Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
O mercantilismo que predominou nas relações econômicas XV e XVIII, penetrou fundo no Brasil colônia e dirigiu os rumos da economia brasileira nos primeiros séculos após a colonização. O objetivo comum das diversas tendências do mercantilismo era o excedente de produção exportável para gerar recursos em forma de moeda corrente sob a tutela inflexível da metrópole.
O índio e o negro representaram, cada um, em diferentes etapas, o elemento base da colonização do Brasil pelo branco europeu.
As relações sócio-políticas que predominam até o final do século XVII tiveram como palco o engenho e ator principal o “senhor de engenho”.
Muito antes de começarem as primeiras práticas médicas na casa grande do senhor e na senzala dos escravos, os Tupiniquim que pertenciam a grande família Tupinambá, já dominavam os elementos que a natureza oferecia para a manutenção da saúde.
Cada um deles, o índio, o preto e o branco, fazendo uso dos seus conhecimentos para interferir no equilíbrio dos binômio saúde/doença e vida/morte, deixou como herança, nos brasileiros de hoje, a mesclagem de atitudes que marcam profundamente os nossos hábitos e relação a saúde e a doença.
Parafraseando Gilberto Freyre, é certo que o Brasil se gripou, hansenizou, varilizou, tuberculizou e se sifilizou antes de se civilizar.
Como o procedimento das expedições exploradoras, principalmente após a criação das Capitanias Hereditárias por D. João III, chegaram ao Brasil colônia os primeiros cirurgiões-barbeiros, os boticários e seus aprendizes. Começam a lancetar, sangrar, cortar e receitar, mas rapidamente adotam as práticas/indígenas, menos agressivas e mais resolutivas, principalmente com a utilização da flora medicina natural. Estes primeiros profissionais de saúde foram, alguns deles, acusados de judaísmo pelo “Santo Ofício ás Partes do Brasil” em fins do século XVI, abrindo o caminho para a dominação da prática médica pelos padres-médicos.
Com a vinda dos jesuitas na expedição de Tomé de Souza, em 1549, a prática médica no Brasil colônia reproduzirá o que se passou na Europa medieval com o monopólio do exercício médico dos religiosos.
Este período é caracterizado pelo aparecimento das santas casas, iniciando a prática da hospitalização, com a Santa Casa de Santos, fundada por Brás Cubas, em 1543.
Foi d.Leonor, esposa de D. João II, com a ajuda de frei Miguel Contreiras, que fundou a Irmandade de Misericórdia de Lisboa e a espalhou pelo mundo lusitano. A finalidade desta irmandade está contida no primeiro capítulo do Compromisso de 1551 da Irmandade da Santos: “desta Santa Confraria e Irmandade é cumprir as obras de Misericórdia e espirituais – 1) Ensinar aos pobres; 2) Dar bons conselhos; 3) Castigar os que erram; 4) Consolar os penitentes desconsolados; 5) Perdoar a quem nos criou; 6) Sofrer injúria com paciência; 7) Rogar pelos vivos e pelos mortos”.
Nestas normas só se fala dos médicos uma vez. Isto é explicado pelo fato de praticamente não existirem médicos com educação formal no Brasil colônia.
A figura mais importante era a de provedor das santas casas, que era ocupado por políticos e militares. As regalias oferecidas pelo poder ao cargo de provedor deveriam ser enormes para justificar, em 1651, a atitude do paulista José Ortiz de Camargo de recusar o posto de juiz da vila para não renunciar ao título de provedor da misericórdia. Ainda hoje, nas santas casa do Brasil, o cargo de provedor é cobiçado e, certamente, não é pela virtude de fazer bem à saúde da comunidade…
Estas santas casas do Brasil colônia não tinha o sentido dos atuais hospitais. Elas funcionavam, a principio como depósitos de doentes que não tinham qualquer tipo de assistência médica.
Posteriormente, ocorreram importantes modificações na estrutura administrativa, iniciando as cobranças do responsáveis pelos doentes em forma de “doações” como alternativa de atenuar os custos ela manutenção e pagamentos dos médicos.
O jesuíta-médico começou a observar copiar receitar o conhecimento adquirido da medicina indígena. Fez identificação de dezenas de ervas, exportando-as para a Europa, onde foram, posteriormente, incorporadas à farmacopéia mundial.
A fiscalização da prática médica e da comercialização das drogas conhecidas eram feitas nos três primeiros séculos de colonização, através dos delegados ou comissários do físico-mor e do cirurgião-mor do Reino até 1782, quando o governo de D. Maria I formou a junta do Pronto-Medicato com sede em Lisboa e representantes no Brasil.
A ocupação do Nordeste pelos holandeses, apesar de nada ter contribuído para a melhora da saúde da população, proporcionou a vinda de famosos pintores, escultores, cientistas, astrônomos e médicos com o objetivo de estudar a nova terra.
Por solicitação do Princípe Maurício de Nassau, representante da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, vieram dois cientistas que marcaram uma época na história da Medicina do Brasil colônia: Jorge Marcgrave e Guilherme Piso.
Jorge Marcgrave (1610-1660) escreveu a Historia Naturais Brasiliae em 1648, distribuído em oito livros: os três primeiros sobre as plantas, o quarto dos peixes, o quinto das aves, o sexto dos quadrúpedes e serpentes, o sétimo dos insetos e o oitavo da região e de seus habitantes. No livro das plantas encontramos descrições detalhadas de dezenas de espécies e, entre elas, o acaiaba ou acaiú ou caju, mamoeira ou papay ou mamão, guayaba ou goiaba e do ingá. No livro oitavo, relacionava dezenas de palavras indígenas baseado no livro do padre José de Anchieta e faz importantes descrição antropológica dos indígenas.
Guilherme Piso nasceu em Leyden (Holanda), em 1611 e diplomou-se em Medicina na cidade de de Caen (França) em 1633. Ele chegou ao Brasil em 1637, assumindo a chefia dos serviços médicos da Companhia das Índias Ocidentais,
Piso permaneceu em Pernambuco sete anos e dutante este período coletou material e fez admiráveis observações médicas que culminaram com as maiores e mais importantes obras literárias médicas-botânica-antropológica do Brasil” e “História Natural e Médica da Índia Ocidental”, editadas em 1648 em Amsterdan ( Holanda).
A obra do Piso é dividida em quatro livros: o primeiro trata dos ares , água e lugares; o segundo das doenças endêmicas; o terceiro dos venenos e seus antídotos e o quarto das ervas detalhadas de cento e dez tipos diferentes.
No segundo livro, onde Piso descreve as doenças endêmicas com incrível precisão, como a malária, verminose, raiva, gastroenterite , corrimento vaginal, sífilis e hanseníase, parece estamos lendo sobre as condições de saúde do Brasil do século XX. Ainda hoje temos milhões de brasileiros, adultos e crianças, que são vítimas das mesmas doenças descritas por Guilherme Piso no século XVII.
O livro de Piso funcionou como obstáculo à praticamente médica realizada por leigos, inclusive e principalmente pelos padres jesuítas, que adotavam fórmulas mágicas como tratamento para todas as doenças, desde o “cozimento para a virgindade perdida” do irmão Boticário Manuel de Carvalho e interferência direta ordenada por D. Sebastião Monteiro, em 1707, orientando como os médicos e cirurgiões deveriam tratar os doentes que estivessem em dia com as obrigações religiosas.
Além de Piso exerciam a Medicina outros médicos, alguns judeus fugidos das absurdas acusações da contra-reforma promovida pela Igreja Católica na Europa, no Hospital de Fortes de São Jorge em Recife.
Sem dúvida que foi nesse hospital que o médico holandês tomou conhecimento da Medicina indígena e comprovou a eficácia em relação e Medicina européia.
Guilherme Piso coloca por terra a possível dúvida da sifilização do Brasil pelo europeu e não deixa margem para questionamento de que a sífilis foi introduzida entre os indígenas pelo colonizador.
O nosso genial Gregório de Matos em seu temidos versos, faz completa descrição das doenças venéreas e indica nominalmente os doentes.
O grande professor de Piso foi o pajé com a sua sabedoria milenar. Em diversas ocasiões no seu livro é assinalada a superioridade da medicação indígena em relação a européia, como a contida no Livro Segundo, onde afirma: “… os índios prescidem de laboratórios, sempre tem a mão sucos verdes e frescos de ervas. Engeitam os remédios composto de vários ingredientes, preferem os mais simples”. Com mais de trezentos anos depois, Goodman e Gilman, na edição de 1975, afirmam que a utilização de misturas medicamentosas freqüentemente complicam a terapêutica.
Não resta dúvida que o espírito crítico de Piso ao comparar algumas terapêuticas do século XVII com Medicina indígena, foi francamente favorável a Segunda. Existem fartas documentações de alguns desses preparados da Medicina européia que incluiam na mistura do osso do crânio de homem morto em acidente, pó de múmia e fezes humanas.
Indiscutivelmente atual é o depoimento de Piso em relação ao genocídio indígena: “Outrora, antes de conhecerem os lusitanos, eram numerosos e quase infinitos, e as aldeias por toda a parte eram tantas que os mais entendidos exploradores das Índias duvidaram se haveria região no mundo mais povoada que o Brasil. Agora, porém, estão reduzidos a pequeno número, pois pela crueldade dos lusitanos, uns foram quase totalmente exterminados, outros arrastados a mísera escravidão, outros obrigados a salvar-se fugindo e ocultando-se no interior do continente”.
Só com a vinda da família real português para o Brasil em 1808 é que começaram a surgir as primeiras academias médico-cirúrgicas. Mesmo assim os médicos formados aqui através da licença dada pelo cirurgião-mor do Reino. Esta dependência foi rompida em 1826 por decreto de D. Pedro I em cerimônia imortalizada em quadro de Porto Alegre, hoje pertencente ao acervo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A figura exponencial desta fase foi o brasileiro José Correia Picanço (1745-1824), que exerceu as funções de cirurgião-mor do Reino e primeiro cirurgião da Câmara. Fez os seus estudos em Lisboa e aperfeiçoamento em Paris. Picanço foi o grande incentivador da primeira escola cirúrgica da Bahia.
Em 1871, teve na Faculdade de Medicina do Brasil, no Rio de Janeiro, o primeiro movimento grevista por melhores condições e ensino. As relações discentes-docente se deterioraram a ponto do relator da Memória Histórica ( relatório anual dos acontecimentos acadêmicos) encerrar o seu trabalho assim: “Entrego este trabalho no qual descrevo a decadência do ensino, que implica na decadência da Pátria”.
Continuamos vivendo com os mesmos problemas em 1986…