MEDICINA SE AJUSTANDO A MATERIALIDADE DO SÉCULO 17

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Construções da ética da Medicina e do Direito, na Europa, ajustadas à busca da materialidade da doença no século 17

 

O século 17 também conhecido como o século da razão trouxe o encontro entre busca da maior liberdade com a ética médica. Esse complexo conjunto sócio-político foi firmemente tocado pelas idéias de Newton, Descartes, Locke, Espinoza, Leibniz, Cornelle, Racine, La Rochefoucault e Molière.

– Isaac Newton (1643-1727), autor do “Principia”, um dos principais precursores do Iluminismo, físico e matemático, trabalhou com Leibniz na elaboração do cálculo infinitesimal, no período em que permaneceu na própria casa porque a Universidade de Cambridge fora fechada por causa do surto da peste negra, descobriu a lei da gravitação universal e a natureza das cores, que mudariam para sempre os rumos da ciência.

– René Descartes (1596-1650), advogado, formado na Universidade de Poitiers, nunca exerceu essa profissão, se notabilizou como filósofo e matemático, fundador da filosofia moderna, na principal obra “Discurso sobre o método”, se consagrou na defesa do método cartesiano incluindo “Penso, logo existo”. Contudo, outras importantes contribuições que também seriam inseridas na nova apreensão dos saberes do século 17: fundiu a álgebra à geometria que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que recebeu seu nome. Esse genial filósofo expressou pensamentos revolucionários: supremacia da dúvida para alcançar o conhecimento, rejeitando em bloco a estrutura dogmática da Igreja, por essa razão considerado o “pai do racionalismo”. Após a morte, em 1667, em Estocolmo, a Igreja adiciona os livros dele na lista dos proibidos.

– John Locke (1632-1704), considerado a base do empirismo e defensor do direito natural, liberal e de tolerância seletiva, explicando que não poderiam ser aplicados ao “homem primitivo”, os índios, comparando-os ao animal, servindo de base ideológica para a tomada das terras e extermínio de populações indígenas. Esse controvertido filósofo defendia atitudes rígidas e coercitivas aos pobres, e se mostrou contrário aos conceitos pré-existentes do  cartesianismo, rejeitou a doutrina das idéias inatas e defendeu que o conhecimento se origina a partir da percepção dos sentidos, valorizando a identidade do “ser” “self”.

– Bento de Espinoza (1632-1677), racionalista da Filosofia moderna, fugiu da Inquisiçào portuguesa, defendeu o panteísmo (Deus, natureza naturante). Em 1656, foi excomungado pela Sinagoga de Amisterdam, por defender Deus como mecanismo imanente da natureza e do universo e a Bíblia como obra metafórico-alegórica nao expressando a verdade sobre Deus. Após a excomunhão adotou o nome Bendito, tradução do original Baruch. Para Espinoza, Deus e natureza eram dois nomes para a mesma realidade. Ao propor o determinismo, também entendia que os acontecimentos ocorrem em razão das necessidades. Dois pontos importantes da filosofia desse extraordinário pensador:

– Defesa de que a razão não poderia dominar a emoção; uma emoção só seria consumada por outra emoção anda maior;

– Inovou a ética ao afirmar que ela não se opõe às emoções; todos deveriam buscar os instrumentos que constroem a felicidade e o bem estar e recusar os que determinam dor e sofrimento: a ética da alegria, da bem querença.

–  Gottfried Leibniz (1646-1716), genial pensador que brilhou nas áreas da física, matemática, história e filosofia; junto com Newton desenvolveu o cálculo moderno, em particular o Integral. Como outros iluministas, Leibniz teorizou certas estruturas explicando universalidades, incluindo a categoria “mônadas”, que equivaleriam para a realidade metafísica, o que os átomos para os fenômenos físicos.

– Pierre Corneille (1606-1684), fundador da tragédia francesa, após desgaste amoroso, escreveu peças teatrais que inauguraram  a exposição de sentimentos trágicos, em absoluto contraste com o teatro medieval, em especial, rompe com a ordem e critica os políticos que se acham acima das leis.

– Jean Racine (1639-1699), poeta trágico, matemático e historiador francês; suas peças também inovaram a dramaturgia francesa, longe das âncoras das autoridades da Igreja, que ainda tentavam manter as rédeas da produção literária.

– François de La Rochefoucauld (1613-1680), pessimista e socialmente desencantado, conspirador contra a autoridade real, apesar da herança aristocrata, explicitava que todas as qualidades da nobreza, as falsas virtudes, estão ligadas ao egoísmo e à hipocrisia. Essa crítica posição, com claro enfrentamento à autoridade real, ja refletia os novos ares da maior liberdade política que se avizinhava.

– Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, o grande mestre da comédia satírica do teatro francês. Muito crítico à superficialidade do mundanismo, da segunda metade do século 17, na peça “O misantropo”, de consistente valor moral, retrata um personagem que recusa se integrar na sociedade devida a exigência da sinceridade e absoluta aversão à hipocrisia. A resistência da Igreja ao novo teatro continuava inflexível, por considerarem os atores representantes do falso, não poderiam ser sepultados nos cemitérios cristãos. Mesmo como pedido do rei Luis 14, o arcebispo só concedeu que Molière fosse enterrado no espaço dos não batizados e durante a noite.

Como nunca no passado, as práticas médicas associados aos movimentos sociais que saiam das amarras dogmáticas da Igreja, aumentou o valor da materialização da doença. Centenas de descrições de estruturas e sistemas anatômicos, que receberam os nomes dos respectivos autores, foram acrescentadas aos saberes anatômicos.

Sob o impacto dessas profundas mudanças estruturais a ética médica iniciou o processo de afastamento da Igreja e, em alguns aspectos, se identificou com os conceitos de Spinoza, nos seus geniais livros “A ética” e o “Tratado da reforma do entendimento”, ambos valorizando a vida e rejeitando valores negativos da compreensão dos conflitos sociais.

Nesse novo contexto, a Medicina-oficial e o médico como seu agente, e os julgadores, como agentes do Direito, novamente, valorizados, e reconhecidos como partes importantes da construção do belo, do feliz, da vida, adicionando às concepções do “direito natural”.

 

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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