A MEDICINA E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

A   idéia de contribuir para fortalecer a discussão a ordem e a desordem na Medicina, enquanto uma especialidade social, na Univer-sidade do Amazonas, nasceu entre os anos de 1984 a 1986, e culminou com a proposta de incluir  a  disciplina  História da Medicina, no currículo do Curso de Medicina.

Naquela oca­sião, o projeto EDEN estudou os dados sociais e noso-lógicos, colhidos no Município de Coari, no centro geodésico do Amazo-nas, e no bairro Novo Paraíso, na periferia urbana de Manaus.

Durante o desenvolvimento dos trabalhos de campo, foi consolida-da a certeza de que grande parte da Medicina praticada no Hospital Universitário Getúlio Vargas, da Universidade do Amazonas, estava muito distante da compreensão de saúde e doença das três mil pessoas entre-vistadas. Por outro lado, os alunos que integraram o  projeto EDEN   desco-nheciam o processo de branqueamento da Medicina autóctone.

Com o fundamental apoio dos professores do Departamento de História, em especial, da professora Vânia Nóvoa Tadros, algum tempo após o término da pesquisa, seguiram‑se os encontros com o objetivo discutir o programa, a metodologia e a bibliografia.

Em 1988, como fruto do trabalho interdepartamental, a disciplina História da Medicina foi oferecida, pela primeira vez, com cinqüenta va-gas, em caráter optativo e cinco créditos de carga horária. De lá para cá, os alunos solicitantes da matrícula têm sido em torno de três vezes mais  do que o número das vagas.

A análise da atual metodologia do  ensino médico mostra que ape-sar das transformações ocorridas na nossa sociedade, na segunda metade desse século, não houve mudança concreta nos currículos das escolas. Continuamos ensinando nos Hospitais Universitários somente a morfologia das doenças já instaladas e desprezando como a sociedade se relaciona com elas.

Basta comparar o tipo de doença e morte, no mesmo período, dos países industrializados com os subdesenvolvidos, para se ter certeza de que a saúde é um indicador sócio‑cultural importante que se tornou mais evidente depois da Segunda Guerra Mundial, quando o empobrecimento dos povos latino-americanos se evidenciou de modo concreto.

Hoje, mais do que nunca, é indispensável esse repen­sar. Depois da publicação dos trabalhos do pesquisador Susumi Tonegawa, o ganhador do Nobel da Medicina de 1987, esclarecendo algumas dúvidas de como se dá a variação na ordem dos aminoácidos dos anticorpos produzidos nos linfócitos B.

Tonegawa demonstrou que quando o linfócito B se desenvolve, segmentos do seu material genético são selecionados e misturados para formar novos genes, dando origem a milhões de seqüências variadas de aminoácidos, capazes de efetuar com competência a defesa do corpo humano contra as agressões micro e macroscópica do exterior.

Como conseqüência imediata dessas pesquisas, é possível afirmar que pelo menos parte da estrutura genética do homem é móvel e capaz de desenvolver durante a vida uma infinidade de combinações gênicas adaptadas às necessidades. Para que este mecanismo biológico ocorra na sua plenitude, é indispensável que o corpo disponha da sua fonte de energia ‑ o alimento.

Deste modo, caiu por terra os pressupostos étnicos racistas, que ainda permanecem vivos no cotidiano do desconhecimento, alimenta-dos pelos interesses dos grupos dominantes, de diferentes matizes ideo-lógicas.

Isto significa que as crianças subnutridas dos países pobres não poderão competir, em igualdades de condições, com outras dos países industrializados, onde a oferta de alimentos, indispensável para a matu-ração do aparelho comossomial, é feita em níveis calóricos adequados.

É indiscutível que estamos nos afastando rapida­mente, nos últimos anos, da medicina classificatória de Sydenham, representante de um conhecimento contido num espaço hermético e inquestionável, para colocar a doença no contexto mais abrangente e complexo das relações sociais do homem.

Os conceitos positivos da imobilidade da saúde e da doença foram substituídos pela convicção da existência do equilíbrio dinâmico entre ambas, onde ter a doença não significa necessariamente estar doente. Esta  tendência está nitidamente clara a partir do século XIX quando o médico abandona o conceito restritivo da saúde e adota o da norma-lidade, provavelmente motivado pela  melhor compreensão da fisiologia experimental, em plena efervescência, nos trabalhos de Claude Bernard.

Este primeiro momento, ficou impregnado da necessidade de  explicar como tudo funcionava no Homem. Como o mecanicismo domi-nava os meios acadêmicos, a máquina foi escolhida como o modelo ideal. O corpo humano passou, como num passo de mágica, a ser com-parado a um grande relógio, onde as doenças eram somente desajustes na engrenagem.

Entretanto, esse retrocesso vivido no século XIX não encontra su-porte na História. A preocupação e a certeza da importância do social e do cultural, produzindo doença no homem, já estava presente nos livros sagrados, escritos há milhares de anos.

Naquelas épocas, os legisladores utilizaram os seus poderes disponíveis e interferiram nos hábitos coletivos de populações inteiras. Assim conseguiram determinar, ao longo dos séculos que se seguiram, modificações na cadeia epidemiológica de muitas doenças.

O exemplo de fácil verificação é o câncer do colo uterino, com baixa prevalência, entre as judias. A atual explicação é dada pela cirurgia da fimose  feita obrigatoriamente nos homens judeus no sétimo dia após o nascimento. Com isto, o prepúcio fica livre facilitando a sua higiene e impedindo que o vírus Epstein‑Baar, relacionado com a etiologia do cân-cer do colo uterino, se aloje no esmegma da glande masculina.

O câncer do pênis é o outro lado da mesma questão. Ele é muito freqüente nos homens cristãos com fimose. O Nordeste brasileiro, como todas as outras regiões do mundo subdesenvolvido, onde o homem enfrenta enormes dificuldades de sobrevivência, apresenta uma das maio-res prevalências do mundo neste tipo de neoplasia maligna.

É provável que o início da obrigatoriedade religiosa da postectomia, entre os judeus, estivesse também relacionada com as doenças mais comuns no pênis, causadas pela dificuldade de limpeza da glande, em áreas onde não existia abundância de água.

Independente da sua escolaridade, porém profundamente mar-cado pelo seu cultural, o homem sempre soube que as suas próprias condições de vida interferiam no curso das suas enfermidades.

Para que possamos  reutilizar o conhecimento sócio‑cultural histori-camente acumulado do homem na luta atávica contra a doença e a morte, é imperativo reestruturar o aprendizado do agente oficial, ligado ao poder dominador, que intermediário dessa ação no coletivo: o médico.

Afora os patrulhamentos ideológicos patrocinados pelos leitores das orelhas dos livros de ciência política que enchem de vergonha a plu-ralidade política universitária, os Departamentos da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade do Amazonas têm feito progressos para des-locar as barreiras do imobilismo.

Novas Disciplinas precisam ser consolidadas para possibilitar ao aluno  situar historicamente os pontos importantes da saúde pública. Assim, será mais fácil fornecer, durante o aprendizado acadêmico, os subsídios teó-ricos das  soluções para os problemas que corroem a saúde de milhões de brasileiros e fazem morrer por ano outras tantas crianças com menos de um ano de idade.

Somente com o resguardo da história social do homem,  evitaremos a posição política dogmática e maniqueísta, montada na fantasia da incompetência politiqueira, rastreadora do apoio corporativista inconse-qüente.

A doença, nas   diversidades de apresentação, sempre acompa-nhou o homem ao longo do seu processo de transformação. Sob este ponto de vista, é possível entendê‑la como uma forma de expressão da vida, onde cada cultura, cristaliza ao longo do tempo, as suas próprias condições de luta para enfrentá‑la.

Nas sociedades industriais, a necessidade rápida de mão de obra, impôs a atual complexidade aos sistemas de saúde, com efetiva parti-cipação dos médicos e do Estado. O povo passou a ser coagido, de modo crescente, para cumprir normas oficiais de higiene. Este conjunto de ações representa, do mesmo modo que nos templos bíblicos, a   resposta das so-ciedades atuais ao inevitável aparecimento de novas formas de doenças.

Foucault caracterizou esta fase como a tomada de uma consciên-cia política, onde o médico participa da vigilância sanitária junto com outros mecanismos coercitivos do Estado.

Deste modo ,são as instituições públicas e privadas  que respondem pela aplicação da política de saúde, as responsáveis pelo aparecimento de novas modalidades de patologias no homem e nos outros animais .Esta participação se dá no  momento em que permitem a terrível agressão ao meio ambiente causada pela  busca  irresponsável  de novas fontes de matéria prima, alterando de modo irreversível o ecossistema. Já é possível avaliar o que representará para o surgimento de novas doenças a des-truição do meio ambiente.

Se for acrescentado o uso indiscriminado dos antibióticos, dos apare-lhos hospitalares, das cirurgias desnecessárias e as infecções hospitalares, ao mesmo tempo em que são analisados os índices de morbidade e mor-talidade causadas nos serviços de saúde, é possível que alguns aspectos da atual prática médica causem mais danos que vantagens ao homem.

Alguns pesquisadores sociais  partem da tese de que existe uma tendência universal para curar e compreender a doença. É aqui que se interligam forte e indissoluvelmente os sistemas cognitivos ‑ o mítico e o empírico ‑ para compor o sistema de respostas processadas através do conhecimento historicamente acumulado.

Os mecanismos que interferem na assimilação social da doença são muitos e complexos. Como a nossa herança cultural está solidamente fincada na memória, é impossível ao médico não conviver diariamente na sua prática com os mitos que se acoplam na compreensão popular da doença. Deixar de aceitar esta realidade é tão danoso quanto ignorar a pesquisa do laboratório.

Para que o profissional de saúde se situe no conjunto das relações sociais e tome consciência do seu próprio papel, é necessário que os dois sistemas cognitivos ‑ mítico e empírico ‑ sejam analisados, mesmo porque eles convivem em unidade indissolúvel.

Muitas universidades iniciaram, há mais de cinqüenta anos, os estudos das ciências sociais ligadas à medicina. Entre as mais conhecidas estão  Yale e Stanford, nos Estados Unidos, Oxford e Cambridge, na Inglaterra, Sorbonne, na França e a Autônoma, em Barcelona. Dezenas de publicações sobre o tema  circulam anualmente financiadas por esses grupos de trabalho.

No Brasil, a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do Pará estão entre as pioneiras no encaminhamento dos programas de pesquisa social e histórica ligados à medicina.

Desde os trabalhos pioneiros de Peixoto e Galvão  até os mais recentes de Mayonard, Cordeiro, Oliveira, Posses, Guimarães, Donnan-gelo, Loyola e Souza, muitos avanços foram feitos por pesquisadores brasileiros para consoli­dar a estreita ligação das  ciências sociais com a medicina, bus­cando explicações para o componentes não exclusiva-mente biológico do binômio saúde-doença.

A descrição feita por Engels das condições de trabalho e da saúde dos operários ingleses até 1844, até hoje citada nos trabalhos dos que se encantaram  com as propostas políticas do marxismo, ainda representa     um divisor de águas do quanto é importante para o homem a prévia com-preensão do seu social.

Não existe qualquer possibilidade de dúvida, mesmo aos mais cépticos, de que a industrialização desordenada com destruição do ecos-sistema e o descaso pelas normas  elementares de respeito à vida hu-mana levará a todos, ricos e pobres, para o mesmo buraco.

No início do século, em 1910,o famoso Relatório Flexner sobre as cento e cinqüenta faculdades de medicina já existentes naquela época nos Estados Unidos, seguido dois anos depois pelo segundo Relatório que descrevia os cursos médicos da França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, selaram o destino da nova metodologia daquelas escolas. Passou a ser considerado exclusivamente como verdadeiro e produtor de saúde as relações científicas vindas dos laboratórios de pesquisa. Tudo apoiado na certeza de que a utilização de aparelhos para intermediar a ação médica seria responsável, em futuro muito próximo, pela melhoria das condições de saúde do homem.

Os anos que se seguiram mostraram exatamente o contrário. A  melhoria da vida coletiva e o aumento da longevidade não está atrelada à parafernália da tecnologia médico‑industrial e a medicação e sim às medidas básicas de saneamento, moradia, educação, trabalho e lazer.

Contudo, se por um lado, os Relatórios Flexner contribuíram efi­caz-mente para melhorar a qualidade das escolas de medicina dos Estados Unidos da América e dos países da Europa, por outro, podem ser respon-sáveis pela descrédito com que as ciências médicas lidaram com a História a partir de então.

Graças ao tecnicismo exagerado, estamos convivendo com o abuso dos medicamentos   como suporte indispensável para o exercício da medicina. O resultado final foi a entrada definitiva da medicina  no consumo incontrolável da produção industrial, sem que tenhamos qualquer comprovação  de que  este fato tenha participado para a me-lhoria da qualidade da vida.

Durante toda a primeira metade do nosso século, a História   e a Na-tropologia médicas caminharamao lado da Sociologia. Somente depois dos trabalhos de Foster, Medical anthropology: some contrast with medical sociology, e de Olesen, Convergences and divergences: anthropology and sociology in health care, publicados respectivamente em 1974 e 1975, os campos de atuação ficaram melhor estratificados.

O processo de industrialização acelerado do pós‑guerra, principal-mente nos países subdesenvolvidos, onde o Estado descura do seu papel na organização dos direitos do cidadão, foi marcado pelo patrulhamento ideológico, proporcionado pela ação política dos grupos com ideologia dogmático‑maniqueísta pregadora das falsas verdades e pela ação dos poderosos grupos econômicos defensores do lucro a qualquer preço.

Essas duas poderosas forças sociais impediram, de diferentes maneiras, que as universidades discutissem plenamente as relações sociais da medicina. Assim foi mantida  fora das salas de aula a clara causalidade entre a estrutura social e nosologia.

É evidente que esta situação tem que ser modificada. Foi exata-mente com a ajuda da análise dos indicadores de saúde que os países industrializados chegaram aos seus  atuais e invejáveis índices de quali-dade de vida.

Foi a partir da melhor compreensão dos componentes sociais da doença que é possível identificar cinco estratos específicos de estudo das  ciências sociais com a Medicina:

 

1.O do interesse etnográfico, fortalecido a partir da década de 1920 com a publicação de vários trabalhos reunindo as práticas de magia e bruxaria com a medicina popular, como no clássico de Chauvet, A etnomedicina ou relação médico‑mítica, é  a herdeira deste grupo;

 

  1. Durante a década de 1930, apareceram vários trabalhos tendo como tema as diferentes relações entre cultura e personalidade, que acabaram contribuindo para uma nova leitura de Freud com enfoque antropológico. Nesta área, ficaram conhecidos as posições da escola espanhola, cujo principal representante é o professor Lain Entralgo;

 

  1. A Escola de Chicago centralizou as atenções, a partir de 1939, com as análises psiquiátricas encontradas entre os operários das periferias urbanas. As conclusões se voltaram de modo incisivo para a associação entre as patologias encontradas e as bruscas mudanças ocorridas na urbanização pós‑industrial;

 

  1. Os estudos financiados pela Organização Mundial da Saúde e pela Organização Pan-americana de Saúde, enfocando o componente sócio‑ cultural nos mecanismos determinantes das doenças;

 

  1. A partir da década de quarenta a doença começou a ser reescrita sob forte influência da nova história das mentalidades. Perdeu a narrativa romântica que enfocava os feitos de poucos homens e passou a analisar a participação das massas como ponto de partida para a compreensão da doença.

 

A medicina fundamentada no consumo tecnológico começou a sofrer severas críticas a partir da década de sessenta com as publicações de Illich e Berlinguer, mostrando que a excessiva medicação em nada contribuía na melhoria da  vida dos homens.

Na mesma época, algumas instituições começaram a  analisar os indicadores de saúde dos países do Terceiro Mundo e baseadas neles, propuseram soluções simples e baratas que pudessem modificar o sombrio panorama de saúde.

No clássico Werner, Onde não há médicos, está claro a importância que representa para a sobrevivência do homem o conhecimento dos componentes sociais do binômio saúde-doença. O autor, apoiado por várias entidades internacionais como a Teaching Aids and low Cost do Institute of Chil Health, da Inglaterra, coloca com clareza certas condições que devem ser perseguidas para que se obtenha êxito na mudança da atual situação de centenas de milhões  de pessoas que vivem na miséria subumana e não tem acesso aos sistemas de saúde:

 

1.O cuidado com a saúde não é somente um direito de todos, mas também responsabilidade de todos;

 

  1. Deve ser o objetivo de qualquer programa sanitário instrumen-talizar cada vez mais as pessoas para que elas possam cuidar da própria saúde;

 

  1. Se todos receberem informações claras o objetivas, as pessoas podem evitar e tratar em casa seus problemas mais comuns de saúde mais rápido, mais barato e muitas vezes melhor que os médicos;

 

4.O conhecimento médico não deve ser encarados como segredo guardado entre poucas pessoas e sim partilhado com todos;

 

  1. As pessoas com pouco estudo são tão responsáveis e inteligentes como as outras com escolaridade;

 

6.O cuidado básico da saúde deve ser promovido pela própria comunidade.

 

A doença não existe só em si mesma. É uma entidade abstrata que recebe nomes e classificação do homem.

Os sinais e os sintomas que ela determina no corpo humano ‑ o síndrome ‑ fazem com que a observação da doença no doente seja o ponto de partida para concretizar a nosologia .É essa análise do que en-fermidade causa no homem, a formadora de um dos pilares que alicer-çam a abordagem da enfermidade não somente como um fenômeno biológico, mas principalmente como parte da totalidade sócio‑cultural do homem.

Não é somente a doença que depende desse conjunto de influên-cias, a própria organização dos serviços de saúde é envolvida, fazendo com que ambas, saúde e doença, sejam parâmetros para analisar as características da cultura dominante de determinada comunidade.

Ao longo da História, o controle das endemias sempre esteve dire-tamente ligado a essa realidade .O historiador francês Jacques Le Goff é enfático a esse respeito:

 

“La  maladie n’appartient pas seulement à l’histoire superficielle des progrès scientifiques et technologiques mais à l’histoire profonde des savoirs et des pratiques lies aux structures sociales,aux institutions,aux represen-tations,aux mentalites”. 

 

Um dos exemplos mais marcantes foi a hanseníase. Ela começou a desaparecer da Europa ainda no século XVI, quatro séculos antes do início do tratamento considerado efetivo. Enquanto isso, nos dias atuais, o Estado do Amazonas detém a prevalência média absurda de 10 casos desta doença por cada grupo de 1000 habitantes.

Aqui reside um dos pontos cruciais do atual entendimento da medicina enquanto pratica social. É preciso que as nossas escolas de medicina repensem a sua metodologia para que os seus alunos compreendam a dimensão social da doença no conhecimento pluralista e longe dos pregadores da leitura das orelhas dos livros de ciência política.

Fora da tradição das idéias e das crenças religiosas que consideram a doença como castigo da divindade, é possível identificar que a maior parte das tradições médicas estão apoiadas em três correntes para explicar a etiologia das enfermidades: a da Índia, a da China e a do Mediterrâneo greco‑romano. É provável que elas tenham mantido certa autonomia, apesar de   terem trocado informações ao longo dos séculos.

O sistema mediterrâneo que ainda domina a prática médica do Ocidente ficou marcado pela Teoria dos Quatro Humores elaborada pela Escola Médica Cós, da Grécia, há 2400 anos:

 

O corpo humano é constituído de quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile preta. São os responsáveis  pela natureza, pela saúde e pela doença.” (Hippocrate, 1994

 

Usando a linguagem bachelariana, essa teoria pode ser consi-derada como o primeiro corte no conhecimento médico, quando a doen-ça teve, pela primeira vez, uma abordagem fora do domínio transcende da divindade ao retirar a epilepsia do domínio divino e iniciou o conflito de competência entre a Medicina e a Religião:

 

Quanto à doença que nós chamamos de sagrada, eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma  natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras”.

 

O segundo corte epistemológico se deu no século XVII quando a doença saiu da macroestrutura dos humores para a microestrutura celular pela micrologia de Marcelo Malpighi (1628‑1694) e instituiu a mentalidade microscópica  para desvendar a multiplicidade das formas escondidas dos sentidos natos.

 

O terceiro corte, ainda muito recente, aconteceu com os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822‑1844),na passagem da doença microestrutura celular para a ultra-estrutura do núcleo celular, inaugu-rando os estudos da genética com a medicina molecular.

Não é absurdo supor que, nos próximos séculos, o quarto corte estará ligado a medicina atômica, baseada no domínio da ainda  inson-dável relação massa-energia que sustenta as funções vitais entre todos os seres . Talvez, nesta fase dos saberes, alcançaríamos as explicações para os inúmeros fatos desconhecidos e intrigantes do cotidiano médico-social, como as curas fora dos padrões da ciência atual – as relações          médico-míticas – e as dependências complexas entre os sentimentos e o aparelho imunológico.

Os vestígios desses séculos de busca do homem na compreensão da saúde e da doença estão plenamente vivos na mentalidade das massas populares, onde os avanços das novas compreensões se fazem com a forte resistência da tradição. Essa evidência explica a razão pela qual a medicina popular ocidental esta montada na relação entre os humores, oriundos da tradição greco-romana,  ao contrário da chinesa e da indiana que se relacionam com outras concepções teóricas da saúde e da doença envolvendo os milenares conceitos orientais de energia e força vital.

A análise cultural das doenças pode contribuir também para esclarecer como se processa a escolha que o doente faz na procura do médico ou do curandeiro. Em determinadas culturas, este encaminha-mento é concretizado de modo semelhante, isto é, as pessoas se baseiam no sistema referencial dos amigos e não em indicadores objetivos (racio-nais e empíricos) do êxito profissional.

Após a concretização da primeira relação do doente com o agente escolhido, as práticas se distanciam rapidamente. Em certo sentido a medicina popular é mais integral que a medicina oficial. O médico tende, como resultado da sua formação desvinculada do sócio‑cultural, a abordar somente a doença dividida em compartimentos estanques, en-quanto  o curador popular se envolve com o dominante cultural e o utiliza no seu objetivo de curar.

A milenar crença de que a doença é um castigo sobrenatural e divino ainda é marcante em inúmeras culturas atuais. Nas grandes religiões judaica, cristã e muçulmana continua sendo utilizada em larga escala como instrumento de controle social.

A compreensão de que as enfermidades significam uma forma de desvio social foi desenvolvida por Parsons em 1951. Esta abordagem foi marcada pelo etnocentrismo americano da década de cinqüenta e  legitimou os Relatórios Flexner quando afirmou:

 

“O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica compe-tente (fundamentalmente um médico) e cooperar no processo de rec-uperação”.

 

A compreensão de Parsons estabeleceu o pressuposto que o ho-mem não pode ajudar‑se a si mesmo e transforma‑o num ser passivo e obediente que deve se submeter inteiramente ao poder médico oficial.

Esta conduta acabou fortalecendo a medicina e a morte hospitalar e fixando uma relação de dependência entre o paciente e o médico. É evidente que o estudo de Parsons só poderia ser aplicado nos países  industrializados  com grandes recursos disponíveis para empregar na saúde. Ela é inaceitável nos países subdesenvolvidos e pobres, onde a maioria esmagadora da população não tem acesso a medicina hospitalar e continua utilizando as relações médico‑míticas para resolver os seus problemas de saúde.

Apesar dessa evidência, a prática médica terceiro-mundista, espe-cialmente no nosso País, está impregnada pelas teorizações de Flexner e Parsons. Aqui existe a indiscutível tendência de se considerar como válida exclusivamente a medicina tecnológica apoiada nos recursos hospitalares, ao mesmo tempo que cresce a burocracia sanitária com novas imposi-ções de como a população deve compreender a doença resultante da pobreza.

Os estudantes de medicina do Brasil e em especial no Amazonas, com poucas exceções, sofrem a pesada conseqüência da metodologia de ensino empregada aliada à ausência das disciplinas que possibilitam a melhor análise da nossa totalidade social distanciada das paixões dos grupos políticos que querem ocupar, com qualquer custo, cargos e funções na estrutura social. Assim, esmagados entre o jogo implacável do patrulhamento ideológico e a necessidade de sobrevivência profissional, os nossos discentes acabam tendo uma dupla consciência e sinceridade de propósitos. Sabem das condições inaceitáveis em que vivem milhões de brasileiros e da pouca competência das políticas de saúde, contudo continuam atuando como se estes fatos em nada interferissem nas suas práticas.

Não é mais possível aceitar o estudo das doenças fora do seu conjunto social e cultural.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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