RELAÇÕES MÉDICO-MÍTICAS

Prof. Dr. João Bosco Botelho

”Indico-vos a grande crônica pantagruélica a fim de reco-nhecerdes a genealogia e a antigüidade de que provém Gargântua. Sabereis, com detalhes, como os gigantes vieram ao mundo e como, por linhas diretas, deles nasceu Gargântua, pai de Pantagruel…Ao atingir essa idade, o pai mandou fazer a sua roupagem, que era azul e branca ( o grifo é nosso). A ordem foi executada e as roupas foram feitas, talhadas e costuradas à moda da época…As cores de Gargântua eram o branco e  o azul, como pudeste ler acima. Por elas, queria seu pai dar a entender que ele era de uma alegria celeste. Com efeito, o branco significa alegria, prazer, delícia e contenta-mento; e o azul, coisas celestes…”  (RABELAIS, François. GARGÂNTUA. Ed. Hucitec, 1986).

 

O genial Rabelais, religioso e médico escreveu Gargântua no século XVI. Inúmeras associações foram feitas, nos anos seguintes, em torno dos seus personagens, principalmente do muito conhecido Gargântua e do seu filho Pantagruel.

Não é  difícil estabelecer mais uma relação. A semelhança existente entre o processo de desenvolvimento da medicina com a crônica pantagruélica é provocadora. Em ambas, o fantástico e o imaginário, são mesclados nas ações do homem e nos  sonhos de grandeza e da vida eterna.

As relações médico-míticas envolvendo a Medicina como es-pecialidade social transcenderam no tempo e chegaram  a nós, vivificadas tão intensamente, que fica   impossível dissociá-las  do cotidiano vivido.

A própria data de comemoração do dia do médico no Ocidente cristão, o 18 de outubro, corresponde na mitologia grega o dia no qual o deus-médico Asclépio, filho de Apolo, era celebrado na Grécia Antiga, há 2.500 anos atrás.

A morte de Asclépio, foi determinada por Zeus, divindade suprema da maioria dos povos indo-europeus, resultante da terceira geração divina da mitologia grega, por temer que a ordem natural do mundo fosse alternada pelos poderes de Asclépio, capaz de ressuscitar os mortos, fulminou-o com o raio dos Ciclopes, seres monstruosos com um só olho no meio da testa, representados por Bronte, o trovão, Esteropes, o relâmpago e Arges, o raio. Apolo não tendo poderes suficientes para vingar-se de Zeus, matou as Ciclopes, demônios das tempestades, matadores de Asclépio.

O homem atual pertence a subespécie rotulada Homo-sapiens-sapiens. Ele tem características exclusivas entre todas as quatro mil  duzentos  e trinta e sete  espécies de mamíferos que existem no planeta. Bípede e pelado, transforma a natureza ao sabor da sua vontade. Entretanto, conserva muitas particularidades fundamentais de todos os animais, mesmo quando está em uma estação  orbital, a milhares de quilômetros de distância da Terra, ele tem que comer e urinar.

Somente  algumas áreas do corpo dessa espécie mamífera são  cobertas por pelos, a cabeça, as axilas e em  volta dos órgãos sexuais. Em compensação a pele está coberta por milhares de glân-dulas sudoríparas, vinculadas ao mecanismo de  regulação da tem-peratura endógena. Esta capacidade de suar em conformidade com a temperatura ambiente é exclusiva do homem. Todas as cento  e noventa e três espécies de macacos  e símios descritas possuem pelos espessos distribuídos pelo corpo.

O homem se envaidece de possuir o maior cérebro entre todas as espécies animais,  pesando  pouco mais de mil e quatrocentos gra-mas no adulto jovem. Essa massa cinzenta é uma estrutura espe-cializada em receber e estocar informações, emitindo instruções baseadas nelas. Sem ddvida que as buscas da origem primeira e do destino final estno entre as funHtes essenciais do homem.

I indispens<vel saber que no c\rtex cerebral existem cerca de dez bilhtes de neur^mios ou cJlulas nervosas e que cada uma delas pode fazer em torno de quatro mil ligaHtes com outras cJlulas nervosas, resultando inimagin<veis possibilidades de conextes intercelulares, capazes de resultarem em fant<sticos computadores microsc\picos, respons<veis pelas idJias  e aHtes do homem.

No intervalo de tempo entre esses dois pontos da consciLncia do tempo, o inRcio  e o fim da vida, o homem convive com a certeza da doenHa e da morte. Nas poucas dezens de anos que o homem consegue viver, gasta grande parte dormindo e na procura incessante do conforto, da sadde e da justificativa  mais coerentes da imagin<vel vida ap\s a morte.

Depois  de estabelecer ao longo de milhares de anos as relaHtes sadde \ doenHa e vida \ morte, o homem desenvolveu e acumulou historicamente conhecimentos ojetivando o aumeto do seu tempo de vida, sem pensar nos meios utilizados, isto J, mesmo tendo que imaginar e explicar-nos seus sonhos de grandeza biol\gica , o rJ-nascimento ap\s a morte durante milhares de anos.

Esta posiHat inconsequente na busca da imortalidade impossRvel J tno antiga quanto os registros paleoantropol\gicos que nos  chegaram dos nossos ancestrais e foi respons<vel pelo aparecimento  de uma especializaHno social que deu origem a procura sistematizada do conforto fRsico e da sadde e tambJm  forneceu as bases te\ricas da pr<tica mJdica como n\s a entendemos hoje.

Para que essa instrumentalizaHno se concretizasse  foram necess<rios milhares de anos. Se pensarmos que somente um por cento das espJcies outrora existentes conseguiram permanecer vivas atJ hoje, nada pode garantir que o homem viver< na Terra indefinidamente. Esta afirmativa toma corpo  em decorrLncia do comportamento destruidor  que o homem sempre teve, capaz de determinar alteraHtes significativas em quase todos os sistemas ecol\gicos do planeta formados ao longo de milhtes de anos.

O que talvez mais contribua para esta atitude desorganizadora do homem seja o fato de que permanece a falsa idJia da imut<vel estabilidade do mundo. Nada pode ser mais enganador. As imensas massas continentais do planeta continuam se deslocando gradativa e inexoravelmente. H< 200  milhtes de anos todos os continentes estavam em contato, formando um dnico  supercontinente conhecido como PangJia. H< 100 milhtes de anos a AmJrica do Norte e a Europa comeHaram a se separar e a AmJrica do Sul  e a ;frica apareceram. Somente h< 40 milhtes de anos os continentes tinham atingido as posiHtes atuais.

O processo que culminou com o aparecimento  do homem moderno foi lento. H< 600 milhtes de anos a vida comeHou como fruto das reaHtes bio-quRmicas e ficou restrita aos mares nos 400 milhtes de anos seguintes. Seguiu-se o aparecimento e o desaparecimento dos rJpteis  gigantes, perRodo que durou 200 milhtes de anos sendo acompanhado de significativas alteraHtes na flora e na fauna marinhas em consequLncia do aumento da salinidade dos mares. Os dltimos milhtes de anos foram marcados pela gradativa ascensno dos mamRferos atJ o aparecimento dos nossos ancestrais mais distantes. O Australopitecos h< 2.500.000 anos, o Homo habilis h< 1.000.000 de anos e dos mais pr\ximos, o Homo erectus h< 500.00 anos, o Homo sapiens neanderthalensis h< 100.000 anos e do Homo sapiens sapiens h< 50.000 anos.

O cuidado com a sadde pode ter comeHado em qualquer ponto dessa escala geneol\gica e certamente se iniciou na procura do conforto fRsico. A retirada de espinhos e parasitas da pele em forma individual ou coletivamente com a ajudade outros membros da comunidade doi a primeira forma de assistLncia mJdica prestada nos nossos ancestrais. Esta assimilaHno da conduta social foi fundamental para o desenvolvimetno e sobrevivLncia da espJcie.

J< J do conhecimetno dos zo\logos que os nossos parentes mais pr\ximos, os chimpanzJs, sno capazes de se tratarem mutuamente lambendo pequenas feridas da pele, retirando parasitas e espinhos que penetram acidentalmente no corpo. N<o se trata de simples cataHno. I indRcio de verdadeira assistLncia mJdica, porque envolve atividade consciente e dirigida a um determinado ponto onde est< ocorrendo desconforto fRsico.

A partir do aparecimento da consciLncia do tempo no homem, reveladora da sua impotLncia frente a ocorrLncia das doenHas que levavam B morte , multiplicaram-se as explicaHtes transcendentes, mRticas e religiosas a aceitaHno coletiva do  desconhecido. O ponto de convergLncia deste caminho que moldou o pensamento criativo do homem foi o fant<stico ndmero de duses e outros personagens com pod

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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