Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
O passar dos olhos no processo histórico que consolidou a Medicina como especialidade social trás à toma o esforço humano para:
- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das incontáveis formas e funções das partes do corpo humano;
- Estabelecer os parâmetros do normal e do patológico;
- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte;
- Manter aceso o conflito de competência com a religião.
A pulsão inata para desvendar o corpo, dotado de propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e clamar pelo prazer, pode ser considerada uma verdade fundamental tanto no espaço sagrado quanto no espaço profano das relações sociais.
No espaço profano, o observar empírico do ancestral mais distante iniciou, na medida visível dos sentidos natos, as comparações entre o próprio corpo e os dos outros animais. Por outro lado, essa observação jamais esteve desvinculada dos complexos sentimentos com o sagrado. Em muitas circunstâncias, ainda hoje, é impossível saber onde começa o sagrado e termina o profano.
Na malha dessas emoções interligando sagrado e profano, o antepassado remoto percebeu o quanto diferia dos membros do grupo, a carnalidade da pele, as batidas do coração, o calor do ar expirado e a putrefação da morte. As divergências físicas somaram-se ao confronto entre o real e o imaginário, representado pelas sensações do medo, pra-zer, coragem, amor e do ódio.
É lógico supor que os nossos antepassados remotos sabiam, através do conhecimento historicamente acumulado (CHA), que uma pancada na cabeça era capaz de matar ou imobilizar a caça ou o inimigo muito mais rápido. Esse primitivo elo entre forma e função pode ter alicerçado o primórdio da consciência do corpo ou da categorização segmentária corporal ¾ a integridade da cabeça como parte mais importante para a sobrevivência do que o dedo amputado ¾ está inserido na mesma textura da precoce observação do quanto os homens e as mulheres são semelhantes e, ao mesmo tempo, diferentes entre si.
Contudo, muito mais do que isto, a consciência do corpo transfor-mou-se, rapidamente, na consciência da vida e da morte. A dicotomia competitiva entre a vida, ligada ao sangue que coagula, e a morte, cercada do mal cheiro da putrefação do corpo, moldou o cortejo das relações socais com o objetivo de prolongar a vida e adiar a morte.
O especialista capaz de adiar a morte ou interromper a dor assumiu importância especial no seio comunitário primitivo.
A recusa da morte como o marco divisor nas relações sociais de competição e cooperação está representado pelo sepultamento ritualístico. A arqueologia sustenta que os neandertalenses, no paleolítico médio, há 400.000 anos, cuidavam dos feridos e enterraram os seus mortos.
As necessidades física e mental da espécie, ao longo de centenas de gerações, moldaram a nível genético, as incontáveis formas e funções do corpo humano para inibir a dor e aceitar o prazer. É transparente o contínuo frenesi para sentir, intensamente, o conforto físico e emocional. O ser é biológico e social; ele não existe sem as trocas e estas não seriam possíveis sem ele.
Nesse contexto, é impossível não pensar em processo muito mais interativo unindo a estrutura genética como o social ¾ a memória sócio -genética (MSG)¾ moldando o corpo humano ao longo de milhares de anos em torno da posse do território como garantia contra a fome e a sede, das liberdades de ir, vir, falar e explorar, do abrigo contra o frio e o calor (Botelho, 1993).
Todos fogem da dor e procuram o prazer. Conforto e desconforto são as chaves acionadoras da MSG. Os corpos vivos, dos espongiários aos mamíferos, são recobertos por tecidos especializados, em muitos milhões de anos, para reagir às agressões externas de natureza física, química ou biológica. A ontogênese, repetindo a filogênese, formou-se com a prioridade de enfrentar o sofrimento e receber, com harmonia, as sensações prazerosas.
Por outro lado, é evidente como a dor lacerante contribui para alterar as emoções, deter e amedrontar qualquer bicho.
As relações interpessoais, com ou sem ajuda da técnica, resultando prazerosas, são acatadas pela maioria. Sempre que o poder dominante insiste em limitá-las ocorre a resistência. A rebeldia contra as fronteiras artificiais, o clamor étnico, o sexo limitado, a incrível sedução pelas drogas proibidas, as revoluções milenaristas e a atual ordem internacional voltada para o verde estão contidas na mesma geometria.
A constância transmitida aos descendentes, no patrimônio genético, das mensagens comuns das memórias sócio-genéticas pessoais forma a memória sócio-genética coletiva (MSGC).
As MSGs são competentes para explicar não só os fantásticos dispositivos natos contra a dor que cobrem cada milímetro do corpo, mas também a própria organização social em torno da resistência pessoal e coletiva contra os que atentam contra os limites da suportabilidade.
Quando a morte advém, como antítese da vida, emudece a MSG, descolora o tegumento cutâneo, resfriando-o e tornando-o insensível ao pior dos tormentos: a dor. O movimento respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria existência e rejeita a morte refletida na carne indolor e desmemoriada.
Deste modo, a História da Medicina é uma parte importante do longo processo histórico da humanidade para escapar da dor, aumentar o prazer, prolongar a vida e fugir da morte a partir do desvendar do corpo em todas as dimensões do visível e do invisível.