhar mais do que o extremamente necessário para o seu sustento. Seus filhos seguiram seu passos e Luiz foi criado no meio da floresta Amazônica. Aos oito anos, ajudava o pai e os irmãos no trabalho de extração. Acordava ainda na madrugada e adentrava a mata levando consigo uma faca e uma pequena tijela. Gastava o dia fazendo cortes paralelos na seringueira e aguardando a árvore derramar suas lágrimas leitosas que garantiam o sustento da família. Tinha a pele sempre queimada de sol, o rosto enegrecido pela fumaça do látex e suas pernas traziam as marcas da ferida comum a todos os seringueiros da região. Quando tinha 14 anos, decidiu mudar para Manaus e procurou o irmão mais velho que anos antes havia feito o mesmo. Luiz passou a morar com o irmão, Raimundo e sua esposa Joana, em uma pequena casa de dois cômodos na periferia da cidade. Logo arranjou emprego como chapeiro num pequeno bar próximo de sua casa. Decidido a mudar seu destino, estudava durante a manhã e trabalhava no bar das 18h até 02h todos os dias. Ali conheceu os mais perigosos traficantes do bairro. Servia-lhes o tradicional x-salada com Coca Cola, sempre de cabeça baixa e olhos fixos no chão para evitar qualquer possibilidade de desentendimento. Após alguns meses, Nadson, o chefe do tráfico local, chamou-o a mesa: – Pivete, manda aí aquele especial da casa – Sim senhor! – E aí pivete, qual teu nome? Luiz sentiu o sangue fugir das veias e o pavor invadiu seu corpo. Respondeu trêmulo:

– Er-er-er Lu-lu-Luiz. – Então, pivete – disse o chefe do tráfico aumentando o tom da voz – a partir de hoje você será o novo avião do bar. Deixarei o produto todos os dias esse horário e no final da madrugada venho recolher o meu dinheiro. Está fechado? Luiz quase desfaleceu. Jamais imaginou fazer algo ilegal na vida. Sabia que um outro colega garçom era quem fazia este serviço e preocupou-se com o que poderia ter acontecido a ele, pois haviam dois dias que ninguém tinha noticias suas. Mas como ele poderia recusar tal ordem sem por em risco sua vida? Tinha certeza que se negasse a proposta, seria baleado e morto ali mesmo em questão de segundos. Sem ter outra opção, balançou a cabeça afirmativamente. Nadson entregou-lhe um sacola e uma folha de papel onde estavam anotados o nome dos produtos e o valor a ser cobrado. Já no dia seguinte, Luiz vendeu todo o produto deixado por Nadson. Conforme avisado, o chefe passou na madrugada para receber seu dinheiro e entregou um envelope a Luiz. – Continue fazendo seu serviço bem feito e será sempre recompensado! Ao chegar em casa, Luiz mal pode acreditar na quantidade de notas dentro do envelope. Em um único dia quase o mesmo salário do mês! Embora sua extrema pobreza quisesse sucumbir à tentação do dinheiro fácil, Luiz relembrou sua origem humilde e decidiu enviar o dinheiro a seus pais. E assim se passaram meses… Luiz guardava todo o dinheiro dado por Nadson, sempre separando um quantia gorda para enviar aos pais no final do mês. Conseguiu juntar o suficiente para recomeçar longe dali, mas como poderia se desvencilhar do poder de Nadson? Por mais que pensasse, jamais chegava a nenhuma solução e permanecia subordinado a ele, temendo pela própria vida e com medo de contrariar o traficante mais poderoso da cidade. Em uma tarde de domingo, ouviram-se os sons de sirene, que logo se seguiram de tiros e gritos histéricos. A policia invadiu a casa que servia de quartel general do tráfico e Luiz recebeu a noticia: Nadson fora morto pela polícia. Sem pensar duas vezes, Luiz chamou o irmão e confessou-lhe toda a historia com Nadson. Aos prantos, jurou ao irmão jamais ter usado drogas e que somente aceitou o acordo por medo de ser morto. Luiz mostrou o dinheiro que havia guardado durante todo o tempo em que serviu a Nadson e suplicou ao irmão: – Irmão, vamos nos mudar daqui e recomeçar do outro lado da cidade. Agora que Nadson está morto, não poderá nos perseguir. Se continuar aqui, logo terei que fazer o mesmo serviço para o próximo traficante que surgir para ocupar este lugar. Pensativo, Raimundo permaneceu alguns minutos cabisbaixo. – Não posso deixar meu emprego e minha casa para trás!

– Mas eu preciso da sua ajuda, irmão! Com o dinheiro que juntei, podemos montar nosso próprio negocio e garantir uma vida melhor para nossa família. Joana, que ouvia tudo do lado de fora do quarto, entrou subitamente e concordou: – Ele esta certo, Raimundo. Há dinheiro suficiente para conseguirmos um bom lugar para morar e começar uma nova vida, longe do tráfico e dessa violência. Os três rapidamente arrumaram tudo o que puderam e partiram no dia seguinte. Raimundo alugou uma casa simples no centro da cidade, localizada na parte de cima de um pequeno ponto comercial. Ali os irmãos montaram sua primeira lanchonete: Dois Irmãos. Enquanto Raimundo continuava trabalhando como operário durante o dia, Luiz e Joana trabalhavam no bar. Com o crescimento da cidade, logo o movimento do bar também cresceu e Raimundo teve que largar o emprego para cuidar das finanças do local. Os três poupavam cada centavo de lucro e não se permitam luxos mesmo quando o faturamento da lanchonete superava todas as expectativas. Após dois anos, abriram sua segunda lanchonete localizada em um bairro habitado predominantemente por militares do exército. Luiz, Raimundo e Joana seguiam acumulando dinheiro e investindo em outras lanchonetes, pouco se permitindo aproveitar da vida. Em cinco anos, já eram donos de 4 grandes lanchonetes famosas na cidade e não mais lembravam a origem ilícita do seu capital. Em uma bela noite de verão, enquanto Luiz recebia os pagamentos no caixa da lanchonete, uma jovem de pele clara e cabelos negros adentrou a lanchonete. Passou por ele exalando um delicioso perfume de rosas que invadiram suas narinas e pareciam estabelecer conexão própria com o seu cérebro. Luiz estava hipnotizado. Notou na jovem um porte elegante acompanhado de roupas de marca que diziam a ele não ser possível. Quando despertou de seu rápido momento de encantamento, notou que a jovem sorria para ele. Ruborizado, baixou os olhos e continuou seu trabalho. Nos dias seguintes, a jovem passou a ir diariamente na lanchonete, sempre no mesmo horário. Assim que entrava, cumprimentava Luiz e sentava-se com uma ou duas amigas na mesa próxima a ele. Foram necessários meses até que Luiz finalmente tomasse coragem para perguntar seu nome. – Clara – disse ela. – O seu é Luiz, não é mesmo? – Sim. Como sabe? – Venho todos os dias aqui para ver meu futuro marido trabalhando. Como poderia não saber o nome dele? Luiz sorriu e respondeu: – Se sou seu futuro marido, acredito que poderíamos jantar juntos hoje. – Seria maravilhoso!

E assim Luiz e Clara começaram a namorar. Ela era filha do dono de uma das maiores redes de posto de gasolina do estado. Embora temeroso e sempre se sentindo inferior, Luiz aceitou conhecer os pais de Clara. Logo que contou sua origem humilde e onde conseguira chegar, Luiz conquistou o poderoso homem de negócios, que passou a aconselhá-lo sobre como administrar sua rede de lanchonetes. Obviamente, omitiu a origem de seu dinheiro por medo de ser rejeitado. Após o casamento com Clara, Luiz prometeu trabalhar para manter o alto padrão de vida com o qual a esposa estava acostumada. O sogro lhe cedeu dois postos de gasolina para que fossem administrados por ele. E o sucesso financeiro aumentava cada dia mais. Viajou para lugares famosos, comprou uma bela casa em um condomínio de luxo e presenteava a esposa com lindas jóias. Apesar dos esforços do marido, Clara nunca se importou com a riqueza que os cercava. Gostava de coisas simples e da comida regional preparada pela empregada que há anos estava junto de sua família. Quando o marido decidiu comprar a casa nas margens do Rio Negro, logo animou-se com a possibilidade de desfrutar da natureza tão bela de sua terra natal aos finais de semana. A casa foi minuciosamente planejada pelo casal. E era lá que toda a família se reunia aos finais de semana para festejar e também descansar. A sala ampla abrigava poltronas macias e as janelas eram revestidas por cortinas de linho branco. A sala de jantar apresentava ao centro uma enorme mesa de madeira com lugar para oito pessoas. Haviam quatro suítes para hospedar os convidados e uma cozinha bem equipada. Aos finais de tarde dos sábados, Luiz e Clara admiravam a paisagem e contemplavam o pôr do sol na varanda, ele em sua cadeira de balanço e ela se embalando preguiçosamente na rede. Foi em uma dessas tardes que o tormento de Luiz se iniciou. Sentiu uma forte pressão na face, seguida de uma sensação gelada que escorria pela narina direita. Ao abaixar a cabeça, viu as gotas vermelhas que saiam de seu nariz mancharem o chão de madeira. Clara, que observava a cena, correu ao encontro do marido: – Meu bem, o que houve? O que está acontecendo com o seu nariz? Luiz não conseguiu responder. Ao tentar falar, foi interrompido por uma cascata de coágulos que saiam incontrolavelmente do seu nariz. Clara desesperada, queria levar o marido ao hospital, mas ele resistiu. Assim que o sangramento cessou espontaneamente, afirmou estar bem e que procuraria o médico no dia seguinte. Há meses que ele sentia o nariz obstruído, mas não deu importância. Pela manhã, e a noite, eliminava crostas seguidas de pequenos raios de sangue pela narinas. Observou o nariz um pouco inchado, mas nada disso alertou-o para a possibilidade de algo mais sério. No dia seguinte, Luiz conseguiu uma vaga com um dos mais renomados otorrinolaringologistas da cidade. Após um breve exame, o médico informou-o que seu nariz estava

com uma ferida, mas que logo cicatrizaria. Prescreveu uma pomada e disse que poderia ficar tranquilo. Semanas se passaram, e Luiz não observava melhoras. O nariz continuava obstruído, e sempre que tentava limpar as narinas, saiam crostas enormes seguidas de sangue vermelho vivo cada vez em maior quantidade. Luiz retornou ao médico acompanhado de Clara: – Doutor, usei a pomada que o senhor me prescreveu durante várias semanas e meu nariz continua sangrando! – Pior que isso, Doutor – disse Clara. Vejo que meu marido retira crostas escuras de dentro do nariz, parecendo casca de ferida, que eu não consigo entender de onde surgem! O médico mais uma vez amenizou o problema: – Não se preocupem. Vou receitar uma nova medicação que ajudara na cicatrização dessa ferida. Luiz mais uma vez seguiu o tratamento prescrito, agora com antiinflamatórios e um spray que aplicava três vezes ao dia para desinflamar o nariz, conforme havia dito o doutor. As crostas e o sangramento melhoraram logo nas primeiras semanas, mas o alivio foi por pouco tempo. Logo os sintomas voltaram e seu nariz ficava cada vez mais obstruído. Desanimado com a falha no seu tratamento, Luiz desistiu de procurar atendimento médico. Permaneceu meses com epistaxe recorrente, eliminação de crostas e o nariz obstruído. Quando começou a apresentar secreção purulenta de odor fétido, Clara não pode mais suportar: – Vamos imediatamente ao médico! Tem que haver uma cura para isso! – Não meu amor, infelizmente não há – disse Luiz cabisbaixo. – Como não? Vamos procurar outro médico. – Meu amor, preciso lhe confessar algo da minha vida que jamais tive coragem de lhe contar. Creio que essa doença que corrói meu nariz é o castigo merecido por ter ajudado a destruir tantas vidas no passado. – Destruir vidas no passado? Do que você esta falando? – Antes de conhecer você, morei em um local muito distante na periferia da cidade, dominado pelo tráfico de drogas. Todo o meu dinheiro foi feito a partir das drogas. Nunca tive coragem para lhe contar, mas Deus agora está me punindo! Vendi drogas para muitos jovens… imagine a quantidade de vidas que eu ajudei a destruir! – Não, meu bem. Deus é justo. Ainda que você tenha feito algum mal, a vida lhe mostrou um novo caminho e você conseguiu se libertar! Deus jamais castigaria alguém que se arrependeu das coisas ruins que fez no passado. Não se esse arrependimento for verdadeiro.

– Me arrependo muito sim. Mas eu não tive escolha. Quando pude escolher, escolhi fugir e apagar essa parte do meu passado que tanto me envergonha. – Deus há de nos ajudar meu amor. Vamos procurar outro médico. Já no consultório do segundo otorrinolaringologista, Luiz contou o mal que lhe acometia: – Doutor, há quase um ano que sinto meu nariz ficar cada vez mais obstruído. Quase não consigo respirar por ele. Pela manhã e a noite, quando vou limpá-lo após o banho, saem umas cascas pretas fedorentas enormes, sempre com um pouco de sangue. Também já apresentei sangramento intenso em três ocasiões, além de perceber que meu nariz esta inchado e um pouco estranho… não sei explicar. E para piorar, agora estou assoando um catarro fedido que minha esposa consegue aguentar. – Entendi seu Luiz. Sente-se aqui para que eu possa examiná-lo. – Como quiser, doutor. – Pois bem, seu Luiz. Vejo que seu nariz está muito inflamado e inchado por dentro. Esse catarro amarelo fedorento nada mais é que uma sinusite crônica. Vou prescrever o antibiótico correto junto com uma boa dose de corticóide e o senhor logo se sentirá melhor. – Espero que sim, Doutor. Não aguento mais este tormento! Luiz deixou o consultório ainda pensativo. Será que Deus o havida perdoado? Será que finalmente seu nariz voltaria a funcionar normalmente? Infelizmente não foi o que aconteceu. A medicação prescrita pelo otorrinolaringologista somente aliviou o odor q exalava do seu nariz, mas os demais sintomas todos permaneciam. – Está vendo – disse Luiz a Clara, Deus não me perdoou! Ainda estou sendo punido pelos meus pecados. Errei muito e construí minha vida com o dinheiro que veio do sofrimento e da destruição de muitas vidas! Sou um pecador e mereço a punição! – Nada disso meu amor – Clara insistia – Deus não está lhe punindo. Nós vamos encontrar a cura para isto! Consultando com o terceiro médico, após mais de um ano de sofrimento, Luiz explicava melancolicamente toda a sua trajetória de sintomas até ali. O médico jovem e recém formado ouvia tudo atentamente. Assim que realizou o exame físico, o jovem doutor afirmou: – Senhor Luiz, nenhum dos diagnósticos dados pelos meus colegas estava correto. Vejo que o seu nariz apresenta uma inflamação crônica sim, mas de aspecto diferente, com aparência de ser uma doença granulomatosa… – Grão o que doutor?

– Granulomatosa! É um tipo de inflamação encontrado em doenças bem específicas, sobretudo na região Amazônica. Me diga, o senhor costumava ir para áreas de mata ou algum município do interior? – Claro que sim doutor! Fui criado dentro da mata e passei uma boa parte da minha infância dentro do seringal, trabalhando com meu pai. – E o senhor já teve ferida braba? Daquelas que demoram muito para sarar? – Aah sim… todo seringueiro já teve ferida braba uma vez na vida! Minha mãe preparava o emplastro de jucá. Era uma santo remédio! Demorava um tempo pra curar, mas dava certo. Veja doutor, tenho até a cicatriz até hoje. – Que interessante seu Luiz! O senhor tem uma história bem sugestiva de Leshmaniose. – Leish doutor? Nunca ouvi falar da ferida braba no nariz. Além do mais, já fazem muitos anos que eu não frequento o seringal, tampouco entro em mata. – Mas essa é a historia natural da doença, seu Luiz. A leishmaniose quando acomete a pele e não é tratada corretamente, pode surgir anos depois acometendo a mucosa do nariz, da boca ou da garganta. – Misericórdia Doutor! – Não se assuste. Vou realizar uma biópsia do seu nariz e enviar para análise no hospital de referência para doenças tropicais. Também lhe recomendo uma consulta com o colega infectologista para realizar outros exames. – Tudo bem. Farei conforme a sua orientação. Em poucos dias, Luiz recebeu o diagnóstico final: leishmaniose mucosa. – Viu como nada tem a ver com seus pecados e castigo de Deus? – lembrou Clara. – É verdade meu amor! Eu estava desesperado vendo meu nariz ser destruído por um mal que eu não conhecia. – Deus não castiga as pessoas enviando doenças. – É verdade. Graças a Ele e aos doutores que cuidaram de mim na Fundação de Medicina Tropical, hoje meu nariz está sarado!

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
Esta entrada foi publicada em ARTIGOS. Adicione o link permanente aos seus favoritos.