Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Os mais antigos vestígios infubitáveis de inumação datam do Paleolítico Médio, isto é, há cerca de mil anos, nesta época já existiam algumas diferenças nas atitudes dos homens frente a seus mortos…
Como muitos casos de mudança de mentalidade, que ocorrem no longo do tempo, as atitudes em relação à morte podem parecer quase imóveis durante longos períodos de tempo. Porem, em certos momentos, mudanças intervém , mais rápidas e mais conscientes.
A MORTE FAMILIAR, DOMADA
Nos mais antigos romanos medievais (por exemplo, na época de Carlos Magno, no século IX ) os cavaleiros tinham premonições de sua morte através de sinais sobrenaturais; aqueles que morriam de repente (como por exemplo, de peste) e portanto não tinham avis, eram considerados como tendo uma morte fora do normal, da qual nem era bom falar…
Existem muitos textos onde se pode ler: “ele sabia que sua morte estava próxima…”
O aviso era dado através de sinais sobrenaturais ou, muitas vezes, por uma convicção íntima. Essa atitude vai persistir até o século XIX.
Quando ele sabia do seu fim próximo, o agonizante tomava algumas disposições: esperava a morte deitado (é a atitude das estátuas jacentes a partir do século XII).
Mais tarde aparece um ritual antes da morte: em primeiro lugar o moribundo se lamentava das tristezas da vida, depois pedia o perdão das pessoas próximas; o agonizante recomendava seus amigos a Deus. Vinha depois a oração e enfim a absorlução. (A extrema unção era, então, reservada aos clérigos).
A morte era uma cerimônia pública (cada uma podia livremente no quarto do moribundo) e organizada(pelo próprio agonizante). Aliás, os médicos (no final do século XVIII) que descobriam as primeiras regras de higiene, se queixavam do superpovoamento dos quartos dos agonizantes. Importava que os parentes, amigos, vizinhos estivesses presentes. Trazia-se também as crianças.
Os ritos da morte eram aceitos e cumpridos sem emoção excessiva.
Assim se morria durante séculos, sendo as pessoas ricas ou pobres. A morte era familiar, indiferente.
Um aspecto a ser apontado da antiga familiaridade com a morte é a coexistência dos vivos e dos mortos. Essa coexistência era desconhecida na Antigüidade, durante a qual se enterrava fora das cidades; honrava-se as sepulturas, mas os dois mundos, o dos mortos, e o dos vivos, eram claramente separados, Depois, pouco a pouco, com o culto dos Mártires, os mortos vão entrar nas cidades e não haverá mais diferença entre a igreja e o cemitério.
Designa-se as vezes, o cemitério com o nome de “ossario”ou de “carneiro de ossos”. Esses carneiros, são hoje muitos raros. Ainda existem as relíquias de um deles na cidade de Rouen, na Normandia (França): é o “aitre Saint Maclou”.
Dentro de alguns ossários, na Itália sobretudo, os crânios, e os membros eram dispostos com muita arte…
Os cemitérios eram, então lugares de encontro e de reunião. Lá, podia-se fazer comércio, jogar, dançar, ou simplesmente conversar pelo prazer de ficar com os amigos…
Ao longo dos carneiros se instalavam às vezes lojas e comerciantes. O espetáculo dos mortos, cujos ossos saíam à superfície, em certas ocasiões, não impressionavam os vivos mais que a idéia de suas próprias mortes…
Mas, pouco a pouco, modificações sútis vão dar um sentido dramático e pessoal à familiaridade do homem com a morte.
Para bem entender esses fenômenos, precisamos Ter presente no espírito que esta familiaridade com a morte implica uma concepção coletiva do destino: é uma certa forma de aceitação da Ordem da Natureza. O homem sofria na morte, uma das grandes leis da espécie, e não pensava em fugir dela, nem exaltá-la. Ele aceitava simplesmente, com a necessária solenidade que marca a importância das grandes etapas que devia atravessar na vida. Mas, dentro da antiga idéia do destino coletivo da espécie, uma série de fenômenos novos vão introduzir a marcar a preocupação da particularidade de cada indivíduo. Esses fenômenos são: a representação do Juízo Final, no fim dos tempos; o deslocamento do Juízo para o fim de cada vida, no momento da morte; os temas macabros e o interesse dado ás imagens da decomposição física; enfim, a volta à epigrafia funerária e o inicio da personalização das sepulturas.
A representação do Juízo Final
Durante os primeiros séculos do Cristianismo, os mortos repousavam, até o dia do segundo advento, da grande volta, quando iam acordar na Jerusalém celeste, isto é, do Paraíso. Não havia lugar, dentro desta concepção, para uma responsabilidade individual, para uma contagem das boas e das más ações…
No século XII, a cena muda. Nos tímpanos esculpidos das igrejas romanas, em Beaulieu, Conques, Autum… na França, a glória do Cristo, inspirada no Apocalipse, ainda domina. Mas, em baixo, aparece uma iconografia nova, inspirada em São Mateus, que representa a ressurreição dos mortos, uma iconografia nova, inspirada em São Mateus, que representa a ressurreição dos mortos, a separação dos justos e dos condenados, isto é, o Juízo, coma determinação do peso das almas pelo arcanjo São Miguel.
Pouco a pouco, a idéia de juízo domina e é realmente uma corte de justiça que esta representa. O Cristo está sentado no lugar do juiz, cercado de sua corte: os Apóstolos. Duas ações tomam cada vez mais importância: a pesagem das almas e a intervenção da Virgem e de São João, de joelho, de cada lado do Cristo Juiz.
Julga-se cada homem conforme o balanço de sua vida. As boas ações estão escrupulosamente separadas nos dois pratos da balança de São Miguel, São, aliás, escritas num livro( o “liber vitae”). Assim a idéia do Juízo Final está ligada ao fim dos tempos, como se pode ver igualmente nos quadros do pintor flamengo Jeronimus Bosch.
O juízo no quarto do agonizante
O segundo fenômeno que se apresenta à nossa observação consiste em suprir o tempo escatológico entre a morte e o final dos tempos e a situar o Juízo Final, não na atmosfera do dia da ressurreição, mas, no quarto do agonizante.
Encontramos essa nova iconografia nas gravuras sobre madeira espalhadas pela Imprensa (recente descoberta), nos livros que são “tratados sobre a maneira de bem morrer”: os “Artes Moriendi”dos séculos XV E XVI.
Essa iconografia nos traz de novo o modelo tradicional da morte na cama, que já vimos precedentemente; o moribundo está deitado, cercado pelos amigos e parentes. Estão executando os ritos que já conhecemos bem; mas, acontece alguma coisa que perturba a simplicidade da cerimônia e que os assistentes não podem ver, um espetáculo reservado ao único agonizante: seres sobrenaturais invadem o quarto to e se apressam à cabeceira do moribundo. De um lado, a Trindade, a Virgem, toda uma corte celeste; do outro, satã e um exército de demônios monstruosos. A grande reunião que nos séculos XII e XIII ficava no final dos tempos, se faz, agora, no século VX, no quarto do doente mesmo. Deus, não aparece mais com os atributos de juiz, ele é o árbitro, ou a testemunha.
Há duas interpretações para esta cena: na primeira há uma luta cósmica entre as potências do bem e do mal que se disputam o agonizante; na outra Deus e sua corte estão lá para constatar como o agonizante se comporta durante a prova que lhe é proposta antes de seu último suspiro e que vai determinar seu destino para a Eternidade. Essa prova consiste em uma última tentação: O agonizante verá sua vida inteira tal como está contida no “Grande Livro”: sua atitude, no relâmpago desse momento fugitivo, apagará de uma só vez os pecados de sua vida toda, se ele repele a tentação, a vaidade, ou, ao contrário, anulará todas as boas ações se cede a ela.
A iconografia das “Artes Moriendi” reúne no mesmo cenário, a segurança do rito coletivo e a inquietação de uma interrogação pessoal. Além disso, se pode notar uma relação cada vez mais estreita entre a morte e a biografia de cada vida particular.
O ritual da morte na cama começa a Ter a partir do final da Idade Média, uma caráter dramático, com uma carga de emoção que não tinha antes; podemos notar também, que esta evolução reforçou o papel do próprio agonizante nas cerimônias de sua própria morte.
Ao lado das “Artes Moriendi”, aparece um outro fenômeno: a aparição do cadáver na Arte e na Literatura.
O “transido”
É assim que se chamavam os cadáveres em decomposição.
A representação das “danças macabras” por exemplo, é limitada a algumas regiões, como o leste da França ou a Alemanha ocidental. Ela é excepcional na Itália ou na Espanha.
Pode-se reconhecer neste horror à morte, o sinal do amor à vida. A morte feia, a decomposição do corpo são temas familiares da poesia dos séculos XV e XVI. A decomposição do corpo é o sinal do fracasso do homem e é, sem dúvida, o sentido profundo do cacabro. É um fenômeno novo e original.
As sepulturas
Paralelamente, assistimos pouco a pouco a uma individualização das sepulturas.
Nas antigüidade, as inscrições funerárias são inumeráveis. São ainda numerosas no início da era Cristã. Elas significam o desejo de conservar a identidade e a memória do desaparecido. Em torno do século V, se tornam mais raras e, mais ou menos rapidamente, segundo os lugares, desaparecem: as sepulturas tornam-se anônimas. Depois, a partir do século XII encontra-se de novo inscrições, Elas reaparecem em primeiro lugar, nos túmulos de personagens ilustres; no século XIII tornam-se mais freqüentes. Com a inscrição reaparece também a efígie. A arte funerária evolui na direção de uma maior personalização, até o início do século XVI. O falecido pode ser representado duas vezes no seu túmulo: em “jacente”e em “rezador”. Nos séculos XVI, XVII, e XVIII placas murais são freqüentemente apostas nas paredes das igrejas para individualizar o lugar da sepultura. Além disso, os defuntos previam dentro dos seus testamentos, serviços religiosos perpétuos para a salvação de sua alma. O estudo dos túmulos confirma o que já sabíamos com os “juízos finais”, as artes moriendi” e os temas macabros: uma relação anteriormente desconhecida estabelece-se entre a morte de cada um e a consciência que ele adquiria de sua individualidade. O homem ocidental rico, poderoso, ou instruído se reconhece na sua morte, Ele descobriu a morte ele mesmo, individualizada.