Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Os estudos do genoma foram marcados por transformações tão profundas e complexas nas práticas médicas que se torna difícil compreender como em pouco mais de cinquenta anos, a longevidade humana, em certos países, foi aumentada em mais de vinte anos.
O maior destaque que dominou, completamente, a segunda metade do século vinte foi a genética, A partir da descoberta da cadeia espiralada do ADN, em 1953, por Watson e Crick, que alcançou direta e indiretamente o estudo do genoma humano, inseminação artificial, antibióticos, métodos anticoncepcionais, métodos terapêuticos experimentais, virologia, imunologia, cancerologia, radioterapia, quimioterapia, vacinas, que forçaram outras mudanças e novas leituras dos códigos de ética médica.
Ao mesmo tempo, é impossível pensar o século 20 sem relembrar os horrores das duas guerras mundiais, as propostas do eugenismo e os campos de concentrações dos nazistas. Em pouco menos de cinco anos, em alguns países, as raízes históricas da ética médica foram destruídas junto com as experimentações em seres humanos, a mortalidade proporcionada pelas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, aumento da quantidade de pessoas em condições de miséria absoluta, vertiginoso crescimento industrial, gerando milhões de trabalhadores trabalhando em condições insalubres.
Os vencedores da II Guerra Mundial impactados sob esses horrores praticados pelos vencidos, alguns realizados com a participação de médicos, em novembro de 1946, em Nuremberg, instalaram o Tribunal Militar Internacional, onde a maior parte dos oficiais alemães capturados pelas nações aliadas vencedoras foi condenada à morte, prisão perpétua e outras penas.
A escolha da cidade de Nuremberg não foi um ato isolado, ao contrário, estava mesclado de grande valor simbólico, já que naquela importante cidade alemã ocorreram festividades apoteóticas ao nazismo.
Nesse contexto nasceu o Código de Nuremberg com a humanidade retornando o caminho da valorização da dignidade humana e da reflexão ética sobre a vida em torno das pesquisas em seres humanos.
Por outro lado, infelizmente, o Código de Nuremberg, único no gênero na história da humanidade, com enorme simbolismo na ética médica, inicialmente, não tiveram valor de lei.
Os dez princípios do Código de Nuremberg:
- Consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial;
- O experimento deve trazer resultados benéficos à sociedade;
- O experimento deve ser baseado em resultados de experimental animal;
- O experimento não deve causar nenhum tipo de sofrimento ao sujeito da pesquisa;
- Nenhum experimento deve ser mantido se houver suspeição de poder determinar qualquer tipo de invalidez ou a morte no sujeito da pesquisa;
- O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância humanitária do problema que o pesquisador se propõe resolver;
- Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o sujeito da pesquisa de qualquer possibilidade, mesmo remota, de dano, invalidez e morte;
- O experimento deverá ser conduzido por pessoas cientificamente qualificadas;
- Durante o curso do experimento, o sujeito da pesquisa deve ter a plena liberdade de se retirar, caso ele sinta que há possibilidade de algum dano;
- Durante o curso do experimento, o pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos em qualquer estágio, se ele tiver razoáveis motivos para acreditar que a continuidade do experimento poderá causar dano, invalidez ou morte do sujeito da pesquisa.
O Código de Nuremberg somente passou a integrar as relações médico-pacientes, nas décadas de 1960 e 1970, por meio da Declaração de Hensinque I, redigida em 1964, pela 18ª Assembléia Médica Mundial, realizada na Finlândia.
– Declaração de Hensinque I
Na introdução é posta a responsabilidade do médico quanto a absoluta necessidade de atentar para as diferenças da pesquisa médica que tem como objetivo essencial o diagnóstico ou a terapia para um paciente, da pesquisa médica puramente científica e sem valor direto no diagnóstico e na terapia.
A estrutura teórica do documento se assenta no pressuposto de a missão do médico é resguardar a saúde do povo, para esse fim usará seu conhecimento e consciência.
Princípios básicos da Declaração de Hensinque I:
- A pesquisa clínica deve adaptar-se aos princípios morais e científicos que justifiquem a pesquisa médica e deve ser baseada em experiências de laboratório e com animais ou em outros fatos cientificamente determinados;
- A pesquisa clínica deve ser conduzida somente por pessoas cientificamente qualificadas e sob supervisão de outras igualmente preparadas;
- A pesquisa não pode ser legitimamente desenvolvida, a menos que a importância do objeto seja proporcional ao risco inerente à pessoa exposta;
- Todo projeto de pesquisa deve ser precedido de cuidadosa avaliação dos riscos inerentes, em comparação aos benefícios previsíveis para a pessoa exposta ou para ambos;
- Precaução especial deve ser tomada pelo médico ao realizar z pesquisa clínica na qual a personalidade da pessoa exposta é passível de ser alterada pelas drogas ou pelo procedimento experimental.
A pesquisa clínica combinada com o cuidado profissional:
- No tratamento da pessoa enferma, o médico deve ser livre para empregar novos métodos terapêuticos, se, em julgamento, eles oferecerem esperança de salvar uma vida, restabelecendo a saúde ou aliviando o sofrimento. Se possível, e de acordo com a psicologia do doente, o médico deve obter o livre consentimento, depois de lhe ter sido dada uma explicação completa. Em caso de incapacidade legal, o consentimento deve ser obtido do responsável legal; em caso de incapacidade física, a autorização do responsável legal substitui a do paciente;
- O médico deve combinar a pesquisa clínica com o cuidado profissional, desde que o objetivo represente a aquisição de uma descoberta médica, apenas na extensão em que a pesquisa clínica é justificada pelo seu valor terapêutico para o pciente/
A pesquisa clínica não terapêutica:
- Na aplicação puramente científica da pesquisa clínica, desenvolvida num ser humano, é dever do médico tornar-se protetor da vida e da saúde do paciente objeto da pesquisa;
- A natureza, o propósito e o risco da pesquisa clínica devem ser explicados pelo médico ao paciente;
- A pesquisa clínica em um ser humano não pode ser empreendida sem seu livre consentimento, depois de totalmente esclarecido; se legalmente incapaz, deve ser obtido o consentimento do responsável legal;
- O paciente da pesquisa clínica deve estar em estado mental, físico e legal que o habilite a exercer plenamente seu poder de decisão;
- O consentimento, como é norma, deve ser dado por escrito. Entretanto, a responsabilidade da pesquisa clínica é sempre do pesquisador, nunca recai sobre o paciente, mesmo depois de ter sido obtido seu consentimento;
- O investigador deve respeitar o direito de cada indivíduo de resguardar sua integridade pessoal, especialmente, se o paciente está em relação de dependência do investigador;
- Em qualquer momento, no decorrer da pesquisa clínica, o paciente ou seu responsável serão livres para cancelar a autorização de prosseguimento da pesquisa. O investigador ou a equipe da investigação devem interromper a pesquisa quando, em julgamento pessoal ou da equipe, seja a mesma prejudicial ao indivíduo.
Declaração de Helsinque II ou Declaração de Tóquio
A primeira revisão da Declaração de Hensinque foi realizada por ocasião da 29ª. Assembléia Mundial dos Médicos, em Tóquio, em 1975.
Na introdução, além do conjunto constante na Declaração de Helsinque I,estava presente a preocupação ambiental e com os animais envolvidos na pesquisa.
Foram acrescidos:
- Aspectos legais da pesquisa, na pesquisa terapêutica e na pesquisa biomédica puramente científica
- Formalização dos protocolos experimentais;
- Esses protocolos devem ser analisados por uma comissão independente, para emitir parecer, orientar e fiscalizar;
- Critérios na publicação dos resultados da pesquisa;
- Absoluta primazia ao indivíduo sobre a sociedade.
Declaração de Helsinque III
Redigida de acordo com a segunda revisão, na 35ª Assembléia Mundial de Médicos, em Veneza, em 1983.
Conservando a Introdução da anterior, segue na mesma construção, incluindo sempre que possível o consentimento de menores de idade.
Tanto na Declaração de Helsinki II quanto na Declaração de Helsinki III estava norteado o indicativo para a criação dos Comitês de Ética, que deveriam:
– Manter estrutura administrativa independente para investigar projetos que envolvam seres humanos direta ou indiretamente;
– Aprovar ou desaprovar projetos de pesquisas;
– Supervisionar e acompanhar os projetos de pesquisas aprovados;
Organismos como Associação Médica Mundial (AMM), Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceram metas para ampliar os Comitês de Ética em todo o mundo em três etapas:
– Período da criação;
– Período de expansão;
– Período de estabilização.
Esses comitês de ética, pelos menos os que estão nas fases de expansão e estabilização, se organizam para manter permanente vigilância nos padrões éticos das pesquisas médicas acompanhando os movimentos de transformações nas praticas médicas, ajustando-as aos avanços tecnológicos e ao aumento da longevidade, em blocos de debates, acrescidos de outros de acordo com o movimento social e os avanços tecnológicos.
Declaração de Helsinque IV
Redigida de acordo com a terceira revisão, realizada na 41ª. Assembléia Mundial de Médicos, em Hong Kong, em 1989.
Conserva a mesma introdução das Helsinque II e Helsinque III, assim como defende os mesmos princípios fundamentais, tratando de definir a função e a estrutura da “comissão independente”.
Declaração de Helsinque V
Redigida de acordo com a 4ª revisão, realizada na 48ª Assembléia Médica Mundial, em Sommerset West, África do Sul, em 1996.
Conservou a mesma introdução das Declarações II, III e IV assim como defende os mesmos princípios fundamentais.
Preocupados com o uso de placebos nas pesquisas clínicas, como a de 1994, para o tratamento da AIDS, no estudo da Zidovudina, na transmissão materno-infantil do HIV, acrescentou ao texto a frase: “Isso não exclui o uso de placebo inerte em estudo onde não há nenhum método de diagnóstico ou de terapêutica comprovado”.
Declaração de Helsinque VI
Redigida de acordo com a 5ª Revisão, realizada na 52ª. Assembléia Médica Mundial, em Edimburgo, Escócia, em outubro de 2.000.
Em consequência de os ensaios clínicos e o uso de placebos continuarem, nos países em desenvolvimento de forma antiética, ocorreu outro alerta entre as autoridades fiscalizadoras, já em 1988, nas palavras de Marcia Angell: “Seres humanos em qualquer parte do mundo devem ser protegidos por um conjunto irredutível de padrões éticos”.
– Marcia Angell, trabalhou mais de vinte anos no revista “New England Journal of Medicine”, professora Sênior do Departamento de Medicina Social, na Universidade de Harvard e autora do polêmico livro: “A Verdade Sobre os Laboratórios Farmacêuticos”. Em 1997, foi considerada pela revista TIME, uma das 25 personalidades mais influentes dos EUA.
Ocorreram muitos debates e outras tantas resistências, sem conclusão consensual, às novas mudanças quanto ao uso do placebo inerte. Entre os acréscimos importantes:
No Artigo 29:
– Maior ênfase para os benefícios alcançarem as comunidades em que as ção pesquisas foram realizadas;
– Maior atenção para os que agentes da pesquisa que não se beneficiam da pesquisas
No artigo 30:
– Após a conclusão dos estudos, os pacientes devem ter a garantia de acesso à intervenção melhor comprovada.
Declaração de Helsinque VII
Princípios
Ocorreu maior ênfase quanto à obrigatoriedade por parte dos médicos na obediência às recomendações, no sentido de a Declaração ser moralmente obrigatória para os médicos, inclusive, substituindo quaisquer leis nacionais ou locais ou regulamentos:
– Respeito ao sujeito da pesquisa é fundamental;
– Bem estar do sujeito da pesquisa é mais importante do que os interesses da ciênca;
– Grupos socialmente mais frágeis, com maior vulnerabilidade, exigem maior fiscalização;
– Pesquisa deve estar fincada no conhecimento científico;
– Os riscos e benefícios devem estar aclarados;
– Prevalecer a probabilidade de benefícios à população estudada;
– Pesquisa dirigida por pesquisador treinado e competente;
– Pesquisa sujeita de modo permanente à revisão ética independente e fiscalização;
– Pesquisa deve ser interrompida se ocorrer indicativo de o projeto aprovado não estar sendo seguido;
– Estudo deve estar sempre disponível;
– Sempre que possível, testados inicialmente em animais.
Pesquisa médica envolvendo seres humanos
A pesquisa com seres humanos tem sido prática comum na ciência. Nos últimos anos, diferentes grupos sociais e técnicos, têm reclamado, insistentemente, para que as pesquisas sejam inseridas de modo mais claro na justiça social.
Não é demais sustentar que, até um passado muito próximo, os sujeitos das pesquisas não recebiam garantia de nenhuma espécie, mais agudamente nos países em desenvolvimento, e em grupos sociais fragilizados. Esses determinantes impuseram a necessidade de normatizar as pesquisas em seres humanos.
Benefícios das populações estudadas
Todas as pesquisas em seres humanos, obrigatoriamente, devem gerar benefícios às populações estudadas, não somente monetária. Deve haver melhoria na qualidade de vida das pessoas e do grupo social que participaram da pesquisa. Muitas pesquisas trouxeram benefícios à humanidade, não só de caráter monetário para alguns agentes da pesquisa, como por exemplo, o que ocorreu na prevenção do escorbuto, vacinação contra raiva e varíola, uso da insulina, estudos da febre amarela, entre outras.
Abusos cometidos pela experimentação em seres humanos
Se por um lado ocorreram pesquisas que beneficiaram a humanidade, outras a brutalidade enche de vergonha o mundo.
– Nos campos de prisioneiros, durante guerras diferentes, em países diversos;
– Médico William Wallace inoculou sífilis em cinco pessoas saudáveis, com idades entre 19 e 35 anos, todos foram contaminados pela doença, tendo publicado os trabalhos em 1851. Pouco tempo depois, publicou outra experiência semelhante, com pré-adolescentes de 12 e 15 anos;
– Estudos experimentais em seres humanos, não autorizados, da transmissão e complicações neurológicas da sífilis, em homens negros, no Alabama, Estados Unidos, depois da comercialização da penicilina:
– Injeção de células cancerosas vivas em doentes idosos para estudo da imunoterapia em cancerologia;
– Injeção do vírus da hepatite B em crianças em um hospital de Nova Iorque.
Concomitantemente, os Conselhos de Medicina, no Brasil e em outros países, se adaptaram às novas exigências sociais e tecnológicas e continuam discutindo deveres e direitos dos médicos e instituições médicas públicas e privadas. Nos debates foram adicionadas novas construções, mas mantendo sempre a posição doutrinária: a Medicina e os médicos como partes da cooperação entre pessoas e povos, também em torno das virtudes que amparam as relações humanas.
No momento, podem ser citadas os novos temas:
– Princípios gerais da humanidade;
– Inovações tecnológicas;
– Ética e psiquiatria;
– Ética e biotecnologia;
– Ética e novos cirurgias indicadas para promover o embelezamento;
– Ética e técnicas de fertilização fora do útero;
– Ética e fim da vida;
– Ética e deontologia;
– Ensinamento da ética.
DEONTOLOGIA E DISCEOLOGIA MÉDICA
Introdução
O termo “deontologia” (grego déontos = o que é obrigatório, necessário + -logia) tem origem na primeira metade do século 19, relacionado aos escritos do filósofo inglês Jeremy Bentham, para especificar os saberes da ética relacionados aos deveres e às normas morais. Também pode ser compreendido como a Teoria do Dever.
O termo disceologia ou diceologia (do grego = dikaio + logía) está relacionado aos estudos dos direitos profissionais.
Desse modo, os direitos e deveres do médico, como em outras áreas dos conhecimentos, para melhor compreensão, devem estar inseridos na historicidade da ética e da moral, que amparam as boas práticas voltadas ao beneficio de pessoas e populações.
A palavra deontologia ligada à prática médica, em torno do conjunto ético-moral, apareceu pela primeira vez, em 1845, no Congresso Médico de Paris, no trabalho do médico M. Simon intitulado “Deontologia médica ou dever e direitos dos médicos no estado atual da civilização”.
Dessa forma, Deotonlogia e Disceologia médica constituem instrumentos teóricos que entendem e normatizam a Medicina como especialidade social fundamentada, exclusivamente, no bem pessoal ou coletivo, na cura do doente, no controle da dor e na possibilidade de evitar a morte.