A MEDICINA NO TEMPO – Representando Nova Praxis Médica na América do Sul.

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

É muito difícil, talvez impossível, nas complexas relações nos nossos dias atuais, entender a práxis médica dissociada do concreto sócio-político-econômico-cultural.

Somente com esta compreensão será possível a formação e assimilação de um compromisso político, que fará a gerência da práxis médica voltada para o entendimento e transformação do binômio saúde/doença.

Este compromisso político nasce nos bancos escolares, na convivência universitária pluralista e na reflexão das contradições do binômio docente-discrente.

O professor de ciências da saúde pode e deve contribuir no alicerçamento desta visão crítica, atuando como mediador e norteador deste compromisso político, valorizando o ensino como troca de informação.

Por outro lado, para romper com a abstração e substitui-la pela ação, a reflexão crítica se impõe como alternativa na formação do compromisso político, que terá força suficiente para mudar os rumos da práxis médica na nossa sociedade. Só assim poderemos aceitar a ação médica, na qual o médico pode atuar sem corromper o Ideal e a Ética.

Depois de vivenciar a triste realidade médico-sanitária das periferias urbanas na América do Sul, o caminho mais curto para alcançar este compromisso político é a transformação da atual pratica médica, retirá-la da ortodoxia retrógrada individual e passá-la ao coletivo.

Porém, como será possível estabelecer esta relação crítica na nossa sociedade, onde a miséria absoluta convive coma tecnologia de ponta, como a tomografia  computadorizada, a ultrassonografia  e a medicina nuclear como intermediários da ação médica em pequena parcela da população, sem resultar em conflitos de difícil compreensão de serem superados?

Como se situaria a ação médica prestada e pelas empresas particulares de serviço médico, cujo objetivo primeiro é o lucro independente da qualidade? E a atividade médica exercida no parque industrial do Cone Sul, dominado em parte majoritária pelas multinacionais ávidas de exploração, onde a maioria absoluta não cumpre as normas de segurança do trabalho. Certamente que a ação médica nestes casos não está interessada na saúde do homem. O  médico coninvente atua como fiscal na produção, uma espécie de feitor dos tempos modernos. Nestas e em outras aberrações da ação médica como se situará a Ética Médica enquanto crítica do comportamento?

.Só será verdadeiramente possível ter um pensamento crítico da utilidade social da Medicina como Ciência, retirando o que lhe resta do seu discurso ingênuo e dando-lhe consciência de si e plena posse do seu instrumental conceptual. Isto porque é, indiscutivelmente, na relação do homem com o meio que vamos encontrar as determinantes do aparecimento e desaparecimento das doenças. Não levar em consideração este fato é apagar a própria consciência e estimular a alienação dos outros.

Esta reflexão crítica tem função fundamental na formação médica e contribui para evitar o fetichismo e as atitudes míticas que disvirtual a ação médica.

A práxis médica não deve agir a reboque da realidade, mas antecipar o futuro e criar esperanças na sua transformação como parte do compromisso atual da Medicina na História. Para tanto, é possível pensar a partir do processo histórico da ação médica ao longo dos séculos e questionar o papel do médico no contexto das relações social e como agente de transformação das sociedades.

O mundo atual vive profunda e acelerada transformação, que infelizmente não se produz de modo uniforme. É processada sob pressões intermitentes levando ao distanciamento maior que o geográfico entre os dois blocos: o Norte e o Sul.

É possível, hoje em qualquer cidade brasileira, ver nos enlatados americanos a prática médica do Norte, onde hospitais ricos e modernos são mostrados como palcos para médicos e enfermeiras gentis e imaculadamente vestidos, atuando como arquétipos de uma prática médica inadimissível na América do Sul como contexto próprio, onde a ordem deve ser exatamente a não hospitalização e a estruturação com o fortalecimento do atendimento primário da saúde.

Existe, sem dúvida, como fruto da pressão dos órgãos de classe conscientes das responsabilidades, uma relação coletiva de questionamento e mesmo de rejeição da imitação do modelo médico do Norte, posto em prática no Brasil e em outros países da América do Sul durante as últimas décadas, por ser sobejamente inadequado à nossa realidade, onde a subnutrição e as doenças infecto-contagiosas continuam, mais que nunca, sendo as principais determinantes do obituário infantil.

Não se trata somente de questão epistemológica, mas a Medicina como Ciência deve contribuir concretamente no processo de desenvolvimento para uma sociedade mais justa. Para isto é indispensável a formação nos países do Sul de novo pensamento crítico da práxis médica, que ligará indissolúvel e concretamente a Ciência Médica com a Ciência Social em sólida base teórica.

A História mostra que a ação médica sempre teve ligação com as determinantes sócio-econômico-político-cultural das sociedades ao longo do processo de evolução do Homem e de sua luta pela sobrevivência, porém sem o indispensável suporte teórico.

Provavelmente, até a concretização da Primeira Revolução, a Agropastoril do Neolítico, a ação médica esteve relacionada com as concepções míticas da realidade. A partir do processo de assentamento definitivo da Primeira Revolução e da consolidação das primeiras divisões da sociedade em maioria e minoria, exploradores, senhores e escravos, a ação médica, certamente, absorveu na sua praticidade diferentes formas de relacionamento com o objetivo de sua ação, com predomínio da diferenciação da atenção médica nas várias camadas sociais.

A comprovação inequívoca deste fato pode ser encontrado no código de Humurabi, elaborado durante o reinado de Hamurabi, Rei da Babilônia, entre os anos de 1728 – 1688 a.C., hoje em exposição no Museu do Louvre em Paris.

Neste Código, encontramos a sociedade hierarquizada em grupos sociais bem definidos e normas que regulamentavam dezenas de atividades civis, inclusive a atividade médica, com pagamento ou penalidades, de acordo com o grupo social específico. É particularmente ilustrativo o item 80 do Código de Hamurabi, onde lê-se:

  • 218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos de cidadão) uma incisão difícil com faca de bronze e causou a morte do awiloum ou abriu a nakkaptum (arco acima da sobrancelha) de um awiloum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awiloum: eles cortarõ a sua mão.
  • 219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de um muskenum (intermediário entre o awiloum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto.
  • 220 – Se ele abriu a nallaptum de um escravo com uma faca de bronze e destituiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço.

Esta realidade da ação médica diferenciada se estendeu ao longo do processo de desenvolvimento das sociedades e se consolidou na Segunda Revolução. A industrial, no século XVIII, onde a medicina começou a incorporar definitivamente em seu bojo a duvidosa preocupação pela saúde do Homem voltada para o aperfeiçoamento da produção industrial.

Esta realidade da ação médica diferenciada se estendeu ao longo do processo de desenvolvimento das sociedades e se consolidou na Segunda Revolução. A industrial do século XVIII, onde a medicina começou a incorporar definitivamente em seu bojo a duvidosa preocupação pela saúde do Homem voltada para o aperfeiçoamento da produção industrial.

Realmente, a partir do século XVIII o significado social da Medicina com a emergência do Capitalismo assumiu outra especificidade. As relações da Medicina nas sociedades estratificadas e em expansão industrial foram se tornando formais e consolidadas em base teórica nascidas nas escolas de medicina que se formavam rapidamente na Europa. A ação médica passou a participar da manutenção da força do trabalho e do controle de tesões sociais e mantendo, mais que nunca, na sua História a diferenciação no atendimento.

Porém, não podemos entender a ação médica nunca esteve tão distanciada do seu compromisso social enquanto Ciência. Para reverter esta tendência, a única opção concreta é a Ciência Médica participar em novas propostas para reestruturação da sociedade brasileira, consolidando a ação médica ao compromisso político.

Este compromisso político que valida a nova práxis médica, deve existir para que se elimine a diferenciação da ação médica nos estratos sociais, como primeiro instante da passagem da ação médica individual para a coletiva, entendendo-se como o resgate da cidadania de todos os brasileiros, onde a saúde é direito do cidadão e obrigação do Estado Moderno, como resultado das relações de direitos e deveres de ambos.

Para caracterizar este compromisso político, dentro da nova práxis médica, está implicitamente incluído:

  1. A consciência crítica do papel social da Medicina
  2. Reformulação geral das instituições médicas públicas e privada,
  3. Reestruturação das escolas de Medicina públicas e privadas com modificação dos currículos desatualizados e orientados para prática médica elitista e distanciada da nossa realidade de saúde pública, onde os acadêmicos aprendem mais rapidamente a fazer uma cesariana a um parto normal e a diagnósticar raras doenças cardíacas a malária,
  4. Análise das determinantes estruturas que interferem na produção das doenças,
  5. Ações básicas para a formação e manutenção da integração biopsiquica do cidadão na sua comunidade,
  6. Medidas profiláticas das doenças

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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