Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Apesar de os estudos da anatomia e da fisiologia terem desvendado alguns aspectos importantes da forma e da função do SNC e do SNP rela-cionados à dor e ao prazer, estamos longe, muito longe de compreender a maior parte das dúvidas.
Uma das barreiras é a fantástica multiplicidade das formas, no ser vivente, gerando funções semelhantes. Apesar de os homens e as mulheres possuírem áreas anátomo‑funcionais semelhantes, relacionadas com a secreção dos opiáceos naturais, nunca se expressam igualmente.
As maneiras de sentir dor e prazer são infinitas. O produto final dessas sensações desagradáveis e prazerosas é modulado através dos compo-nentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e os intrínsecos (os padrões genéticos herdados na reprodução sexuada).
O estudo das mentalidades, em diferentes períodos, mostra um histérico repetir coletivo, a partir da ordem vinda de um ponto perdido na escala filogenética, atrás dos anseios fundamentais, ditados por uma categoria denominada neste ensaio de memória sócio‑genética (MSG). É traduzida na vida de relação, desde os tempos imemoriais na liberdade para buscar, mais e mais, o conforto físico e emocional (aqui compre-endido como a liberdade de ir e vir, de falar, de explorar e, sobretudo, a sede e a fome saciadas, o abrigo do calor e do frio) nunca resolvidos para a maior parte da humanidade.
Todos fogem da dor e procuram o prazer. A polaridade entre o conforto e o desconforto, sentidos no corpo, são as chaves acionadoras da MSG. Todas as relações interpessoais e com a natureza, com ou sem ajuda da técnica, que resultem prazerosas, são acatadas, sem esforço, pela maioria. Sempre que a ordem social insiste em limitá‑las, ocorre resistência. A rebeldia contra a falta da terra para cultivar, o sexo limitado, o alimento escasso e a incrível sedução pelas drogas proibidas são partes importantes do mesmo universo.
A constância transmitida aos descendentes, pela reprodução sexuada, dos pontos comuns das memórias sócio‑genéticas pessoais, for-ma a memória sócio‑genética coletiva (MSGC), herança do traço onto-genético comum.
As mensagens oral e escrita, estruturadas na ambigüidade objetivo‑subjetivo ou, sob certas leituras, do sagrado‑profano, trazendo a esperança de amenizar a dor , são sempre bem aceitas e festejadas pelas MSGs. Nenhum poder ordenador amparado pela força explícita conseguiu conter, apesar da brutal repressão nos porões da intolerância de todos os matizes, a expressão clara das MSGs.
A capacidade de convencimento, fazendo parte da idéia institucionalizada, assenta‑se, sobretudo, na história das representações, das ideologias e das mentalidades constituídas a partir do saber acumulado e sobre ele. Por essa razão, continua muito significativo, junto às massas populares, a sedução exercida na ação política, prometendo maior conforto.
O empenho do poder, propondo a mudança, não obtém resultados, quando toca, de modo inadequado, nas MSGs. O medo da dor e do desconforto continuam tão fortes quanto os mecanismos subjetivos, criados pela ficção, para atenuá‑los ou confundi‑los. É possível compreender, nesse ponto, a fantástica relação entre a dor e o prazer com o nascer da consciência, diferenciando o cérebro da mente, traduzindo uma etapa significativa da corrente, entrelaçando a natureza, o social e a História nas MSGs.
O castigo, necessariamente carregado de sofrimento doloroso, é imposto pelo homem ou pela divindade, nos espaços sagrado e profano, para gerar obediência. O medo, advindo da ameaça da dor física, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos violentados, do permitido e do proibido.
O arcabouço da dor física na MSG, transposto para o sofrimento coletivo, moldou a dor histórica na MSGC. É o grito humano pela vida, pela liberdade, pela saúde, pelo conforto, pela dignidade, pela paz e pela ruptura das correntes que prendem o homem à tirania dos outros homens e dos deuses. É a razão por que sempre existiu a procura de uma ética na conduta humana, ligada à sobrevivência comum, registrada nos códigos de postura.
O sagrado ficcional como mecanismo inato para compensar a dor, ativando os mecanismos endógenos da analgesia, encontrou resposta no brado dos espoliados. O exercício do poder, impondo o castigo doloroso aos resistentes, resultou nos princípios da dinâmica social, onde a coesão e a dissolução, em equilíbrio dinâmico, são dependentes, respectivamente, do predomínio do conforto e da dor, em determinado segmento da sociedade. Os contestadores, compreendidos como agentes da dissolu-ção ou pecadores, são punidos com o pior dos castigos: a exclusão pela enfermidade, mensageira do sofrimento e da morte.
Os curadores assumiram um papel de realce. Eram capazes de atenuar a dor e adiar a morte temida. Os livros sagrados, referência maior da ambigüidade sagrado-profana, são claros quanto ao destaque do curador na ordem do espaço ocupado. Os mais antigos registros escritos são contundentes. Os assírios e babilônicos entendiam o pecador como o rebelde possesso da anti-divindade. As palavras sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos. Os atos coletivos, empregados para modificar a realidade, têm de estar, obrigatoriamente, assentados em pressupostos teóricos, ligados às MSGs. A coerência ao ato apreendido passa nas pontes que interligam o sistema nervoso central e o sistema nervoso periférico.
Quem está vendo a dor da fome, estampada no rosto de penúria dos entes queridos, ou sentindo a ferida não cicatrizada, está sempre pronto para seguir qualquer proposta para finalizar o sofrimento. De modo semelhante, quando as aspirações são satisfeitas, a tendência é afrouxar a crítica.
Os anseios dos homens e das mulheres, presentes nas MSGs, para reforçar o conforto, são um dos fatores que provocam o movimento social. Quando as idéias são desarmônicas com o anseio, nem mesmo os mais brutais meios de repressão conseguem mantê‑las ativas.
O poder ordenador, mesmo sem saber por quê, percebeu o valor dos registros sócio-genéticos. Os seus agentes, os políticos vestidos de cura-dores, investem na conquista dos grupos sociais, através das mensagens repletas de dádivas que tocam profundamente as MSGs: as variações simbólicas da sexualidade, da terra e do alimento.