Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
“Os gregos que parecem Ter sido os primeiros a fazer da medicina a profissão mais ilustre e completa, escreveram na conformidade deste conceito que fora Apólo o inventor dela o que não deixa de Ter aparente razão. Eles entendiam Apólo como o Sol (com o seu calor benigno e temperados, vivificador das plantas e do homem) ou como o homem, que possuidor de um espírito divino e melhor que todos os demais do seu tempo. Apolo também foi o primeiro que ensinou e praticou o uso das ervas. Como Ovídio deu a entender na sua obra Metamorfoses:
A medicina um dia eu inventei
Com ela, a toda gente auxílio dei.
Das ervas o poder a mim se prende
De mim, pois, a saúde só depende
Na verdade, a origem da medicina será sempre divina e celeste (AMBROISE PARÉ, 1582).
Este trecho tirado do livro OUVRES COMPLETES de Ambroise Paré (1510-1590), o mais famoso cirurgião barbeiro de todos os tempos e um dos responsáveis pela incorporação da cirurgia na medicina, mostra como a mitologia grega influenciou a prática médica no Ocidente durante mais de vinte séculos depois da sua elaboração.
As relações da medicina com a compreensão mítica da realidade se perderam no tempo. É impossível separar as idéias míticas do entendimento do homem sobre a saúde e a doença.
Esse fato se deve porque a mitologia é uma forma de conhecimento numa sociedade que ainda não tem condições de explicar racionalmente a realidade circundante. A mitologia nasce de uma relação com o mundo da natureza empírica, mas acima do meramente empírico.
Das primitivas relações do homem com o animal, posteriormente substituídas pelas relações com a terra, surgiu empiricamente o uso das plantas na busca da saúde.
A utilização racional do vegetal, indispensável para a sobrevivência do homem, se processou em complexa compreensão mítica, que foi marcada pelas explicações que se sucederam nos milênios da origem primeira e do destino final do ser humano. Elas evoluíram da Epopéia de Gilgamesh dos babilônios à Teoria do Big Bang dos modernos astrofísicos, passando pela gênese judaico-cristã e pela Yebá beló da lenda desana da criação do Sol.
Apesar da melhor compreensão que temos hoje da transformação do pensamento mítico religioso do homem, a dificuldade de interpretação aumenta na proporção que recuamos no tempo. Além de existirem poucos registros disponíveis, a interpretação deles sofre grandes variações pessoais.
Entretanto, parece ser a partir do século VI a.C. e da Grécia que chegou a nós material historiográfico suficiente para traçar, com alguma segurança, um perfil da medicina da mitologia.
É provável que o acervo cultural e médico dos povos mesopotâmicos e dos vales do Indo e do Nilo tenham influenciado a formação do universo médico mítico grego.
Os registros históricos que se ocupam da medicina na mitologia grega são, provavelmente, o produto das complexas relações do homem que antecedeu a formação do pensamento grego. É possível estabelecer paralelísmo entre muitos aspectos das relações médico míticas as civilizações babilônica, egípcia e indiana com as da Grécia dos cinco primeiros séculos antes de Cristo.
De acordo com a mitologia grega a medicina começou com APOLO, filho da união de Zeus com LETO, Ele era inicialmente, considerado como o deus protetor dos guerrilheiros. Posteriormente foi identificado como APLOUS aquele que fala verdade. Ele agia purificando a alma através das lavagens e aspersões e do corpo com remédios curativos. Era considerado o deus que lavava e libertava o mal.
Um dos seus filho ASCLÉPIO, teria sido educado pelo centaudo QUIRON para ser médico . A escolha do centauro QUIRON para dirigir a educação de ASCLÉPIO foi feita porque ele dominava o completo conhecimento da música, magia, adivinhações , astronomia e da medicina. O centauro, além destas habilidades, tinha incomparável destreza. Manejava com a mesma habilidade o bisturi e a lira,
Ainda segundo o discurso mitológico grego o centauro Quiron foi o primeiro que Plantou na Tessália as plantas medicinais e a primeira delas foi a denominada Gentiana centaurium.
O centauro Quiron, além de Ter educado ASCLÉPIO na arte da medicina, foi o orientador principal da educação de JASON na arte de vencer os mais incríveis obstáculos e de DIONÍSIO, deus da vegetação e do vinho, conhecedor dos mistérios da religião, do êxtase e da embriaguez.
É necessário tentar explicar porque o Centauro Quiron foi o preceptor de ASCLÉPIO, JASON e DIONÍSIO. É provável que tenha existido razão no pensamento mítico grego para justificar a ligação entre as qualidades necessárias para exercer a prática médica encontradas em ASCLÉPIO, com a epopéia épica do Velo de Ouro de JASON e com o conhecimento dos mistérios da religião e da vegetação de DIONÍSIO.
Apesar de tratarem-se de pontos aparentemente discrepantes e sem qualquer relação entre eles, talvez seja possível estabelecer um elo coerente a partir da compreensão de como era a prática médica naquela época. O entendimento fica mais fácil se retirarmos da ciência médica atual os seus dois cortes, a histopatologia e a genética. Desta forma sem estes conhecimentos, a ação médica fica desprovida dos seus principais suportes racionais e as dificuldades com o objetivo de sua prática ficam quase intransponíveis. Esta situação é muito semelhante à vivida pelos médicos que vão exercer as sua atividades no interior do Amazonas, onde freqüentemente não dispõem da histopatologia (celular e bacteriana), ficando a prática médica exclusivamente apoiada no diagnóstico clínico.
Para o exercício da prática médica sem o apoio da histopatologia e da genética torna-se necessário possuir a determinação de JASON em vender incríveis obstáculos e o conhecimento da vegetação e da religião de DIONÍSIO. É possível tenha sido esta a base da relação do centauro QUIRON com ASCLÉPIO, JASON e DIONÍSIO.
Para os gregos daquela época predominou a idéia de que ASCLÉPIO deificava a medicina na mitologia. Ele era celebrado em grandes festas públicas no dia 18 de outubro, data em que até hoje se comemora o dia do médico no Ocidente.
ASCLÉPIO conquistou uma fama inimaginável tinha delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressivo do cirurgião. Todos os doentes que não obtinham cura em outros lugares, procuravam os serviços médicos de ASCLÉPIO. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras as ligaduras e as tentas para drenar as feridas, Chegou a ressuscitar os mortos e por ZEUS com os raios das CICLOPES ZEUS matou ASCLÉPIO por temer que a ordem do mundo fosse transtornada.
ASCLÉPIO deixou duas filhas, HÍGIA e PANACÉIA, a primeira foi posteriormente celebrada como a deusa da medicina e a Segunda curava todos os doentes com os segredos das plantas medicinais. Além delas teve dois filhos, MACHAON e PODALIRIO, médicos guerreiros, que se destacaram na guerra de Tróia. PANACÉIA continuou a linguagem de médicos que começou com APOLO, fazendo do seu filho HIPOCOONTE um médico famoso e ancestral de HIPÓCRATES.
Existem muitas comprovações arqueológicas das dádivas de agradecimentos dos doentes para com ASCLÉPIO. No hospital de Epidauro, na Grécia, foram encontradas várias esculturas com o nome do doente a descrição da doente e da cura obtida. Este procedimento não é diferente do existente no altar cristão, na porta do CTI do Hospital Universitário da FUA, onde existem , ao lado da Santa, dezenas de oferendas dos pacientes que foram tratados no Hospital Universitário e acharam que as curas obtidas foram milagrosas. (Relações médico mítica. JORNAL DO COMÉRCIO 25.01.87).
Quase todas as esculturas e pinturas que simbolizam ASCLÉPIO e HIPÓCRATES produzidas entre os séculos VI E II a.C. contém uma serpente enrolada num bastão.
O simbolismo da serpente com a medicina já estava presente na civilização babilônica. Dez séculos antes da formação da polis grega. Existe no Museu do Louvre, em Paris um vaso de cerâmica encontrado na região de Lagash, representando o deus da cura babilônico – NINGISHZIDA – segurando um bastão com a serpente entrelaçada nele.
Esse simbolismo da serpente é freqüentemente ligado à transcendência da morte. Existem várias explicações para a relação da medicina com a serpente. As mais conhecidas são:
- A serpente pode viver em cima e embaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos e em estreita vinculação com o pensamento neolítico da localização subterrânea do outro mundo; 2) A capacidade da serpente de mudar a sua pele de tempos em tempos, encenando o renascimento. Esta última interpretação está relatada no Rig Veda (1.79,1), no qual os Adityas são descritos como os descendentes das serpentes e ao perderem a pele velha, eles venceram a morte e adquiriram a imortalidade.
Seja Qual for a razão que levou o homem no passado a estabelecer um elo da serpente com a medicina, provavelmente estava relacionada com as complexas relações que o homem estabeleceu com a morte, onde o médico simbolizava o símbolo vivo da luta do homem pela sobrevivência.
Em última análise é provável que todas as teogonias e teofanias que o homem elaborou em consonância os processos de transformação sócio econômica tenham sido um caminho na busca da sua origem primeira e do destino final, tendo a medicina desempenhado uma parcela importante neste conjunto.