Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
A passagem do sistema mercantil-escravista das civilizações regionais para o feudal, politicamente descentralizado e de economia predominantemente agrária, em nada modificou a vinda e o sofrimento do camponês, que constituía a imensa base da pirâmide social, seguido em ordem crescente de importância pelos artesãos, os burgueses, os cavaleiros e a nobreza, todos eles devendo obediência e lealdade ao Papa.
A vida dos camponeses na Idade Média pode se compreendida a partir da pequena canção popular da época: “Se ele tiver ganso ou galinha gorda,/ Bolo de farinha de trigo em seu armário,/ Tudo isto terá de ser do Senhor. “Esta insustentável situação de cumplicidade da Igreja com os senhores feudais culminou com o questionamento público da autoridade do Papa provocado por Martinho Lutero em 1517, quando afixou as suas 95 teses nas portas da Igreja de Wittemberg. Foi o estopim para o grande cisma da Igreja Católica e contribuiu para o aparecimento sócio-políticas.
Com o poder econômico concentrado nas mãos da burguesia ficou fácil a sua ascensão sócio-política. Começou efetivamente a preocupação pela segurança da saúde desta burguesia, agora importante no estrato social, e com ela todas as facilidades para o surgimento do enorme progresso técnico-científico que a Medicina alcançou no período moderno, porém voltado quase exclusivamente para a atenção a saúde do grupo social em ascensão e detendor do poder econômico.
O descobrimento das Américas e do caminho marítimo para as Índias, a expansão das atividades comerciais, a formação dos Estados Nacionais, a difusão das formações corporativistas, a expansão do sistema bancário e os novos homens ricos, como conjunto heterogêneo, contribuíram para a busca de novos conhecimentos e a proclamação da independência da ciência em relação à filosofia e à teologia. A atitude crítica brota e floresce com Francis Bacon, Galileu Galilei e René Descartes.
O discurso do Método de Descartes é o prefácio do pensamento moderno. A sua primeira frase já tem muito o que se pensar: “O bom senso é a coisa mais repartida deste mundo (…)”.
Todas as obras dos filósofos grego são redescobertas, inclusive as de Hipócrates e Galeno, e traduzidas. O homem e as suas criações voltam a ser centro das relações.
A anatomia tem o seu renascimento no século XVI. A dissecção de cadáveres já era considerada legal em Paris no ano de 1407 e o seu ensino produz fantástica descobertas dos segredos do corpo humano. O entusiasmo é tão grande que atinge a Arte, com Leonardo da Vinci fazendo as suas pranchas de anatomia com tamanha perfeição, que são insubstituível até hoje.
Porém, o grande e memóravel gênio de André Versálio (1514-1564) com o seu livro Humani corporis fabrica redimenciona anatomia e inicia a sistematização d seu conhecimento. É provável que os alunos de Versálio na Universidade de Bolonha tenha tido melhor conhecimento de anatomia que os nossos estudantes de Medicina, que aprendem toda a anatomia em quatro meses…
Deram continuidade aos estudos de Versálio, Realdo Colombo, Gabriel Falópio e Jerônimo Fabrici, este último considerado o precursor da embriologia. Entre os alunos de Versálio esta o inglês William Harley, que mais tarde se notabilizaria pela descoberta da circulação do sangue e Bartolomeu Estáquio que se tornou famoso pelos seus estudos da anatomia do ouvido e da descrição da existência das condutos que comunicam o ouvido médio com a rinofaringe, conhecido até hoje como as trompas de Eustáquio.
Começa, ao mesmo tempo, a preocupação racional das determinantes físicas das doenças. Tudo, em princípio, deve ter uma explicação racional e coerente para todos possam entender. Este estopim é dado por Nicolau Fracastoro (1478-1540). Lutando contra a idéia da geração expontânea e contra a corrupção do ar, Fracastoro publica, em 1530 “Sifilide ou morbo gálio”e lança as bases do contágio para a explicação da origem das doenças. Esta intuição d Fracastoro da existência de germens patogênicos que causariam as doenças só seriam confirmada com o aparecimento do microscópio e da histologia.
Este imensurável progresso do estudo da microestrutura do corpo a histologia – constituiu o primeiro corte epistomológico da Medicina e seria concretizado pelos trabalhos de Mercelo Malpighi (1628-1694). Finalmente, a teoria de Demócrito (460-360 a.C.) seria confirmada: “Tudo é formado de partículas indivisíveis e invisíveis, eternas e imutáveis”.
Nos trabalhos publicados por Malpighi é indiscutível a marcada influência mecanicista que dominava o pensamento da época e que se fundamentava nas proposições lançadas por Bacon, Descartes e Galileu. Noseu principal trabalho Opera omnia, Malpighi afirma: “Desse modo, as máquinas do nosso corpo, que são a base da Medicina, são perfeitamente cognoscíveis pelo intelecto humano, uma vez que são compostas de cordas, filamentos, traves, tecidos, fluídos que circulam, cisternas e canais (…) Examinando as conclusões, auxiliado pelo raciocínio pode compreender o modo pelo qual a natureza opera (…)”, Esta afirmação em nada é diferente da escrita por Galileu: “A natureza está escrita e símbolos matemáticos” e da de Bacon: “Deve chegar-se a uma separação e uma divisão dos corpos, não certamente, pelo uso do fogo, mas pelo raciocínio e indução que trazem consigo a verdade, com a ajuda da experimentação (…)”.
Entre as conseqüências imediatas do desenvolvimento no conhecimento da anatomia é o enorme progresso que a cirurgia terá nos anos seguintes e incorporada definitivamente à Medicina.
A figura exponencial da cirurgia renascentista foi Ambroise Paré. Desenvolveu suas atividades no Hôtel de Dieu, um dos mais antigos hospitais do mundo, em Paris. Além de ter escrito vários livros com novas técnicas cirúrgicas, desenhou novos instrumentos para uso em cirurgias específicas, foi o primeiro a sistematizar o tratamento para as feridas provocadas por armas de fogo, até então consideradas envenenadas.
Esboça-se na Medicina o primeiro movimento para a ruptura completa com o misticismo através de Antônio Vallisnieri (1661-1730): “Nunca acreditar em observações feitas com o simples sentar de uma cátedra e o dogma da fé não deve interferir nas pesquisas cientificas”. Nomeado em 1700 catedrático da Universidade de Pádua, foi durante toda a sua vida acadêmica crítico constante do conhecimento da época e sempre se colocou na busca da verdade.
Surge preocupação com o social, isto é a relação do doente com o meio e aparecem as primeiras publicações sobre as doenças ligadas com a profissão. O exemplo historicamente marcante é a obra de Bernardino Ramazzini (1633-1714) “As doenças dos artesãos”, onde descreve cinquenta e três diferentes doenças profissionais. Este marco da Medicina do trabalho teve importância marcante na Inglaterra, cem anos depois, durante o início da industrialização, como o primeiro passo para a defesa da saúde do trabalhador.
No início do século XVII Lady Mary Wortley Montagu (1689-1762) introduziu na Inglaterra a técnica de valorização que ela observou na Turquia de retirar o soro de uma pústula de varíola para inocular em outra pessoas que depois de ter uma forma mais branda da doença, se tornará resistente. Mas foi somente em 1798 que Edward Jenner (1749-1823) fez sua célebre demonstração utilizando a mesma técnica, mas retirando da vacina do gado, obtendo o mesmo resultado sem qualquer complicação.
Estava definitivamente aberto o caminho para a busca das soluções das doenças endêmicas.