Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Em maio de 1986 as agências de notícias em todo o mundo divulgaram a pajelância feita pelo cacique Raoni no pesquizador Augusto Ruschi. Naquela época ele estava com graves insuficiências: do fígado e dos rins secundárias à cirrose hepática. A explicação para o aparecimento da doença foi dada pela imprensa como sendo em consequência do veneno de um sapo dendropata que teria sido inoculado no pesquisador em uma das suas viagens no Amazonas.
Centenas de milhões de pessoas viram as imagens pela televisão mostrando o cacique Raoni soprando fumaça de tabaco e fazendo gestos invocados aos espíritosdos mortos para ajudar na cura do grande naturalista.
pajelância que durou alguns dias não conseguiu mudar o curso da enfermidade e o inesquecível Augusto Ruschi morreu algumas semanas depois, num centro de tratamento intensivo qualquer, em Vitória do Espírito Santo.
As sociedades científicas divulgaram notas explicativas que o sapo do gênero Dendroprates não é capaz de provocar qualquer tipo de lesáo hepática. Eles possuem algumas glândulas subcutâneas que secretam alcalóides e causam somente pequenas queimaduras na pele quando permanecem em contato.
Porém, o que mais impressionou nos noticiários internacionais foi o estímulo dado pelo atual Presidente da república para que consumasse o ritual, tendo inclusive oferercido o transporte aéreo para levar mais rapidamente o pajé até o ornitólogo.
No atual desenvolvimento da sociedade que vivemos é difícil aceitar certos procedimentos com o rótulo de científico. É indiscutível que as mudanças no nosso sistema de valores foram tantas e tão rápidas que obrigaram a nova reflexão dos cientistas, que acabaram mostrando uma ciência pouco lógica (1).
Os estudos de Heisemberg na estruturação da teoria quântica demonstram claramente que o ideal clássico de objetividade científica não pode mais ser sustentado em aspectos importantes do conhecimento acumulado.
O homem tem utilizado empiricamente, durante milhares de anos, a sua própria experiência para manter a saúde e evitar a doença. Muitas centenas de anos antes de Galileu ter, pela primeira vez, combinado o conhecimento empírico com a matemática, o pajé tupinambá já preparava as porções medicamentosas, utilizando as combinações de quantidade e qualidade bem definidas.
É conhecido o aforismo de Einstein: ” Até onde as leis da matemática se refiram à realidade, elas estão longe de constituir algo certo; e, na medida em que constituem algo algo certo não se referem a realidade”. Depois desta afirmação é necessário que se reflita na seguinte questão: se na matemática é assim, como devemos encarar a insegurança dos conhecimentos médicos?
As atividades desenvolvidas pelo pajºe tupinambºa foram admiradas e descritas por vários viajantes e cronistas que estiveram no Brasil colônia. Muitas delas ainda estão vivas no cotidiano do povo brasileir. É evidente que elas sofreram transformaçôes ao longo dos séculos, mas a essência é a mesma.
É necessário buscar mais longe, nas nossas raízes etnológicas junto aos tupinambás, alguns aspectos das relações médico-míticas que perduram até hoje no Brasil.
Existemvárias expressões de origem tupi para designar o personagem que exercia durante os primeiros séculos da colonização portuguesa o domínio da prática médico-mítica entre os tupinambás.
Stradeli (2) reconhece o Pajé como sinônimo de Paié: ” É o médico, o conselheiro da tribu, o padre, o feiticeiro , o depositário autorizado da ciência tradicional. Pajé não é qualquer. Só os fortes do coração, os que sabem superar as provas de iniciação, que têm o fôlego necessário para ser pajé”.
Pagi, pay, payni, paié, paé, piaecé, piaché, pantché são variações de pajé. É formada etmologicamente por pa-yé, aquele que diz o fim ou profeta.
Tudo leva a crer que a figura social do pajé é universal. Ela está presente em incontáveis sociedades primitivas de todos os continentes.
Os estudos antropológicos e sociológicos são muito sugestivos de que ele desempenhou um papel de destaque nas sociedades pré-históricas, talvez muito antes do homem ter a sua atual forma física. Colabora na veracidade desta suposição as pinturas rupestres do mestre-feiticeiro da gruta de Trois-Fréres, nos Pirineus franceses, com datação assegurada ultrapassando 10000 anos.
Nos vários trabalhos publicados sobre o sepultamento ritualizado se destaca aquele que descreveu o tumulo do homem da caverna de Shanidar, nas montanhas Zagros, no Irac. Há mais ou menos 60000 anos, no mês de junho, foi enterrado o homem de Neandertal, sobre um leito feito de diversas plantas. A análise do pólem mostrou que se tratava de mil-folhas, escovinha, cardosanto, taisneira, jacinto e cavalinha. os vegetais foram propositalmente colocados sob o morto, formando um verdadeiro leito multicolorido com uma delicada mistura de flores brancas, amarelas, azuis e verdes dos galhos da cavalinha. A maioria destas sementes ainda são utilizadas até hoje pelos habitantes daquela região para tratar de diversas doeças. É provável que o personagem enterrado naquela gruta tivesse o hábito de utilizar as plantas no seu cotidiano e foi sepultado com elas para que acompanhassem na sua possível vida depois da morte(3).
A relevância social do pajé tupinambá pode ser entendida a partir da descrição feita por Gabriel Soares de Souza (4), que esteve no Brasil no final do século XVI: ” Entre esse gentil tupinambá, há grandes feiticeiros, que tem este nome entre eles, por lhe, meterem em cabeça mil mentiras; os quais feiticeiros vivem em casa apartada cada um por si, a qual é muito escuro e tem por muita pequena, pela qual não ousa nínguém de entrar na sua casa, nem lhe tocar em coisa dela; os quais pela maior parte não sabem nada e para se fazerem estimar e temer tomam este ofício, por entenderem com quanta facilidade se mete em cabeça a esta gente qualquer (…) A estes feiticeiros chamam os tupinambás pajés.”
LEITURA COMPLEMENTAR
1- Sobre a ausência de lógica nos atuais conhecimentos da física quântica ver CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. 4 ed. São Paulo, Cultrix, 1987, 293 p. e sobre parcialidade da verdade ver SCHAFF, Adam. História e Verdade. 3 ed. São Paulo, Martins Fontes, 1986, p.201-311.
2- STRADELI, E. Vocabulário da Língua Geral Portuguez-Nheengatu e Nheengatu-Português. Rio de janeiro, Revista do Instituto, 1929, p.585. Para maiores conhecimentos das funções dos pajés como os diferentes autores dos séculos XVI e XIX os descreviam ver Antônio Geraldo da Cunha. Dicionário Histórico das palavras portuguesas de origem tupi. São Paulo, Melhoramentos, 1982, p.226-7.
3- Para maiores informações dos sepultamentos ritualizados na pré-história ver Richard E. Leakey. A evolução da Humanidade. São Paulo, Melhoramentos, 1981, p. 153-6 e André Leroi-Gourhan. As religiões da pré-história. Lisboa, Edições 70, 1985, p.49-68.
4- Citado por Estevão Pinto in Alfred Metraux. A Religiáo dos Tupinambás. São Paulo, Ed. USP, 1979, p.75.
Existem poucos registros de como eram formados os pajés na sociedade tupinambá. É possível que a ascensão do iniciante se desse de vários modos. Entretanto, pelos relatos dos cronistas, os pajés tinham, antes de mais nada, que mostrar competência no desempenho das suas funções médico-míticas, como ter êxito no tratamento de determinadas doenças, fazer previsões do tempo e das colheitas, antever acontecimentos importantes relacionados com as guerras.
O pajé começava a acumular respeito no seio da comunidade a partir do momento em que se concretizava uma previsão esperada, como revelou Yvez d’Evreux (4) ”A revelação do feiticeiro dependia de algum acidente ou caso fortuito: como, por exemplo, se, anuciando as chuvas, estas caiam imediatamente depois. Se, ainda, tendo soprado algum doente, por ventura, recuperava a saúde, isto constituia um meio de ser logo respeitado e tido como feiticeiro de muita experiência”. Algumas vezes a iniciação se efetivava através de ritual específico, como o presenciado por Hans Staden (5) e durante o qual os tupinambás elevavam algumas mulheres na dignidade dos pajés: ” primeiramente vão os selvagens a uma choça, tomam uma após outra todas as mulheres da habitação e incensam-nas. Depois deve cada uma gritar, saltar e correr em roda até ficar tão exausta que cai ao solo como morta. Então diz o feiticeiro: ” Vêde. Agora está morta. Logo a porei viva de novo. Quando volta a si diz ele está apta a predizer cousas futuras, e quando partem após parar guerra, sobre esta tem as mulheres que profetizar”.
Como a figura política do pajé era de grande importância na sociedade, os conquistadores além de terem percebido este fato muito rapidamente tiveram a certeza da absoluta necessidade de destruí-lo. Este fato é da maior relevância porque sobre ele se fundamentou parte da substituição dos primitivos valores sócio-culturais dos índios pelos do colonizador.
Era o poder concentrado nas mãos do pajé que intermediava as forças da Natureza com o conjunto da sociedade tupinambá. Existem diversos dados que mostram a ação das forças da cruz cristã e da espada atuando conjuntamente no desmoronamento do universo médico-mítico do pajé. O depoimento do capuchinho Claude d’Abbeville no seu livro Histótia dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas, publicado em Paris em 1914, é claro e ilustrador desta questão: ‘ Perdeu muita importância o ofício do pajé depois que chegamos ao país, tanto mais quanto em nossa companhia havia um jovem que sabia fazer peloticas com as mãos e muitas prestidigitações (…). Logo que os maranhenses viram as peloticas daquele rapaz, puseram-se a admirá-lo e chamá-lo de pajé-açu. Mostrou lhes então o senhor de Rasilly que tudo se devia a certa habilidade, comparando-o com os pajés, demostrou que estes não passaram de pelotiqueiros e embusteiros. resultou disso muitos abandonarem as suas crenças e finalmente até crianças zombavam dos pajés”.(6)
É difícil de acreditar que tivesse sido razões de moral e ética as motivações para que o senhor Rasilly provocasse a descrença dos feiticeiros da ilha do Maranhão mesmo porque este objetivo de substituição dos valores culturais dos povos indígenas no Brasil colonial pode ser facilmente comprovado em outras fontes como nos escritos dos jesuítas José de Anchieta quando descreveu as aventuras de Men de Sá (A Companhia de Jesus e a medicina no Brasil colônia, J.C., 10.5.87): ”Já não ousas agora servir de teus artifícios, perversos feiticeiros, entre povos que seguem a doutrina de cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes, nen, com lábios imundos, chupar as partes do corpo que os frios terríveis enregelam, nem as vísceras que ardem de febre nem as lentas podagras nem os braços inchados. Já nao enganarás com tuas artes os pobres enfermos, que muito creram, coitados nas mentiras do enferno. Jaz por terra o velho engano, guarda o rebanho agora matilha de Deus, cujos latidos afastam lobos raivosos e traiçoeiros. Se te prender algum dia a mão dos guardas, gemerás em vingadoura fogueira ou pagarás em sujo cárcere o merecido castigo”.
Está claro que na comunicação cristã empregada na conquista e ocupação dos novos territórios pela Igreja Católica a substituição do popder do pajé estava na primeira linha de ataque. Este fato é por si só suficiente para comprovar a importância social do pajé na sociedade tupinambá, aponto de motivar a resposta do conquistador para destruí-lo e assentar a nova orientação da ordem cristã.
Alfred Metraux (7) diferencia nominalmente a maior competência do paje, isto é, ele descreve as váras denominações que os feiticeiros poderiam ter em decorrência da sua reconhecida capacidade. Esta diferenciaçáo específica da mesma categoria numa sociedade de organização simples é, no mínimo, interessante. nos faz pensar se não se trataria de resíduos sincrético do próprio conquistador aplicando na sociedade tupinambá os padrões sociais prevalentes naquela época na Europa medieval. Dequalquer modo o reconhecimento clássico de Metraux è absolutamente claro neste sentido: ‘‘ Uns tantos dentre eles, todavia, adquiriram certa reputação, que os colocava acima da confraria e lhes dava uma situação superior, recebendo nome de Pajé-ouassou ou de Caraíba, palavra que os antigos autores traduzem por santidagem ou homem sagrado”.
Achamos importante levantar algumas indagações. Devemos lembrar que ainda hoje, entre os médicos existe nítida extratificação pela competência demonstrada pela resolução de determinadas doenças pouco comuns e que agridem a insegurança coletiva. Todos são médicos, porém para caracterizar esta separação, temos várias palavras complementares como competente preparado, sendo clínico, estudioso e muitas outras.
O Dicionário Histórico de Antônio Geraldo da Cunha (8) ajuda a reforçar esta suposição quando descreve o termo caraíba como : ”a cronologia das acepções foi estabelecida com base na documentaçáo histórica adiante descrita. Com efeito, Anchieta informa que o termo indígena caraíba traduz-se por ”cousa sancta e sobrenatural”, esclarecendo ainda que os índios o adotaram para designar os portugueses, Cardim asseverava, or seu turno, que o termo era aplicado aos feiticeiros indígenas, dando ao vocabulário, todavia, uma conotação pejorativa, pois entre os indígenas caraíba designava o guia espiritual, espécie de pajé que presidia os seus cultos religiosos, Frei Vicente do Salvador apresenta uma bem fundamentada explicação da origem dos significados assumidos pelo vocabulário caraíba, isto é ” homem branco, cristão (8).
É muito difícil separar o fantástico do real nos relatos dos cronistas. Apesar de não haver qualquer dúvida de existência e da importância social do pajé, é necessário que se busque na crítica do material disponível a resposta das questóes que continua sem resposta.
É evidente que existiu ao longo dos primeiros séculos da colonização uma intrincada mistura das culturas tupinambá e européia. Este fato gerou informações repassadas oralmente que sofreram enormes distorções já reconhecidas. Entretanto. temos obrigatoriamente que retirar deste conjunto o máximo de informaçóes que possam nos dar com a maior aproximaçáo possível, o papel social do pajé da sociedade tupinambá.
LEITURA COMPLEMENTAR
4 – Citado por Alfred Metraux. A Religião dos Tupinambás. São Paulo, Ed. USP., 1979,p.65.
5 – STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1974, p.
6 – D’ABBEVILLE, Claude. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte, Itatiaia, 1975, p.254.
7 – Alfred Metraux, op. cit.,p.66.
8 – Antônio Geraldo da Cunha, op., p.102.
Lery participa da mesma idéia de que o pajé constitui um personagem diferente do caraíba (9): ”Se acontece cair doente algum deles logo mostra a um amigo uma parte do corpo em que sente mal e esta é imediatamente chupada pelo companheiro ou por algum pajé, embusteiro de gênero diverso dos caraíbas a que me refirí no capítulo em que tratei da religião e que corresponde aos nossos barbeiros e médicos. E tais pajés lhe fazem crer não somente que os curam mais ainda que lhes prolongam a vida”. No capítulo referente ele descreve assim os caraíbas : ” Os selvagens admitem certos falsos profetas chamados caraíbas que andam de aldeia em aldeia como os tiradores de ladainhas e fazem crer não somente que se comunicam com os espírito e assim dão força a quem lhes apraz, para vencer e suplantar os inimigos na guerra, mas ainda persuadem terem a virtude de fazer com que cresçam e engrossem as raízes e frutos da terra do Brasil” (10).
Nas notas do capítulo VII da Rreligião dos Tupinambás, Estevão Pinto também discorda dessa separação feita por Lery (11) : ” Lery quis fazer crer que o pajá não passava de uma criatura de gênero diverso do caraíba. Foi um erro desse calvinista. Todo caraíba era pajé, embora nem todo pajé era caraíba”.
Marcgrave (12) de igual modo percebeu, como Pinto o mesmo sentido para as palavras pajé e caraíba : ” E tem feiticeiro, os quais dificilmente usam, doutra maneira que Médicos, e a estes são sujeiros pelo grande desejo de ver a saúde ser recuperada (…) Os demais feiticeiros chamam pajé, caraíba porém é para eles o poder deles de concluir os milagres, razão pela qual os lusitanos, porque muitas cousas faziam, que excediam a inteligência deles, chamavam de caraíbas e assim também hoje na verdade e chamam todos os Europeus”.
E interessante o rumo europizante que tomou a qualificação dos pajés na literatura especializada. Recentimente, foi introduzida a palavra xamã como sinônimo de pajé. Na realidade, este termo é derivado do francês = chamam, do alemão = schamane e do russo = saman. O xamanismo é a religião de certos povos do norte da Ásia e são baseados na primitiva crença de que os espíritos maus e bons podem ser dirigidos pelos xamãs para promover o bem e o mal.
Júlio César Melatti (13) no seu livro Índios no Brasil, já na 5ª edição adotouo a religião asiática para diferenciar os pajés brasileiros : ” Existe uma certa categoria de médicos-feiticeiro que recebe o nome especial de xamãs. O que caracteriza o xamã é poder fazer de um estado de êxtase, durante o qual sua alma se retira para longe do corpo, percorrendo lugares distantes, ou durante o qual nele se encarna um espírito estranho”.
O mesmo é encontrado em Berta Ribeiro (14) : ”Na pajelança – fenômeno talvez concemtrado na Amazonia – é que se faz sentir com mais força a influência indígena. O pajé não é apenas o benzedor. É mais que isso. Adivinha os pensamentos, os acontecimentos, previne-os e os combate. Os processos de cura do pajé aproximam-se do xamanismo tupi : a par da introdução da cacnaça, registra-se o uso do cigarro, do maracá, de rezas”. Do mesmo modo deViveiro de Castro(15) : ” Duas figuras da sociedade humana mantêm uma relação especial com os apapalutapa: os xamãs e os feiticeiros. O espírito – qualquer um – é por definição um xamã”.
Não pode haver dúvida em que existe uma certa confusão na literatura disponível entre as figuras sociais do pajé e do xamã. É possível que esta situação seja em consequência da introdução por antropólogos e atnológos europeus da palavra xamã dos seus trabalhos sobre os índios da América. Depois, foram copiados sem a necessária crítica do conteúdo. O mais interessante é que a identificação do pajé tupinambá com o xamã asiático é encontrada com muito maior assiduidade nos escritos do nosso século. Os cronistas e viajantes dos séculos XVI e XIX utilizaram a palavra pajé.
Egon Schaden (16), o conhecido antropólogo e historiador das regiões, também embarcou nessa mistura inaceitável de denominação do pajé brasileiro: ”Lá literatura etonologica referente a América del Sur designa frequentemente com el nombre de chamanismo conjunto de practicas y funciones inherentes a esta profesion. El chamam indio puede a menudo ser tambien em hechicero, o ser considerado como tal, pero seria erronso aplicarle esta denominacion de modo indiscriminado. El ejercicio de la medicina figura casi siempre entre sus pincipales atribuciones, y este hecho se explica por el origem sobrenatural de la mayoria de las enfermidades”.
Existe um ponto comum nos outros autores que aparentemente confundem a complexidade sócio-cultural do pajé brasileiro com o xamã asiático : é o etnólogo Herbert Baldus. Talvez tenha sido suas obras que tenham influenciado o aparecimento da palavra xamã na literatura especializada. As mais citadas são : Ensaios de Etinologia Brasileira, O Xamanismo. Sugestões para pesquisas etnográficas e a Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira.
As funções do pajé tubinambá ultrapassavam e muito as atividades médico-míticas. Elas englobavam a totalidade do conjunto social na previsão dos acontecimentos que interferiam com a sobrevivência do grupo. Claude d’Abbeville descreve assim: ”predizem a fertilidade da terra as secas e as chuvas e o mais. Além disso, fazem crer ao povo que lhes basta soprar a parte doente para curá-la. Por isso, quando adoecem os índios os procuram e lhes dizem o que sentem, imediatamente os pajés principiam a soprar na parte doente, sugando-a e aspirando o mal e insinuando a cura” (17).
A diferenciação feita pelos viajantes e cronistas dos poderes dos pajés não fica somente aqui. Ela avança na direção da milenar e muito primitiva idéia de que alguns homens diferenciados e divinizados são capazes de ressuscitar os mortos, fazem crescer as plantas e multiplicar miraculosamente os alimentos.
A ressuscitação dos mortos é citada por Fernão Cardim (8): ”Usão de alguns feiticos, e feiticeiros, não porque creião nelles, nem os adorem, mas somente se dão a chupar em suas enfermidades parecendo-lhes que receberão saúde, mas não por lhes parecer que ha nelles divindades, e mais o fazem por receber saúde que por outro algum respeito. Entre elles se alevantarão algumas vezes alguns feiticeiros a que chamam caraíba, Santo ou Santidade, e é de ordinário algum índio de ruim vida: este faz algumas feitiçaria, e cousas estranhas a naturaza, como mostrar que ressuscita algum vivo que se faz morto (…)”.
Essas tes características do poder mítico dos pajés – a ressuscitação dos mortos, o crescimento rápido dos vegetais e a multiplicação milagrosa dos alimentos – está presente na maioria das religiões conhecidas. No Velho e no Novo Testamento existem diversas passagens que registram a mesma coisa. Jesus Cristo curou doentes pelo sopro e pelo tocar das mãos, multiplicou o pão e o peixe, ressuscitou alguns mortos e encheu a rede de peixes.
Esses anseios míticos do homem são sugestivos de uma matca atávica da sua milenar luta pela vida, pela recusa da morte da garantia do alimento para sobrevivência
LEITURA COMPLEMENTAR
9 – LERY, Jean. Viagem a terra do Brasil. São Paulo, ed. Martins, 1972, p.193
10 – Idem, idem, p.161-2.
11 – Alferd, Metraux, op. cit.,p.76.
12 – MARCGRAVE, Jorge. História Natural do Brasil. São Paulo, imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1942, p.279.
13 – MELATTI, Júlio César. Índios do Brasil. 5. ed. São Paulo, Hucitec, 1987,p.144.
14 – RIBEIRO, Berta. O Índio na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Unibrade, 1987,p.138-9.
15 – VIVEIROS DE CASTRO, E. B. Alguns aspectos do pensamento Yawalapiti (Alto Xingu): Classificações e transformações in Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro, UFR\Marco Zero, 1987, p.77.
16 – SCHADEN, Egon. Las religiones indigenas de Amerca del Sur in Las Religiones em los Pueblos sin tradicion escrita. Barcelona, Sigio Vientiuno Ed. 1982. p.393-4.
17 – D’ABBEVILLE, Claude. op.cit., p.253.
18 – CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1980,p.87.
Existe concordância entre os cronistas que estiveram no Brasil entre os séculos XVI e XIX de que a origem do poder mítico do pajé tupinambá e dos seus sucessores nos processos migratórios era em consequência de sua capacidade de comunicação com os espíritos dos mortos. Este é o principal ponto de semelhança entre o pajé brasileiro e o xamã asiático. Ambos estabelecem estreita intimidade com os mortos e este fato pode ter contribuído na atual analogia entre os dois personagens. D’Abeville relata na sua Historia da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas que os tupinambãs tinham conhecimento de astronomia e conseguiam prever o fluxo e refluxo do mar e ventos (17): ”Poucos entre eles desconhecem a maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério; chama-nos por seus nomes próprios, inventados pelos seus antepassados (…) Temos entre nós a poussinière, que muitos conhecem e que denominam seichu.Começa a ser vista,em seu hemisf~erio, em meados de janeiro, e mal a enxergam afirmam que as chuvas vão chegar, como chegamefetivamente pouco depois.”
É evidente que não se trata de simples advinhação. Representava o resultado do conhecimento acumulado historicamente pelos elementos que detinham essa função na comunidade. O mesmo pode ser suposto em relação à guerra. Muitos grupos tinham como critério para a escolha do chefe ou incluíam na formação do pajé a obrigariedade do conhecimento do passado da tribo. Isto lhes dava condições de analisar o momento em que poderiam acontecer os conflitos. Esta função é desempenhada na nossa sociedade pelos sociólogos, cientistas políticos e historiadores. Parece que a relação com os espíritos, compreendida pelos tupinambás era categorizada em lugares que variava a importância da cada um deles. Neste sentido, todos os membros do grupo eram capazes de estabelecer certo tipo de ligação com determinados espíritos. Porém, somente os pajés eram capazes de ter intimidade com os mais importantes. Entre estes existiam os que eram mais poderosos, sendo capazes de se comunicarem com determinados espíritos fortes e exclusivos. Talvez ocorra nesse ponto da hierarquização do sagrado a incorporação das coisas no conjunto mítico. A partir da existência da categorização fica mais fácil estabelecer o valor simbólico de cada elemento. As plastas, pedras e o próprio homem são investidos do poder sobrenatural capaz de causar o bem e o mal. Uma das explicações para o aparecimento das doenças era dada pelos índios como sendo causada por entidade sobrenatural (18) quando introduzida na vítima. Seria função específica do pajé a retirada do espírito maléfico causador da enfermidade. Para ajudar na sua prática o pajé utilizava determinada instrumentalização, como o maracá, a fumaça do tabaco, roupas especiais e as plantas alucinógenas (19). Existem inúmeros relatos que confirmam a importância que os tupinambás davam à comunicação com os espíritos . Yves D’Evreux (20) cita que o pajé convertido ao cristianismo disse-lhe : ” (…) quando exercia a pajelânça era visitado por numerosos espíritos galhoteiros Voavam a sua frente, ao encontrar-se ele na mata, tomando várias cores. Mas não lhe faziam nenhum mal e, por isso, procurava familiarizar-se com os mesmos”. Esta relação que algumas pessoas privilegiadas têm de falarem com as almas dos mortos parece ser uma crença universal. Nos dias atuais, os espíritas Kardecistas, principalmente na América Latina, se reúnem em sessões de cunho mítico-religioso durante as quais os espíritos dos médicos mortos prescrevem recomendações para os doentes através de um agente que se chama medium. Além deles existem inúmeros grupos e seitas esotéricas que se utilizam do mesmo expediente para solicitar vantagens pessoais. Não há motivo para que se supor que a relação que os tupinambás estabeleceram com os espíritos dos mortos tenham sido um produto do sincretismo com o cristianismo do conquistador. É provável que esta crença jã estivesse presente na sociedade tupinambá antes da chagada do europeu. Foram estes últimos que associaram o universo tupinambá à doutrina cristã cintida nos Evangelhos. Os livros Sagrados da tradição judaica-cristã são modestos quando citam a vida depois da morte . Apesar das referências que expressam a convicção de que o homem depois da morte não é reduzido a nada (Gen 42,13; Jer 31,15; Jo 7,21; Si 39,14), a idéia de como seris este renascimento são vagas e superficiais. No Novo testamento do meesmo modo está presente a influência do judaismo. Segundo Mt 12,40; At 2,27; Rom 10,7; ICor 15,55, todos descem depois da morte para o reino da morte. Em Lc 19-31 é mencionada uma morada especial para os justos chamado seio de Abraão, diferente do lugar onde os pescadores são punidos.
Este aspecto deve ter confundido muitos os brancos que, ao começarem a compreender a sociedade tupinambá, viram a completa hierarquização da vida da morte que compunha o universo mítico deles. É importante o entendimento prévio desta questão porque ela justificou a atitude do conquistador em substituir as antigas concepções de vida\morte e saúde~doença dos índios por outras que integravam o conjunto cultural europeu renascentista. É da mesma forma bom lembrar que naquela época a igraja estava intimamente ligada ao Estado e possuia religiosos com formação específica para destruir e bubstituir a cultura dos povos que pretendiadominar. os colonos missionários recebiam a congrua, espécie de sajário pago pelo Estado. Os colonizadores já tinham entendido que era preciso aniquilar todas as crenças anteriores para inroduzir a nova religão e com isto consolidar com eficácia a dominação. Neste sentido, ação missionária tinha como primeiro objetivo facilitar a colonização. O pajé era o grande obstáculo a este objetivo, pela sua importante posição no conjunto social tupinambá. A maior parte das religiões dos índios americanos do sul se relaciona com diferentes categorias de espíritos e, em alguns casos, estes estão em posição mais destacada que as divindades. Talvez por esta razão a convivência, comunicação e o controle destes espíritos necessitem de uma categoria especial, provida de poderes únicos, capaz de, entre outras qualidades, causar doenças e de curar. A sacralização de animais , plantas e coisas caminha junto do poder do pajé. Qualquer objeto que seja investido da força sobrenatural pode ser utilizado como remédio para ajudar na cura. A maioria delas possui realmente propriedades farmatológicas já comprovadas e eram usadas como fruto da experiência empírica de várias gerações. Os estudos antropológicos e etnológicos recentes mostram determinados grupos acreditando que o homem tem uma ou mais almas capazes de se mostrarem em outros animais. Esta compreensão é mais comum nos caçadores. Nestes, os pajés são capazes de se transformarem em qualquer animal. As curas provocadas pelo pajé eram atribuídas aos espíritos. O interessante é qque quase todas as cerimônias rituais de cura utilizadas por eles incluía o sopr, como fonte de vida e de saúde. A atenção dada ao sopro também parece ter caráter universal. No Velho Testamento a palavra hebraica ruãh significa originariamente como também em grego e latim, spiritus, ar em movimento, portanto hálito ou vento. Existem algumas dúvidas de que o sentido de hálito tenha aparecido a partir do século V a.C. Desta forma podemos compreender o espírito com respiração sinal de vida. O ruãh é sopro de vida (gen 6,17; 7,15;22; Ez 37,10-14 e outros). No Novo Testamento permaneceu o mesmo sentido. É possível que tenha sido através da bíbliaque o colonizador tenha dado o mesmo sentido ao sopro do pajé tupinambá. este poder contido no sopro do pajé era tão grande que por si só era suficiente para iniciar outros pajés; ” Fazem muitos discípulos comunicando esse seu espírito a outros com os de fumar e soprar, e às vezes e isto de maneira que o que recebe tal espírito treme e sua grandissimamente” (21) Eles também utilizavam o tabaco para aumentar a força transcendente do sopro. Este costume foi conservado em diferentes grupos da América do Sul ou coexiste com a utilização simultâni ade plantas alucinógenas. O tabaco aparece com diferentes nomes entre os cronistas: Petum (Thevet), Pyryma (Lery), Bettin (Staden) e Petigma (Fernão Cardim). Todos eles reconheceram a importância do tabaco nas cerimônias rituais. D’Evreux associou o sopro da pajelânca com os gestos de Jesus Cristo: ” Além das águas de lustrações, e diabólicas ablusões praticadas por estes feiticeiros tem uma maneira particular de communicar seo espírito aos outros, isto é, por meio da herva Petun introduzida n’u caniço, de que elles pucham a fumaça, lançando-as sob os circundantes ou soprando-a mesmo na canna, exportando-os a receber seo espírito e sua virtude. Parece que este caltelloso dragão quer com tal cerimônia falsa imitar Jesus Christo quando deo seo espíritos aos apóstolos, e o seo poder aos seos sucessores para transmitil-o aos iniciados nas ordens sagradas. Assim lê em São João: soprou sobre eles e lhes disse – Recebei o Espírito Santo. D’onde estes feiticeiros tiraram esta cerimônia satânica, si o diabo não ih’as tivesse mostrado? Achando-se sempre fechados n’esta grande e vasta região do Brasil, sem comunicação de espécie alguma com o velho mundo, como poderiam aprendel-a de outro modo?” (22).
É inegável que em diferentes passagens que em diferentes passagens escritsa pelos cronistas está presente a comparação dos hábitos sócio-culturais dos tupinambás com descrições bíblicas. É claro que os narradores viram os acontecimentos. Em seguida eles os descreveram impregnados com os juízos de valores. Como doença e o doente podem ser considerados como categorias sociais, cada sociedade lhes dá o seu próprio tratamento. Este conjunto complexo e heterogêbio envolve a própria luta pela sobrevivência e contribui para reforçar a coesão e a ordem social. Desta forma o controle da doença e dos imprevistos da Natureza foram fatores políticos imprtantes que atuaram como mecanismo de escape das tensões internas e externas dos tupinambás.
Por esta razão, os pajés não se limitavam a tratar somente as doenças, mas toda a comunidade. A partir do momento em que o colonizador desacreditou o seu poder aglutinador, a sociedade ruim como um todo, porque foi estacelado o seu universo mítico que a equilibrava e nutria.
LEITURA COMPLEMENTAR
17 – D’ABBEVILLE, Claude, op. cit; p.246-7
18 – Esta idéia é apresentada por Egon Schaden, op. cit., p. 379 como o quid maligno, exatamente igual a Estevão Pinto in Alfred Metraux, op. cit., p.7.
19 – Para maiores informações sobre o uso das plantas alucinógenas nos rituais de diferentes grupos indígenas das américas ver SANGIRARDI Jr. O índio e as plantas alucinógenasa. Rio de Janeiro, Editorial Alhambra, 1983, 207 pp.
20 – D’EVREUX, Yves, citado por Alfred Metraux, op. cit,. p. 68.
21 – ANCHIETA, citado por Alfred Metraux, op. cit,. p.71.
22 – SANGIRARDI Jr., op. cit., p. 103.