Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
O domínio militar holandês em Pernambuco no século XVII, possivilitou o encontro de Maurício de Nassau, o administrador intelectual e o médico Guilherme Piso em terras brasileiras.
Desse relacionamento, foi produzido pelo médico holandês, com o apoio financeiro do administrador, as maiores e mais importantes obras literárias médica-botânica-antropológica do Brasil seiscentista, ‘História natural do Brasil’e História Natural e Médica da Índia Ocidental’.
Piso nasceu em Leyden (Holanda) em 1611 e diplomou-se em Medicina em Caen (França) em 1633. Ele chegou ao Brasil em 1637 e ocupou a chefia dos serviços Médicos das Índias Ocidentais.
Permaneceu em Pernambuco 7 anos e durante este período coletou material e fez inigualável observações que culminaram na elaboração dos seus livros. Retornou à Holanda em 1644, tendo clinicado em Amsterdam até 1678, quando morreu.
Após a conquista holandesa das Capitanias de Pernambuco, Itamaraçá, Paraíba e Rio Grande do Norte, com o conseqüente fortalecimento militar do conquistador, foram iniciados, rapidamente, os acordos entre os proprietários da terra e o vencedor.
Em parte, a rapidez dessa união, tenha se dado pela impossibilidade humana e material de enfrentar o Exército holandês, já que não podiam contar com qualquer auxílio empenhada na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) com a França. Aos flamengos interessava, acima de tudo, aumentar a produção de açúcar para repor os gastos que tinham tido coma guerra em terra Brasileiras.
Na condição de conquistador, chega, em 1637, o almirante Maurício de Nassau, Com a ajuda dos conquistadores transforma a sua administração na mais próspera de todo o período holandês no Brasil e com os fabulosos lucros da retomada da produção açucareira, foi possível mandar buscar na metrópole os homens das artes e ofícios. Foram nessas condições sócio-econômica-política que o médico Guilherme Piso chegou ao Brasil e assumiu a chefia dos Serviços Médicos das Índias Ocidentais.
De imediato, Piso constatou que a prática médica era exercida por leigos não capacitados, Propôs ao governador a reforma e ampliação do Hospital do Forte de São Jorge, no Recife, objetivando a centralização dos cuidados médicos e a sua melhor administração.
O fato observado por Piso não era novo. Já em 1521, d. Manuel, informado da má qualidade prática médica nas colônias tenta disciplinar com o ‘Regimento do Físico-Mor’. Esta normatização atingiu diretamente os padres da Companhia de Jesus, As farmácias jesuítas eram famosas pelas suas fórmulas mágicas para resolver todos os problemas de saúde, desde o ‘cozimento para a virgindade perdida’ do Irmão Boticário Manoel de Carvalho até a interferência direta ordenada por d. Sebastião Monteiro, em 1707, orientando como os médicos e cirurgiões deveriam tratar os doentes que não se confessassem e comungassem.
Com a nova diretriz dada por Piso, foi possível reunir no Hospital do Forte de São Jorge vários médicos e cirurgiões, alguns judeus fugidos das absurdas acusações da contra-reforma promovida pela Igreja Católica na Europa.
Foi, sem dúvida, nesse hospital que Guilherme Piso tomou conhecimento da medicina indígena e inteligentemente comprovou que ela curava mais que as amputações indicadas pelos cirurgiões.
Resgatar o conhecimento médico historicamente acumulado e aplicar na melhoria da saúde.
No seu livro, ‘História Natural do Brasil’ ela fez a descrição das gastroenterites e descreve quadro clínico, que hoje, nos faz supor se trata de infecção intestinal. No capítulo ‘Das lombrigas’, identifica corretamente o Ascaris lumbricoides e o Enterobius vermiculares, com o quadro clínico bem definido e a afirmação que poderiam ser encontradas no estômago, vesícula biliar e no coração, caracterizando de forma incontestável que realizava necrópsias em época que a sua prática era temida mesmo na Europa.
A Piso cabe a primazia de Ter relacionado a cirrose ao alcoolismo e a má nutrição. A descrição dele foi anterior em quase 200 anos da feita por Laennec em 1826. Como tratamento prescrevia dieta de alimentos e bebidas frescas, diuréticos vegetais e paracentece. No seu livro é claro: ‘Na dissecção dos cadáveres, sobretudo de doentes que morreram de anasarca ou ascite, às vezes se encontra no fígado de cortirante e branco, abrindo em fendas, sem vestígio sequer de sangue’.
Ele coloca por terra a dúvida da sifilização do Brasil pelo europeu. Na referência às doenças femininas, afirma que mais tarde metade das holandesas e judias sofriam de corrimento vaginal e doenças venérias e que as índias eram mais sadias que as brancas.
Esse tema tinha grande importância social e o genial Gregório de Matos, que viveu no mesmo século, em seus temidos versos, fez completo relato das doenças venérias, indicando nominalmente o portador da doença.
Entre as maravilhosas e precisas descrições médicas feitas pelo médico holandês, está a do escorbuto, comum entre os marujos seiscentista. Ele recomendava o uso, em grande quantidade, do suco de limão e maracujá.
Além das doenças com os respectivos quadros clínicos e tratamento, Piso no seu ‘História Natural do Brasil’, fez a classificação de dezenas de plantas e animais, todas elas acompanhadas de desenhos preciosos e detalhados.
A simplicidade do raciocínio científico adotado por ele, faz com que além de continuarem atuais, sob alguns aspectos, pareçam absurdas algumas recomendações de médicos do mesmo período, que prescreviam ratos domésticos com outro em pó puríssimo.
O grande professor de Guilherme Piso foi o pajé com a sua sabedoria e conhecimento acumulados ao longo dos séculos. Ele reconhece em diversas passagens do seu livro, a superioridade da medicação indígena sobre a européia e dá o seu testemunho: ‘Os índios prescindem de laboratórios, a demais, sempre tem a mão sucos verdes e frescos de ervas. Enjeitam os remédios compostos de vários ingredientes, preferem os mais simples’.
Não resta dúvida de que os espírito crítico de Piso na comparação de algumas das fórmulas terapêuticas européias do século XVII que incluíam osso de crânio de homens mortos em acidentes, fezes humanas e pó de múmia com a simplicidade dos remédios utilizados pelos índios e principalmente pela qualidade de vida destes, não deixou dúvida quanto ao julgamento sensato da supremacia da medicina indígena.
Inquestionavelmente, verdadeiro e atual é o depoimento histórico de Piso em relação ao gencídio indígena: ‘Outrora, antes de conhecerem os lusitanos, eram numerosos e quase indefinitos; e as aldeias por toda a parte, eram tantas que os mais, entendidos exploradores das Índias duvidaram se haveria região do mundo mais povoada que o Brasil. Agora, porém estão reduzidos a pequenos número, pois pela crueldade dos lusitanos uns foram quase totalmente exterminados, outros arrastados à mísera escravidão, outros obrigados a salvar-se fugindo e ocultando-se no interior do continente’.
É evidente que seria absurdo pensar em retornar à prática médica indígena com exclusividade, porém é necessário fazer uma reflexão do que representa um paciente queimado pela radiação da bomba de cobalto ou pelos efeitos secundários da quimioterapia anticancerosa, mal indicadas freqüentemente não alteram a sobrevivência, mas certamente pioram a qualidade da pouca vida que restará ao paciente, sem falar das questões éticas e moral envolvidas.
Torna-se necessário questionar omaniqueísmo cego da medicina ocidental consumista e busca na pesquisa, alternativa para o desconhecimento de inúmeros aspectos do binômio saúde/doença.