SAGRADO E PROFANO NA ARTE RUPESTRE: A ARQUEOLOGIA DO CURADOR

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

     “Nunca nos cansaremos,desde que possamos ver bastante longe.”

 

                                        Emerson

 

          Os nossos ancestrais ao aperfeiçoarem gradativamente a orga­nizaçäo social,mantiveram a busca da explicaçäo do significado da vida e da morte.

          A crença no renascimento e a formidável fé no poder trans­cendente da Divindade estäo contidas no bojo das indagaçöes que conti­nuam afligindo o homem.  

          A presença dos utensílios enterrados junto com o morto,em diferentes sociedades,durante milhares de anos, traduz a esperança comum de que ele continuará a sua principal atividade na nova vida após a morte.A maioria desses corpos foram sepultados,obedecendo de­terminadas regras,voltados para o leste,definindo a clara intenciona­lidade com o curso do nascimento do sol.          

          LEROI‑GOURHAN,o historiador da religiäo pré‑histórica,afirma que somente no final do Paleolítico,há cerca de 40.000 anos,existe a certeza arqueológica do sacrifício ritual e do culto dos ossos.Foram encontrados,em cavernas de abrigo,muitos  crânios de vários ani­mais,colocados em lugares de destaque,sugerindo tratar‑se de altares primitivos.            A partir do estudo comparativo entre esses achados e o mundo mágico de alguns grupos sobreviventes de caçadores‑coletores,foi pos­sível compreender melhor o significado sociológico do SENHOR DO ANIMAL,um dos mais antigos mitos conhecidos.

          Sob diferentes formas,o ser mítico,teria força para contro­lar quem representasse ameaça.A fé no poder sobrenatural do animal,ca­paz de dominar as bestas hostis,está intrinsecamente atada à  necessi­dade de acreditar que estas mesmas feras possuem qualidades maiores que as dos humanos.Com a possibilidade de transferí‑las ao homem,daria a oportunidade do enfrentamento em condiçöes mais favoráveis. 

          É interessante assinalar que os animais que mais chamaram a atençäo dos homens pré‑históricos,representados na arte rupestre,esta­vam associados com a sobrevivência coletiva,de acordo com a posiçäo geográfica da comunidade.Em alguns casos foi o urso ou o cavalo,em outras o bisäo ou a rena.

          LYONSpublicou uma gravura,do paleolítico,mostrando umamu­lher grávida,pela proporcionalidade do tamanho da barriga estava final da gestaçäo,sob uma rena.A representaçäo do acontecimento,esculpido em osso pelo artista anônimo, pode ter sido feita para demonstrar a passagem da força do animal fêmea à mulher prenha,para ajudar o nasci­mento da criança durante um parto que se mostrava difícil.

          Igual raciocínio pode amparar a interpretaçäo do simbolismo das pinturas neolíticas,do bruxo dançarino de Afvalingskop,na Åsia Central, e a do médico‑feiticeiro,da gruta de Trois Frères, nos Piri­neus franceses,ambos travestidos de animal em movimento de dança,fa­zendo supor a participaçäo em algum tipo de ritual.

          Existe uma incrível semelhança entre os trajes  dos persona­gens com o usado pelo pajé,envolto com a pele do bisäo,para encarnar o SENHOR DO ANIMAL,nas celebraçöes da abundância entre os índígenas do Norte dos Estados Unidos da América.A festa,orientada pelas sequências rituais,comemora desde a localizaçäo até o abate do bicho,para obten­çäo do alimento e do agasalho daqueles povos que mantêm a tradiçäo de caçadores. 

          Os três personagens,dois pintados em lugares diferentes há mais de 10.000 anos e um que ainda pode ser visto,ficam quase comple­tamente encobertos pela pele dos animais que respondem  pela sobre­vivência do grupo.

          A necessidade de adotar o simbolismo de identificaçäo com os elementos mais fortes da natureza,tornados sagrados pelo homem,teria a funçäo de facilitar a comunicaçäo com a divindade.De outro modo,näo seria possível efetuá‑la,simplesmente,entre o homem e a coisa sagrada.

          Esse aspecto das primitivas expressöes de religiosidade é de fundamental importância porque continua sendo através da linguagem simbólica que o ser mortal se aproxima do imortal,fazendo com que o primeiro alcance o divino,enquanto a divindade se humaniza nos momen­tos em que se estabelece a comunicaçäo entre eles.     

          A localizaçäo da arte rupestre em locais de difícil acesso,é demonstrativa que se tratava de sítios incomuns para o uso habitual.Em um deles,a caverna Le Tue d’Audoubert,na França,foram encontrados dois bisöes esculpidos em argila,cada um deles com quase um metro de com­primento,numa espécie de altar,cercado por incontáveis impressöes de pés de adultos e crianças.Mesmo hoje,com todas as facilidades para o deslocamento no interior desses esconderijos naturais com balsas in­fláveis para percorrer as nascentes dos rios subterrâneos e da luz elétrica,o caminho para se chegar a esse santuário näo é fácil de ser alcançado.

          Outros achados também contribuíram para a suposiçäo de que o universo mítico‑religioso do homem foi erguido,num primeiro momento, sobre a importância dos animais na vida comum,pelo perigo dos seus ataques ou pelo que representavam no fornecimento do alimento,agasalho e utensílio.

          Certos homens se especializaram e se adiantaram na interpre­taçäo do espaço simbólico através de um conhecimento empiricamente construído.Podem ter sido esses especialistas do sagrado os autores dos intrigantes desenhos parietais do mamute da gruta El Pindal, na Espanha,mostrando o coraçäo na sua forma correta e da mulher grávida com a criança na barriga,encaixada na pelve,em posiçäo cefálica,pronta para o início do trabalho de parto.

          As representaçöes só poderiam ter sido feitas por alguém que já tivesse observado uma barriga aberta com o útero ocupado pelo fe­to,para algum fim que jamais saberemos.A possibilidade da existên­cia,na pré‑história,de algumas pessoas que poderiam VER o que se es­condia atrás da pele,constituiu um marco importante na relaçäo de poder que foi erguido entre os curadores e os näo especialistas.                     O médico‑feiticeiro,graças à sua visäo sobrenatural,dada pelo SENHOR DO ANIMAL,seria capaz de VER ATRAVÉS DA PELE,capacidade que lhe daria destaque suficiente para atuar como agente de coesäo social.           A visäo clínica do médico moderno,graças a qual é capaz de chegar ao diagnóstico com o simples olhar,continua sendo valorizada como símbolo de competência profissional.A abordagem do olhar médico foi retomada pela genialidade de FOUCAULT: ” Daí a estranha caracte­rística do olhar médico;ele é tomado em uma aspiral indefinida: dirige‑se ao que há de visível na doença,mas a partir do doente,que oculta este visível,mostrando‑o;consequentemente,para conhecer,ele deve reconhecer.”           

          Após as descobertas da paleopatologia evidenciando o conhe­cimento de anatomia que o homem  tinha quando ainda caminhava como caçador‑coletor,já se começa a associar,mais livremente,com uma atitu­de dirigida para sarar.

          Os desenhos em “raios X” também serviram de suporte para pensar na precocidade do aparecimento dos curadores,numa época muito remota,como  uma especializaçäo social.Em número significativo na Europa,Åsia e Åfrica,mostram mäos com os dedos amputados corretamente entre as falanges,órgäos internos e detalhes anatômicos dos ossos.

          Os estudos atuais da antropologia cultural avançam no senti­do de fortalecer a idéia de que a coabitaçäo do sagrado com o profano é muito mais antigo e coerente do que se acreditava no início do nosso século.A comprovaçäo de que,no Paleolítico Superior,existia um sistema simbólico baseado nas fases lunares é de importância capital.

          Pode ter sido assim que o homem estabeleceu a sua primeira relaçäo com um tempo‑espaço visível,fornecendo as bases para que,no Neolítico,ele se integrasse nos processos repetitivos da natureza,como a dentiçäo,a menstruaçäo,a gestaçäo,o movimento da cheia e vazäo das águas,as estaçöes do ano,as modificaçöes do vegetal,a vida e a morte,a saúde e a doença.                     Com a meticulosidade das escavaçöes arqueológicas,foi possí­vel identificar outros sistemas simbólicos que foram utilizados,também há milhares de anos atrás,pelas comunidades que se organizaram próximo do mar.

          ELIADE,analisando o simbolismo das conchas e pérolas,afirma estar relacionado com o mundo mágico do homem desde um tempo longinquo até os dias atuais.Utilizou,para este fim,o exemplo das pérolas.Elas sofreram um processo de modificaçäo das suas primitivas qualidades metafísicas e acabaram relacionadas noutro mundo de valores estéticos e econômicos.Contudo,mantiveram parte da sua açäo mágica na cura de muitas doenças na herança cultural de vários povos do oriente e do ocidente.A partir do século VIII na Europa,a pérola foi recomendada por muitos curadores famosos,como Alberto Magno e Malaquias Geiger,pa­ra tratar a melancolia,epilepsia e a loucura.Posteriormente,já no século XV,Francis Bacon  recomendou a pérola como uma das principais ajudas da natureza para aumentar a longevidade. 

          Quando o homem sagrou as coisas e os acontecimentos da natu­reza, estabelecendo os seus próprios meios para efetivar a comunicaçäo com o objeto sagrado,seguiu‑se o aparecimento de uma responsabilidade específica de certos indivíduos “escolhidos” que garantisse a guarda dos segredos, a obediência aos ritos coletivos e a administraçäo da justiça,garantindo a coesäo do grupo.

          Com a posse do conhecimento assegurada pelo REPRESENTANTE DO SENHOR DO ANIMAL ( aqui pode ser considerado qualquer nome,do sacerdo­te,médico‑feiticeiro,feiticeiro,xamä,curandeiro,líder,chefe a qualquer outro),a reproduçäo do saber empírico foi impulsionado pela necessida­de de interpor alguma utilidade social.

          O aparecimento dos mais antigos mitos e ritos de celebra­çöes,brotou do longo processo de observaçäo empírica das mudanças im­postas,com certa ritmicidade,pela natureza misteriosa.  

      A partir dessa associaçäo é também possível sentir o sagraado e o profano unidos para a compreensäo dos enígmas que continuam envol­vendo o homem.Todos os acontecimentos que acompanham a gravidez,o nascimento,a puberdade,a velhice e a morte säo condiçöes concretas que determinam modificaçöes no indivíduo e nas outras pessoas com vínculos afetivos com ele.Em certas circunstâncias,quando atinge alguém em posiçäo de destaque do grupo,faz com que o acontecimento,marcando a passagem de uma situaçäo para outra,possa ser celebrado,no mesmorít­mo,para lembrar,à todos,a força indômita do desconhecido.                   

          O mais antigo representante do sagrado atuou, nesse instante longínquo,näo somente como conhecedor da linguagem capaz de acessar a coisa sagrada,mas também como agente modificador da situaçäo vivi­da,seja um nascimento difícil,uma doença que persistia,a morte indese­jada, o alimento para calar a fome ou a chuva para molhar a mäe‑terra.Com isso,conseguiu legitimar a sua posiçäo como intermediário entre o sagrado e o profano através dos arquétipos que se reproduziram nos mitos que retornam eternamente às origens.

          A herança permanece acesa na luta do homem pela vida e para entender o seu significado, onde a busca do conforto e da saúde (aqui entendido como a fome saciada e ausência da doença) foram as molas propulsoras.

          Com o início das especializaçöes sociais,isto é,a identifi­caçäo espontânea no seio do grupo de afinidades pessoais,é razoável supor que os curadores começaram a aparecer para intervir na explica­çäo do incomum.

          O processo de simbiose entre o sagrado e o profano, através do SENHOR DOS ANIMAIS,culminou com o aparecimento do HOMEM FAZENDO‑SE CURADOR,possuidor de saberes acumulados suficientes para garantir a sua perenidade no conjunto das mudanças sociais que se seguiram.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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